March 21, 2023

Leituras ao entardecer - "Não sou escravo da escravatura que desumanizou os meus antepassados"




Sobre os enganos da cultura woke e uma esquerda equivocada.

The true Left is not woke

Progressive activists have forgotten their roots

BY SUSAN NEIMAN

Passaram 85 anos desde que o grande músico de blues, Lead Belly, cunhou a frase "stay wake" em "Scottsboro Boys", uma canção dedicada a nove adolescentes negros cuja execução por violações que não cometeram só foi impedida por anos de protestos internacionais e pelo Partido Comunista Americano. 

Permanecer vigilante à injustiça - o que pode haver de errado nisso? Aparentemente, bastante. Em poucas décadas, o 'despertar' passou de um termo de louvor para um termo de abuso. Ainda assim, o facto de políticos que vão desde Ron DeSantis a Rishi Sunak utilizarem "woke" como um grito de batalha não deve impedir-nos de examinar as suas suposições. Pois não só os liberais, mas muitos esquerdistas e socialistas, como eu, estão cada vez mais desconfortáveis com a forma que o woke tem assumido.

O discurso de hoje é confuso porque apela às emoções tradicionais da esquerda: empatia para com os marginalizados, indignação com a situação dos oprimidos, entendimento de que os erros históricos podem ser corrigidos. Porém, essas emoções, são distorcidas por uma série de pressupostos teóricos - geralmente expressos como verdades evidentes - que acabam por miná-las.

Veja-se uma frase que o New York Times publicou pouco depois da eleição de Biden: "Apesar das raízes indianas da Vice-Presidente Kamala D. Harris, a administração Biden pode revelar-se menos clemente em relação à agenda nacionalista hinduísta de Modi". Se lermos isso rapidamente, podemos perder o pressuposto teórico implícito: as opiniões políticas são determinadas pelas origens étnicas. Se não se souber nada sobre a Índia contemporânea, pode não se perceber que os críticos mais ferozes do nacionalismo violento de Modi são eles próprios indianos.

Claro que o New York Times não é único jornal no mundo, nem é particularmente esquerdista, mas estabelece padrões para o discurso progressista em mais do que um país. O que mais me preocupa são as formas como vozes contemporâneas consideradas progressistas abandonaram as ideias filosóficas que são centrais para qualquer ponto de vista liberal ou de Esquerda: um compromisso com o universalismo em detrimento do tribalismo, uma firme distinção entre justiça e poder e uma crença na possibilidade de progresso. Todas estas ideias estão ligadas. 
A Direita pode ser mais perigosa, mas a Esquerda de hoje privou-se das ideias de que necessitamos se esperamos resistir ao abandono da Direita.

Este abandono da Direita é internacional e organizado. A solidariedade entre essas forças sugere que as crenças nacionalistas se baseiam apenas marginalmente na ideia de que os húngaros/Noruegueses/Judeus/Anglo-Saxões/Hindus são a melhor de todas as tribos possíveis. O que os une é o próprio princípio do tribalismo: só se ligará verdadeiramente àqueles que pertencem à sua tribo e não precisa de ter compromissos profundos com mais ninguém.


É uma amarga ironia que os tribalistas de direita de hoje-em-dia achem mais fácil unir-se numa causa comum do que aqueles da esquerda cujos compromissos tradicionalmente decorrem do universalismo, quer o reconheçam ou não. 
O discurso woke é confuso porque muitos dos seus objectivos são de facto partilhados por progressistas em todo o lado. A ideia de interseccionalidade poderia ter enfatizado as formas como todos nós temos mais do que uma identidade. Em vez disso, levou a um enfoque nas partes das identidades que são mais marginalizadas e multiplicou-as numa floresta de trauma.

O Wokeness enfatiza as formas como grupos particulares foram privados de justiça e procura reparar os danos. Mas foca-se tanto nas desigualdades de poder, que se esquece do conceito de justiça. O Wokeness exige que as nações e os povos enfrentem as suas histórias criminais mas fá-lo de um modo que conclui frequentemente que toda a história é criminosa.

