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June 13, 2024

136 anos de desassessogado

 

«Conselho» (1935)


Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faz canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faz de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…

(Pessoa, Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, 3, novembro de 1935, pp. 5-6)


136 anos de desassessogado

 


«Autopsicografia» (1932)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

(Pessoa, Presença, 36, novembro de 1932, p. 9)

Aniversários - o desassossegado, Fernando Pessoa




Em 13 de junho de 1888 nascia Fernando Pessoa, o poeta que foi muitos (‘A minha arte é ser eu. Eu sou muitos’).

Conhecemos alguns pormenores sobre a sua vida na África do Sul, dos heterónimos mais populares – sempre de mãos dadas com o seu ortónimo e criador -, e já todos ouvimos falar da sua paixão pela astrologia, que resultou na criação de mapas astrais para as suas diferentes personalidades (ou, inclusive, para clientes).

Fomos tentar descobrir algumas das curiosidades sobre o desassossegado poeta que tinha em si todos os sonhos do mundo.

1. O PRIMEIRO POEMA?
Numa carta de 1935, a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa afirma que tinha seis anos quando começou a interagir com o cavaleiro francês Chevalier de Pas, com quem trocava cartas e “cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade”.

É na escrita que encontra consolo para o seu isolamento, principalmente após a morte do pai e, um ano mais tarde, do irmão. Sensivelmente nesta altura, escreve aquele que aparenta ser o seu primeiro poema, dedicado à sua mãe: “Ó terras de Portugal / Ó terras onde eu nasci / Por muito que goste delas / Inda gosto mais de ti.”

2. MARIA JOSÉ, A JOVEM CORCUNDA
Entre os vários heterónimos de Pessoa, há um heterónimo feminino, utilizado uma única vez: Maria José. Uma jovem com 19 anos, com pouco tempo de vida, em consequência da tuberculose. Além de corcunda, sofria também de um problema nas pernas, que lhe limitava a mobilidade.

Era uma mulher presa no seu corpo, daquelas figuras que vêem passar o mundo pela janela, sem nunca o experimentar. É por essa janela que se apaixona pelo serralheiro, o Sr. António, que por ela passa todos os dias. Sem coragem para lhe falar, confessa o seu amor em forma de carta, que começa em tom de despedida: “O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo”.

3. O FLAGRANTE DELITRO
Era comum Fernando Pessoa, quando se encontrava a trabalhar, levantar-se, pegar no chapéu, ajeitar os óculos e dizer que ia até ao Abel. Este hábito do poeta intrigou um colega de trabalho, Luiz Pedro Moitinho de Almeida, que se apercebeu, algum tempo depois, que as idas ao Abel eram, nada mais nada menos, que uma visita ao depósito mais próximo, da casa Abel Pereira da Fonseca, fundador da Companhia Agrícola do Sanguinhal, para tomar um copo de vinho.

Em homenagem ao poeta e ao fundador desta empresa, foi recriada a marca de vinhos Casabel. Nos rótulos, foi reproduzida a dedicatória que Pessoa fez a Carlos Queirós (1907-1949): “Carlos: Isto sou eu no Abel, já próximo do paraíso terrestre, aliás perdido”.

Ofélia, eterna namorada do autor de Livro do Desassossego, e tia de Carlos Queirós, quis uma fotografia igual à recebida pelo sobrinho e, quando Pessoa lhe fez a vontade, ofereceu-a com uma dedicatória: “Fernando Pessoa em flagrante delitro”.

4. EM CONVERSA COM OS ESPÍRITOS
Teresa Rita Lopes é uma das mais reconhecidas investigadoras pessoanas em Portugal. Estuda a obra de Fernando Pessoa há mais de meio século e, em 2016, deu uma entrevista ao jornal Sol sobre a sua relação com o poeta.

Nela, revela que Pessoa fazia escrita mediúnica, com o intuito de perceber se os espíritos se manifestavam através dele. “Ele estava sempre no limiar entre acreditar e brincar com isso“. Deu dois exemplos – um poema com a assinatura de um espírito, que lhe disse “No good” e um outro onde, no fim, escreve “Vardur [um dos espíritos) + Pessoa”, que obtém uma resposta de Vardur: “This poem is yours, my boy”.

