(Pessoa, Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, 3, novembro de 1935, pp. 5-6)
(Pessoa, Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, 3, novembro de 1935, pp. 5-6)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
(Pessoa, Presença, 36, novembro de 1932, p. 9)
Julho 25:
Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Não posso incomodar os amigos com estas coisas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a ter um verdadeiro amigo íntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu. Não há um único carácter neste mundo que porventura dê mostras de se aproximar daquilo que eu suponho que deve ser um amigo íntimo. Acabemos com isto. Amantes ou namoradas é coisa que não tenho e é outro dos meus ideais, embora só encontre, por mais que procure, no íntimo desse ideal, vacuidade, e nada mais. Impossível, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo! Poderei eu confiar em minha mãe? Como eu desejaria tê-la junto de mim! Também não posso confiar nela. Mas a sua presença teria aliviado as minhas dores. Sinto-me abandonado como um náufrago no meio do mar. E que sou eu senão um náufrago, afinal? Por isso só em mim próprio posso confiar. Confiar em mim próprio? Que confiança poderei eu ter nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, o meu espírito sofre percebendo quão pretensiosas, quão a armar a um diário literário elas se apresentam! Nalgumas até mesmo cheguei a fazer estilo. A verdade, porém, é que sofro. Um homem tanto pode sofrer com um fato de seda como metido num saco ou dentro de uma manta de trapos. Nada mais.
O facto de haver um problema não envolve que haja uma solução para ele. O facto de haver um mal não quer dizer que ele possa desaparecer. Não há solução satisfatória para nenhum problema social.
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.
- 223.
«Quanto ao caso de Nietzsche, acho que v. tem razão — a razão que, em qualquer coisa, se pode ter.
«O paganismo de Nietzsche é um paganismo de estrangeiro. Há erros constantes de pronúncia na sua interpretação do helenismo. Ainda se aceita que um alemão europeu (isto é, de antes de Bismark) pudesse compreender a Grécia antiga; mas um alemão, isto é como Nietzsche, um polaco ou checo, ou qualquer coisa sem Europa nem vogais, dificilmente se pode entender a si‑mesmo se quiser falar grego com o espírito.
«Nietzsche não foi, como você imagina, o Pascal do paganismo. Foi a falta de Pascal do paganismo. Não pode haver um Pascal do sistema pagão, porque não há sistema pagão; e um Pascal precisa de um sistema de que seja o Pascal. Pascal era um teólogo em verso, que escreveu em prosa. No paganismo não houve teologia, sendo essa a segunda vantagem dele, porque a primeira foi o não poder havê‑la.
«De resto, o que em Pascal era uma doença era, ao contrário, também uma doença em Nietzsche. Refiro‑me ao estilo inconsequente, e ao pensamento para o adivinharmos. Pascal, porém, sendo francês, não se contradiz, e, sendo católico, não inova e já está claro nos outros; em Nietzsche a contradição de si‑próprio é a única coerência fundamental, e a sua verdadeira inovação é o não se poder saber o que foi que ele inovou.
«São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche, havendo alguns deles que leram a obra do mestre.
«A maioria aceita de Nietzsche o que está apenas neles, o que, de resto, acontece com todos os discípulos de todos os filósofos. A minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos os que seguem fielmente a doutrina dele.
«A única afirmação grande de Nietzsche é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade. Como todos os pensamentos culminantes e fecundos dos grandes mestres, isto não significa coisa nenhuma. É por isso que teve tão grande acção nos espíritos: só no vácuo total se pode pôr absolutamente tudo.
«O que você acrescenta sobre os deveres morais podia tornar‑se extensivo aos deveres imorais. Chegámos a um ponto da civilização em que há tais exigências de imoralidade que de aqui a pouco toda a gente é decente por falta de espírito de sacrifício.
«Enfim, nada importa a não ser a maneira por que nada importa. Seja e]a bela, ou, ao menos, fútil, porque a futilidade tem de comum com a beleza a indiferença à utilidade e à justiça. O resto é absolutamente vida...»
Fernando Pessoa
Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).
- 135.Parte de carta enviada ou não.
LAST POEM
(ditado pelo poeta no dia da sua morte)
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.
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Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.
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A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
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A noite desce, o calor soçobra um pouco.
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação directa com a terra
Não esta espécie de ligação do sentido secundário chamado a vista,
A vista por onde me separo das coisas,
E m'aproximo das estrelas e de coisas distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-se.
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Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.
Se há outras matérias e outros mundos
Haja.
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fonte: http://arquivopessoa.net
Ninguém compreende o meu sofrer
Nem compreende porque não compreende.
~Pessoa
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um ser, uma existência, um existir —
Um qualquer, que não este, por ser este —
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir — não nós ou o mundo —
Mas existir em si?
~Pessoa
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora.
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
~Fernando Pessoa
Estive a ler umas páginas do Livro do Desassosego - Pessoa tinha essa habilidade cirurgica de escolher a palavra exacta para a emoção que queria passar - desassossego: não chega a ser depressão nem alienação; é uma impressão de não se estar confortável no mundo e na vida, uma desadequação incómoda, desassossegante.
Pessoa tem uma poesia mais filosófica que literária e entramos na mente dele como quem entra num labirinto e a obra [opera] dele tem o verimso, o cubismo, o impressionismo, o classicismo, o atonal... pouca coisa lhe falta.
Enfim, hoje deixo aqui um par de páginas e mais uma onde o desassossego se revela.
A minha mãe, que sentia muito o Pessoa, ofereceu-me este livro que toda a vida vi à sua cabeceira. Está muito usado já, mas eu cuido dele com carinho. Ofereceu-mo porque sabia que eu tinha uma relação com os livros e, muito particularmente, tinha fome de certo tipo de autores, como este poeta. Aliás, deu-me também as obras completas de Dostoievsky porque me viu lê-las de fio a pavio aí aos 16 anos. Mas isso é outra história. Esta edição da Aguilar é do ano do meu nascimento, o que para mim tem significado, mesmo sabendo que é uma coincidência. Sartre é que falava disso de nós escolhermos pequenas coisas para dar relevância de modo a fazermos uma narrativa ao nosso gosto. Aceito. Não faz mal. Ela deu-me este livro no início do Outono de 1999, aí uns seis meses antes de morrer. Disse-me que estava na hora de passar o livro e queria que eu ficasse com ele. Isso também é outra história, mas difícil de contar. O livro vinha com santinhos a marcar as páginas dos poemas (um dos santinhos é da minha 1ª comunhão) em que ela mais se via, calculo eu. Ainda lá estão todos, não tirei nenhum do sítio, nem digo a ninguém que isso parece-me uma violação de privacidade. Também já comecei a marcar.
Outro dia falava com a minha irmã. A minha mãe teve uma vida difícil, sobretudo depois de ficar viúva com 7 filhos todos a estudar. Devíamos ter dito mais vezes -muitas vezes- que percebíamos o valor e força dela. Lembro-me de discutir um dia com ela nesses anos e ser mesmo estúpida. Enfim... a vida, o que tem de pior é também o que tem de melhor: de repente, do nada, acontecem as coisas mais extraordinárias que nem imaginávamos ou conhecemos pessoas extraordinárias que nem sabíamos que existiam. Tudo se perde num dia mas tudo também se pode ganhar num dia.
Estes poemas mais abaixo foram escolhidos ao acaso.