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July 03, 2024

"O ser humano não é o mesmo e nunca deixa de ser diferente"

 


Basta olhar para o fresco alucinante dos papuas a dançar a Dança dos Homens da Lama, no último Paris-Match.

Parecem bonecos de terracota nascidos do delírio do Padre Ubu. E foi assim que apareceram aos seus inimigos, que um dia os tinham empurrado para um rio no fundo do vale do Asaro, de onde subitamente emergiram "incrustados de lama", como os crocodilos de Montaigne que, diz ele, se rebolam na lama do Nilo antes da batalha e se secam ao sol para se envolverem numa armadura de terracota. 

Uma aparição tão fantástica, tão diabólica, tão assustadora e desumana que os inimigos aterrorizados fugiram, acreditando que eram espíritos.

Pareciam urnas com cabeças de mortos. Uns brancos, outros negros, uns brancos com cabeças negros, outros negros com cabeças brancas. Com buracos quadrados para os olhos e dentes pequenos e muito separados que parecem brita do Boulevard Montparnasse, como nos retratos de Dubuffet. 
Basicamente brancos, mas o branco acinzentado de um velho boneco de borracha que esteve três anos deitado na ribeira; nus e cinzentos como aqueles protestantes, restos das guerras de religião, pendurados em pregos num pequeno armário subterrâneo da igreja de Saint-Bonnet, aos quais ainda se agarram quatro cabelos do crânio ou um pedaço de camisa manchada de ferrugem. Em suma, é como se fosse um filme de Fellini.

Com um trapo a tapar o sexo, ou correntes de ouro ao pescoço, ou uma liga feita de pedaços de trapo. E longos paus nas mãos. Todos os anos recriam o quadro horrível que os tornou triunfantes. E outras vezes vestem-se de pássaros (com penas, pintados de amarelo e vermelho, com um pedaço de madeira ou uma ponta de Bic no nariz). E outras vezes parecem não sei que insectos gigantes, pretos e verdes, cobertos por cipós; plantas: as cabeças transformadas em folhas de filodendro, como as senhoras de Cocteau que vagueiam à beira-mar e têm por cabeça uma papoila ou um amor-perfeito. Ao pescoço usam uma couraça dourada em forma de cruz lunar. Também andam em bandos, cobertos de lama húmida como um velo, o que os faz parecer ovelhas sujas, brandindo paus ou machados muito modernos que parecem ter sido comprados no Bazar da Câmara Municipal.

São os homens mais velhos do mundo. Acreditam que são descendentes dos pássaros e que ainda vivem na Idade da Pedra. Alguns cosem um botão no nariz. Estes são os homens mais antigos.

Os dos futuros não são menos fantasmagóricos. Vemo-los em fotografias de revistas, desaparecendo sob camisas compridas e balaclavas ou fatos de mergulho, armados com focinhos, sifões e tubos que os fazem parecer fogões a gás ou entranhas de esquentadores, porcos de exposição agrícola ou larvas de mosquito.

Quem não se lembra da espantosa fotografia do General de Gaulle a rondar os corredores de uma central atómica com uma balaclava e uma grande túnica branca, como um fantasma da Idade Média na cave de uma mansão escocesa?

(Alain Allemand,
Chronique des hommes du passé, de l'avenir, de Sempé e Jean Guitton - La Montagne - 1 de março de 1970)





October 24, 2023

Transhumanismo e pós-humanismo - somos os neandertais do futuro?

 


Na prisão. — Minha vista, seja forte ou fraca, enxerga apenas a uma certa distância, e neste espaço eu vivo e ajo, a linha deste horizonte é meu destino imediato, pequeno ou grande, a que não posso escapar. Assim, em torno a cada ser há um círculo concêntrico, que lhe é peculiar. De modo semelhante, o ouvido nos encerra num pequeno espaço, e assim também o tato. É de acordo com esses horizontes, nos quais, como em muros de prisão, nossos sentidos encerram cada um de nós, que medimos o mundo, que chamamos a isso perto e àquilo longe, a isso grande e àquilo pequeno, a isso duro e àquilo macio: a esse medir chamamos “perceber” (...) Estamos em nossa teia, nós, aranhas, e, o que quer que nela apanhemos, não podemos apanhar senão justamente o que se deixa apanhar em nossa teia. (NIETZSCHE, 2004, p. 90).