5. AS DUAS TENTATIVAS DE 'POESIA DA MESQUINHEZ'
“Conto de fadas de quem não tem imaginação”, “poesia da mesquinhez”. Foi assim que Fernando Pessoa descreveu o romance, género literário de que nunca gostou particularmente. Apesar disso, existem dois romances que — como muitos outros textos — ficaram por acabar. Reacção e Marcos Alves foram escritos por volta de 1909, estando agora acessíveis ao público no livro A Porta e Outras Ficções, editado pela Assírio & Alvim.

Os dois romances, que se juntam a sete contos inéditos na ficção pessoana, são os únicos do género encontrados no seu espólio. Fernando Pessoa achava “difícil, senão impossível, manter, num longo texto, a perfeição desejada”.

Artigo original: Bertrand Livreiros

July 25, 2023

Diário de Pessoa - entrada de 25 de Julho de 1907

 

Julho 25:

Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Não posso incomodar os amigos com estas coisas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a ter um verdadeiro amigo íntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu. Não há um único carácter neste mundo que porventura dê mostras de se aproximar daquilo que eu suponho que deve ser um amigo íntimo. Acabemos com isto. Amantes ou namoradas é coisa que não tenho e é outro dos meus ideais, embora só encontre, por mais que procure, no íntimo desse ideal, vacuidade, e nada mais. Impossível, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo! Poderei eu confiar em minha mãe? Como eu desejaria tê-la junto de mim! Também não posso confiar nela. Mas a sua presença teria aliviado as minhas dores. Sinto-me abandonado como um náufrago no meio do mar. E que sou eu senão um náufrago, afinal? Por isso só em mim próprio posso confiar. Confiar em mim próprio? Que confiança poderei eu ter nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, o meu espírito sofre percebendo quão pretensiosas, quão a armar a um diário literário elas se apresentam! Nalgumas até mesmo cheguei a fazer estilo. A verdade, porém, é que sofro. Um homem tanto pode sofrer com um fato de seda como metido num saco ou dentro de uma manta de trapos. Nada mais.


25-7-1907
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. - 26.



July 02, 2023

Aporias

 


O facto de haver um problema não envolve que haja uma solução para ele. O facto de haver um mal não quer dizer que ele possa desaparecer. Não há solução satisfatória para nenhum problema social.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. 

 - 223.


«O resto é absolutamente vida...»

 


Fernando Pessoa

«Quanto ao caso de Nietzsche, acho que v. tem razão...

«Quanto ao caso de Nietzsche, acho que v. tem razão — a razão que, em qualquer coisa, se pode ter.

«O paganismo de Nietzsche é um paganismo de estrangeiro. Há erros constantes de pronúncia na sua interpretação do helenismo. Ainda se aceita que um alemão europeu (isto é, de antes de Bismark) pudesse compreender a Grécia antiga; mas um alemão, isto é como Nietzsche, um polaco ou checo, ou qualquer coisa sem Europa nem vogais, dificilmente se pode entender a si‑mesmo se quiser falar grego com o espírito.

«Nietzsche não foi, como você imagina, o Pascal do paganismo. Foi a falta de Pascal do paganismo. Não pode haver um Pascal do sistema pagão, porque não há sistema pagão; e um Pascal precisa de um sistema de que seja o Pascal. Pascal era um teólogo em verso, que escreveu em prosa. No paganismo não houve teologia, sendo essa a segunda vantagem dele, porque a primeira foi o não poder havê‑la.

«De resto, o que em Pascal era uma doença era, ao contrário, também uma doença em Nietzsche. Refiro‑me ao estilo inconsequente, e ao pensamento para o adivinharmos. Pascal, porém, sendo francês, não se contradiz, e, sendo católico, não inova e já está claro nos outros; em Nietzsche a contradição de si‑próprio é a única coerência fundamental, e a sua verdadeira inovação é o não se poder saber o que foi que ele inovou.

«São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche, havendo alguns deles que leram a obra do mestre.

«A maioria aceita de Nietzsche o que está apenas neles, o que, de resto, acontece com todos os discípulos de todos os filósofos. A minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos os que seguem fielmente a doutrina dele.

«A única afirmação grande de Nietzsche é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade. Como todos os pensamentos culminantes e fecundos dos grandes mestres, isto não significa coisa nenhuma. É por isso que teve tão grande acção nos espíritos: só no vácuo total se pode pôr absolutamente tudo.