O conceito de universalismo em tempos definiu a Esquerda; 'solidariedade internacional' era a sua palavra de ordem e foi precisamente isto que a distinguiu da Direita, que não reconheceu nem ligações profundas nem obrigações obrigações reais a ninguém, fora do seu círculo. 
A Esquerda exigia que o círculo englobasse o globo terrestre. Era isto que significava ser de Esquerda: preocupar-se com a greve dos mineiros de carvão no País de Gales, ou com os voluntários republicanos em Espanha, ou com os combatentes da liberdade na África do Sul. 
O que os unia não era o sangue, mas sim a convicção - antes de mais a convicção de que por detrás de todas as diferenças de tempo e espaço que nos separam, os seres humanos estão profundamente ligados de uma riqueza de formas. Dizer que as histórias e as geografias nos afectam é trivial. Dizer que elas nos determinam é falso.

O oposto de universalismo é muitas vezes chamado "identitarianismo", mas a palavra é enganadora, pois sugere que as nossas identidades podem ser reduzidas a, no máximo, duas dimensões. Na verdade, todos nós temos muitas dimensões. Como Kwame Anthony Appiah nos lembra: "Até meados do século XX, ninguém que fosse questionado sobre a identidade de uma pessoa teria mencionado raça, sexo, classe, nacionalidade, região ou religião".

A redução das múltiplas identidades que todos nós possuímos à raça e ao género não tem a ver com a aparência física. É um enfoque nas dimensões que sofreram o maior trauma. Isto encarna uma grande mudança que começou em meados do século XX: a história já não se focava no herói, mas na vítima. 

O impulso para mudar o nosso foco para as vítimas da história começou como um acto de justiça. A história era contada pelos vencedores e as vozes das vítimas não eram ouvidas. Virar a mesa e insistir que as histórias das vítimas entrassem na narrativa era apenas uma parte de corrigir velhas injustiças. O movimento para reconhecer as vítimas do massacre e da escravatura começou com a melhor das intenções. Reconhecia que o poder e a razão muitas vezes não coincidem, que coisas muito más acontecem a todo o tipo de pessoas e que, mesmo quando não as podemos mudar, temos que registá-las. É o mínimo. No entanto, algo correu mal quando reescrevemos o lugar da vítima; o impulso que começou na generosidade foi totalmente pervertido.

O caso limiar desta tendência é a história de Binjamin Wilkomirski, o suíço que alegou ter passado a sua infância num campo de concentração e que se descobriu ser uma invenção. Wilkomirski não foi o único. Nas duas décadas que se seguiram, houve uma erupção de contemporâneos a inventar histórias piores do que as que viveram - uma tendência que vai contra alguns dos heróis do pensamento pós-colonial, como Frantz Fanon, cuja Pele Negra, Máscaras Brancas proclama: "Não sou escravo da escravatura que desumanizou os meus antepassados".

As políticas de identidade não só reduzem as múltiplas facetas das nossas identidades a uma só, como essencializam aquela componente sobre a qual temos o menor controlo. 
Prefiro a palavra "tribalismo", uma ideia tão antiga como a Bíblia hebraica. Tribalismo é uma descrição da ruptura civil que ocorre quando as pessoas, seja de que tipo for, vêem como fundamental, a diferença humana que existe entre a nossa espécie e todos os outros.

O universalismo está agora debaixo de fogo à esquerda porque se confunde com o falso universalismo: a tentativa de impor certas culturas a outras em nome de uma humanidade abstracta que se revela reflectir apenas o tempo, o lugar e os interesses de uma cultura dominante. Isto acontece diariamente em nome do globalismo empresarial. 