Friedrich Nietzsche (1844-1900) Aurora, Livro II, Aforismo 117, Friedrich Nietzsche 
A proposta que se desenha, segundo Bostrom, é a de que a expansão das capacidades humanas para além de seus limites atualmente conhecidos fará com que toda uma nova forma de ver o mundo venha a eclodir com o projeto transhumanista.
A gama de pensamentos, sentimentos, experiências e atividades que são acessíveis a organismos humanos, presumivelmente, constitui apenas uma pequena parte do que é possível. Não há razão para pensar que o modo humano de ser seja mais livre de limitações impostas por nossa natureza biológica do que os modos de ser de outros animais. Assim como os chimpanzés simplesmente não têm o poder intelectual para entender o que é ser humano - as ambições que nós humanos temos, nossas filosofias, as complexidades da sociedade humana - ou a profundidade dos relacionamentos que podemos ter um com o outro, a nós humanos falta a capacidade de formar uma compreensão intuitiva realista do que seria ser pós- humano.39 (BOSTROM, 2001, s/p, tradução nossa).



Wagner Júnior in BIOCONSERVADORISMO E TRANSHUMANISMO: A QUESTÃO DO MELHORAMENTO HUMANO ATRAVÉS DAS BIOTECNOLOGIAS

Leituras pela manhã - O projecto transhumanista é, como dizem, a ideia mais perigosa que circula no mundo?

 


O projeto transhumanista [o melhoramento do aparato físico e cognitivo humano através das biotecnologias] transcende a esfera do melhoramento humano, podendo ser considerada como uma proposta abrangente que abarca uma gama de possibilidade e propostas.


As opções de melhoria que estão sendo discutidas incluem a extensão radical da vida e da saúde humana, a erradicação das doenças, a eliminação do sofrimento desnecessário e o aumento das capacidades intelectuais, físicas e emocionais do ser humano. Outros temas transhumanistas incluem a colonização do espaço e a possibilidade de criar máquinas superinteligentes, juntamente com outros desenvolvimentos potenciais que poderiam alterar profundamente a condição humana. O âmbito não se limita a tecnologias e medicamentos, mas abrange também projetos econômicos, sociais, institucionais, desenvolvimento cultural e habilidades e técnicas psicológicas.36 (BOSTROM, 2005b, p. 3 – 4, tradução nossa).
O transhumanismo é pensado a partir de uma base teórica que compreende a natureza humana como passível de modificação positiva, isto é, como passível de certa evolução pela utilização das possibilidades tecnológicas que a mesma tem em mãos. 
Os transhumanistas veem a natureza humana como um trabalho em progresso, algo que ainda está meio cozido e que podemos aprender a remodelar de maneiras desejáveis. A humanidade atual não precisa ser o ponto final da evolução. Os transhumanistas esperam que com o uso responsável da ciência, da tecnologia e de outros meios racionais, consigamos eventualmente, nos tornar pós-humanos, seres com capacidades muito maiores que as dos seres humanos atuais.37 (BOSTROM, 2003, p. 4, tradução nossa).

A possibilidade não é de que haja apenas aumento significativo das características físicas e mentais do ser humano, Bostrom pensa mesmo no surgimento de um estágio outro, um estágio pós-humano, a partir do qual sua experiência existencial será de outra ordem.
Considere agora um estágio mais avançado no processo de transformação ... Você acaba de comemorar seu aniversário de 170 anos e se sente mais forte do que nunca. Cada dia é uma alegria. Você inventou formas de arte inteiramente novas que exploram os novos tipos de capacidades e sensibilidades cognitivas que você desenvolveu. Você ainda ouve música - música que é para Mozart o que Mozart é para a música de elevador. Você está se comunicando com seus contemporâneos usando uma linguagem que cresceu a partir do inglês ao longo do século passado e que possui um vocabulário e um poder expressivo que lhe permite compartilhar e discutir pensamentos e sentimentos que humanos não conseguiram nem pensar ou experimentar. Você joga um certo tipo de jogo que combina expressão artística mediada por realidade virtual, dança, humor, dinâmica interpessoal e novas faculdades e os fenômenos emergentes que elas tornam possíveis, e que é mais divertido do que qualquer coisa que você já tenha feito durante os primeiros cem anos de sua existência. Quando você está jogando este jogo com seus amigos, você sente que cada fibra do seu corpo e mente é esticada ao seu limite da maneira mais criativa e imaginativa, e você está criando novos reinos de beleza abstrata e concreta que os humanos nunca poderiam ter sonhado (concretamente).38 (BOSTROM, 2006, p. 111, tradução nossa).
A radicalidade da proposta transhumanista faz jus ao seu nome, já que a proposta é a de que a radicalização das características humanas faça surgir um tipo de animal que transcende o humano e se transforme em algo para além da humanidade.
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Wagner Júnior in BIOCONSERVADORISMO E TRANSHUMANISMO: A QUESTÃO DO MELHORAMENTO HUMANO ATRAVÉS DAS BIOTECNOLOGIAS

 

July 25, 2022

Perspectiva

 


Imaginemos a terra na imensidão obscura do espaço no universo. Proporcionalmente não passa de um minúsculo grão de areia com um quilómetro de extensão e o resto é vácuo. Em sua superfície vive, rastejando em profusão um punhado entorpecido de animais pretensamente astutos, que por um instante descobriram o conhecimento. E o que significa o espaço de tempo de uma vida humana no curso de milhões de anos? Mal uma pulsação do ponteiro de segundos, um sopro de respiração. Dentro da totalidade do ente não há razão para se privilegiar este ente, que se chama homem e ao qual pertencemos por acaso.

   — Martin Heidegger, in Introdução à Metafísica. Editora Tempo (esta obra publicada em 1953 foi uma conferência de H. de 1935)



do Webb

August 30, 2020

Sobre a importância do Belo na paz e na preservação do ambiente

 



Há muitos anos, o zoólogo americano Gaylord Simpson rebateu aqueles que questionavam a realidade de um mundo exterior dizendo que o macaco que não reconhecia a representação correta do ramo para o qual pretendia pular não era um de nossos ancestrais. Hubert Markl observou acertadamente que aquele que não deseja perceber a realidade já falhou em fazê-lo. A qualificação da declaração um tanto provocativa de Beuys 'tudo é arte e todos são artistas' pode ser vista neste contexto. 

No prefácio do livro de Walter Schurin,  Pintura Austríaca após 1945, Hbert Ehalt escreveu: "Antigamente eram as aptidões artesanais que eram aprendidas e praticadas com muita perseverança; agora, há um fluxo constante de novas ideias e discursos sobre o que constitui a obra de arte. Desta maneira, as artes cada vez mais se separam das tradições e de critérios sólidos consensuais; tornaram-se mais intimamente ligadas ao contexto e ao tempo. Pode-se perguntar se, quando a ideia dessas obras relacionadas ao contexto estiver fora de moda, só restará um depósito de materiais e uma história intelectual de discursos.

Talvez haja mais qualquer coisa por detrás deste desenvolvimento. Apesar de em todas as épocas ter havido fraudes [na arte] que encontram um mercado, hoje em dia não é preciso grande esforço, basta ser um bocadinho esperto e desavergonhado. Pergunto-me se as mudanças no ambiente visual em que tanta gente cresce não desempenham um papel no gosto contemporâneo.