Constatemos que foi uma proeza fazer essa abstracção original para a humanidade. Os pressupostos anteriores eram intrinsecamente particulares, uma vez que as ideias anteriores de direito eram religiosas. A ideia de que uma lei deveria aplicar-se a protestantes e católicos, judeus e muçulmanos, senhores e camponeses, simplesmente em virtude da sua humanidade comum, é um feito relativamente recente que agora molda  tão profundamente os nossos pressupostos, que não o reconhecemos de todo como um feito.

Consideremos também o contrário: o teórico jurídico nazi Carl Schmitt, que escreveu que "quem diz a palavra 'humanidade' quer enganar-te". Em vez disso, podemos dizer: "quem quer que diga 'humanidade' está a fazer uma reivindicação normativa". Reconhecer alguém como humano é reconhecer neles uma dignidade que deve ser honrada. Implica também que este reconhecimento é um feito: ver a humanidade de todas as formas estranhas e belas em que ela aparece é um feito que exige que se vá além das aparências.

O que lhe parece mais essencial: os acidentes com que nascemos ou os princípios que consideramos e defendemos? Tradicionalmente, era a Direita que se concentrava no primeiro, e a Esquerda que enfatizava o segundo. 
Esta tradição tem sido invertida. 
Não é surpreendente, então, que teorias sustentadas pelos 'woke' minem as suas emoções empáticas e intenções emancipatórias. Essas teorias não têm apenas fortes raízes reaccionárias; alguns dos seus autores eram nazis absolutos. As ideias influenciadas por Carl Schmitt e Martin Heidegger e as suas epígonetas ocupam muito espaço no programa progressivo, apesar de ambos os homens não só terem servido os nazis, mas terem continuado a fazê-lo muito depois da guerra. No entanto, o ultraje, hoje, é reservado às passagens racistas da filosofia do século XVIII.

De facto, muitos dos pressupostos teóricos que sustentam os impulsos mais admiráveis dos 'despertos' provêm do movimento intelectual que mais desprezam. Os melhores princípios do woke, tais como a insistência em ver o mundo de mais de uma perspectiva geográfica, provêm directamente do Iluminismo. As rejeições contemporâneas deste período andam normalmente de mãos dadas com pouco conhecimento do mesmo. Mas não se pode esperar progredir serrando no ramo em que não se sabe que se está sentado.

É agora um dogma que o universalismo, como outras ideias do Iluminismo, é uma farsa que foi concebida para disfarçar visões eurocêntricas que apoiavam o colonialismo. Estas afirmações não são simplesmente infundadas: elas pervertem o que foi o Iluminismo. 
Os pensadores do Iluminismo inventaram a crítica do Eurocentrismo e foram os primeiros a atacar o colonialismo - com base em ideias universalistas. Quando os teóricos pós-coloniais contemporâneos insistem, com razão, em aprender a ver o mundo a partir da perspectiva de não-europeus, estão a fazer eco de uma tradição que remonta aos pensadores do século XVIII, que arriscaram o seu sustento e por vezes a sua vida, para defender essas ideias.

Isto não é apenas uma questão histórica: precisamos de ideias iluministas se queremos ter alguma esperança de avançar contra o que são as tendências autoritárias do presente. Mas não há tempo para delicadezas quando muitos líderes eleitos em todo o mundo estão a minar abertamente a democracia.


O meu livro Left is not Woke esboça os fundamentos teóricos de muito desse discurso e defende um regresso às ideias iluministas que são cruciais para qualquer ponto de vista progressista: o compromisso com o universalismo em vez de tribalismo, a crença numa distinção de princípios entre justiça e poder e a convicção de que o progresso, embora nunca inevitável, é possível. Tais ideias são um anátema para pensadores como Michel Foucault, o filósofo mais citado nos estudos pós-coloniais, ou Carl Schmitt.