Poucas crianças hoje em dia passaram pela experiência de ver a maravilha de como as lagartas se transformam em borboletas, como as larvas da libelinha saem da água e sobem pelos juncos e como a libélula adulta emerge de suas costas. Raramente podem deitar-se de costas num campo de flores perfumado num dia ensolarado de início de Verão, quando os malmequeres e a sálvia estão em flor, para sonhar com as andorinhas que descrevem arcos no alto céu azul, ver os escaravelhos rastejar pelas arestas das folhas da erva, o enxame de insetos na extensão branca das flores e os zangões e outras abelhas na busca ansiosa do mel.

Não é possível que as pessoas que cresceram nos ambientes industriais artificiais das metrópoles modernas, que muitos considerariam feios, tenham sido alterados em resultado desses ambientes? E, sendo assim, isso não poderia, em parte, explicar a moda de montagens de objectos e materiais ignóbeis? Como consequência deste desenvolvimento o sentimento pelo belo da natureza diminui e é acompanhado por uma quebra de valores que ameaça a nossa relação com a natureza e, por arrasto, a preservação da comunidade de vida fundamental para a nossa sobrevivência.

Isto não quer dizer que a arte deva representar apenas o que é belo. Goia, ao representar as atrocidades da guerra, segura um espelho diante de nós que acorda o horror. Os artistas experimentam e provocam. No entanto, o valor pedagógico e pacifista do Belo não deve, como resultado, desaparecer no esquecimento.

Somos uma espécie tremendamente bem sucedida que num século apenas, progrediu da era mecânica para a electrónica e fez as primeiras viagens no espaço. Hoje, com mais de seis mil milhões de pessoas, povoamos os últimos lugares inabitados da Terra; com as nossas técnicas actuais entrámos no processo de destruir o ambiente que é a base da nossa existência.

Temos de adotar um ethos de sobrevivência que leve em conta, não apenas o nosso futuro, mas o dos nossos netos. A necessidade de desenvolver esse ethos de sobrevivência -calcular as consequências, para as futuras gerações, das nossas acções presentes- é-nos óbvia a um nível racional mas a implementação prática deste conhecimento é emperrada pela tendência fatal de competição no aqui e agora.

Aqueles que não experienciaram a natureza em toda a sua beleza e, por isso, não desenvolveram em si sentimentos de respeito por ela, serão os mais tentados a seguir os seus interesses egoístas e de vistas-curtas, sob o principio de depois de nós o dilúvio sem consideração pela natureza ou pelos nosso netos. 

Irenäus Eibl-Eibesfeldt


August 09, 2020

Ser-se humano no meio de outros humanos

 

“To be a human being among people and to remain one forever, no matter in what circumstances, not to grow despondent and not to lose heart — that’s what life is all about, that’s its task.” (Dostoievsky)


 Dostoievsky teve uma grande vantagem sobre muitos outros escritores: aos 20 e tal anos foi preso por fazer parte de uma sociedade que publicava livros contra o czar. Foi condenado, com outros, a ser executado na praça pública como exemplo dissuasório. Já os executantes estavam no lugar com as armas destravadas e em posição de atirar e já lhe tinham dado a cruz a beijar quando, nos últimos segundos, chegou uma missiva a informar do perdão do czar. Dostoievsky passou uns anos na Sibéria mas sobreviveu. Quem mais tem uma experiência destas na sua formação? Não por acaso as suas obras são substanciais. 
Tenho andado a tentar voltar a ler literatura, romances, mas depois de ler muita filosofia, ensaios científicos e coisas do género, a literatura aparece toda um bocadinho insignificante, irrelevante, sem substância. Muito longe das obras de Dostoievsky.


March 10, 2020

O Homem e a sua sombra II




Extremely rare white giraffes killed by poachers in Kenya.
The female giraffe and her calf were found by rangers "in a skeletal state after being killed by armed poachers" in Garissa County in the north-east of the country.