Ambos rejeitaram a ideia de humanidade universal e a distinção entre poder e justiça, juntamente com um profundo cepticismo em relação a qualquer ideia de progresso. O que os torna hoje interessantes para os pensadores progressistas é o seu empenho em desmascarar as hipocrisias liberais. Schmitt era particularmente crítico acerca do imperialismo britânico e do compromisso americano com a Doutrina Monroe; ambos, argumentou ele, usaram falsas piedades sobre a humanidade e a civilização para disfarçar a pirataria nua e crua.

Mas Terra e Mar, o seu livro que divulga estas opiniões, foi publicado quando a Alemanha estava em guerra com a Grã-Bretanha e a América. Schmitt não se enganou ao afirmar que as reivindicações universalistas de justiça significavam restringir simples afirmações de poder durante séculos. Concluiu que as tomadas de poder não envernizadas, como as dos nazis, eram não só legais como legítimas. 
Pode pensar que é o melhor que podemos fazer ou pode trabalhar para reduzir o fosso entre ideais de justiça e realidades de poder.

Quanto a Michel Foucault, o seu estilo era transgressivo, mas a sua visão era mais sombria do que a de qualquer conservador tradicional. Ele acha que fazemos progressos no sentido de práticas mais gentis, mais libertadoras, mais respeitadoras da dignidade humana - todos os objectivos da Esquerda? 

Olhe para a história de uma instituição ou duas. O que pareciam ser passos em direcção ao progresso revelam-se formas mais sinistras de repressão. Todas elas são formas em que o Estado estende o seu domínio sobre as nossas vidas. Uma vez que se tenha visto, como cada passo em frente se torna um passo mais subtil e poderoso em direcção à subjugação total, é provável que se conclua que o progresso é ilusório.
Os activistas 'despertos' não conseguem ver que estas duas teorias subvertem os seus próprios objectivos. Sem universalismo não há argumento contra o racismo, apenas um bando de tribos que lutam pelo poder. 

Até ao Outono de 2020, poucas eram as vozes universalizas que defendiam a Black Lives Matter - eu era inicialmente, uma delas. Se isso é o objectivo da história política, não há maneira de manter uma ideia robusta de justiça, quanto mais de lutar coerentemente pelo progresso.

Os pensadores iluministas, entretanto, proclamaram que o progresso é (tangentemente) possível; o seu envolvimento apaixonado com os males da sua época impede qualquer crença de que o progresso esteja assegurado. Mesmo assim, nunca deixaram de trabalhar nesse sentido. Como Kant argumentou, não podemos agir moralmente sem esperança. Deixem-me clarificar: a esperança não é optimismo. A esperança não faz previsões. O optimismo é a recusa de enfrentar os factos. A esperança tem como objectivo mudá-los. Quando o mundo está realmente em perigo, o optimismo é obsceno. No entanto, uma coisa pode ser prevista com absoluta certeza: se sucumbirmos à sedução do pessimismo, o mundo tal como o conhecemos está perdido.

Não é necessário estudar debates filosóficos sobre as relações entre teoria e prática para saber pelo menos isto: o que se pensa ser possível determina o quadro em que se actua. Se pensa que é impossível distinguir a verdade da narrativa, não se dará ao trabalho de tentar. Se achar que é impossível agir sobre qualquer outra coisa que não seja o interesse próprio, seja genético, individual ou tribal, não terá quaisquer escrúpulos em fazer o mesmo.

É frequentemente recordado que os nazis chegaram ao poder através de eleições democráticas, mas nunca ganharam uma maioria a não quando já estavam no poder. Se os partidos de esquerda tivessem estado dispostos a formar uma frente unida, como os pensadores de Einstein a Trotsky pediram, o mundo poderia ter sido poupado à sua pior guerra. As diferenças que dividiam os partidos eram reais; sangue tinha mesmo sido derramado. Mas embora o Partido Comunista Estalinista não o conseguisse ver, essas diferenças empalideciam face às diferenças entre os movimentos esquerdistas universais e as visões tribais do fascismo.

Não podemos permitir-nos um novo erro semelhante.

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