«O que você acrescenta sobre os deveres morais podia tornar‑se extensivo aos deveres imorais. Chegámos a um ponto da civilização em que há tais exigências de imoralidade que de aqui a pouco toda a gente é decente por falta de espírito de sacrifício.

«Enfim, nada importa a não ser a maneira por que nada importa. Seja e]a bela, ou, ao menos, fútil, porque a futilidade tem de comum com a beleza a indiferença à utilidade e à justiça. O resto é absolutamente vida...»

Fernando Pessoa

1915?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993). 

 - 135.

Parte de carta enviada ou não.

August 18, 2022

The Tree of Life




De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. (Pessoa)



Marc Chagall : ( the Peace Window)
The stained glass of the Tree of Life (1976) at the chapel of Cordeliers of Sarrebourg , France
Raymond Gerges B. Abdo · 




January 23, 2022

O coração, se pudesse pensar, pararia.

 


Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, com outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.

   — Bernardo Soares (Fernando Pessoa), O Livro do Desassossego


November 30, 2021

Neste dia morreu Pessoa

 


Alberto Caeiro

LAST POEM

LAST POEM

(ditado pelo poeta no dia da sua morte)

É talvez o último dia da minha vida.

Saudei o sol, levantando a mão direita,

Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.

Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.


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Alberto Caeiro

Vai alta no céu a lua da Primavera

Vai alta no céu a lua da Primavera

Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.

Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,

E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,

Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,

Isso será uma alegria e uma verdade para mim.


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Alberto Caeiro

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.

Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito

E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.

E a morte é o desprezo do Universo por nós.

Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.

Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.

Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.

Para o coração e o comandante dos esquadrões

Regressa aos bocados o universo exterior.

A química directa da Natureza

Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.

A humanidade é um governo usurpado pelo povo.

Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!

Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,

Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

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Alberto Caeiro

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

Estou lúcido como se nunca tivesse pensado

E tivesse raiz, ligação directa com a terra

Não esta espécie de ligação do sentido secundário chamado a vista,

A vista por onde me separo das coisas,

E m'aproximo das estrelas e de coisas distantes —

Erro: porque o distante não é o próximo,

E aproximá-lo é enganar-se.

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Alberto Caeiro

Aceita o universo

Aceita o universo

Como to deram os deuses.

Se os deuses te quisessem dar outro

Ter-to-iam dado.

Se há outras matérias e outros mundos 

Haja.

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fonte: http://arquivopessoa.net


July 02, 2021

do gabinete de curiosidades

 



Uma das preciosidades que integra o espólio da Livraria Lello. Em 1923, este exemplar do clássico livro de humor "The Encyclopedia of Wit" estava na posse de Fernando Pessoa. O autor marcou-o para sempre com esta dedicatória de Alberto Caeiro a Álvaro de Campos.



June 13, 2021

Parabéns, Pessoa




E também, Lisboa e o santo de Lisboa.

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Carlos Otto (heterónimo)

SONHO DE GÓRGIAS

Sonhei uma cidade eterna e colossal
Fora da sensação e ideia de existir
À qual nem o amor saberia sorrir
Tão estranha ao que nós alcunhamos real.

[...]

O ceptro do Horror caíra dalgum braço
E jaziam ao pé ocamente partidas
As estátuas do Ser, e do Tempo, e do Espaço.

      
                 —Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.- 182.











by klebersales

February 06, 2021

Ninguém

 


Ninguém compreende o meu sofrer

Nem compreende porque não compreende.

~Pessoa


Mais que a existência

 


Mais que a existência

É um mistério o existir, o ser, o haver

Um ser, uma existência, um existir —

Um qualquer, que não este, por ser este —

Este é o problema que perturba mais.

O que é existir — não nós ou o mundo —

Mas existir em si?

~Pessoa

De quem é o olhar?

 


De quem é o olhar

Que espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo,

Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?

Por que caminhos seguem,

Não os meus tristes passos,

Mas a realidade

De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra

Do meu quarto, quando eu

Para mim próprio mesmo

Em alma mal existo,

Toma um outro sentido

Em mim o Universo —

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora —

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua —

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora.

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa

Metafisicamente.


~Fernando Pessoa


December 01, 2020

November 30, 2020

Hoje faz anos o Pessoa

 


Estive a ler umas páginas do Livro do Desassosego - Pessoa tinha essa habilidade cirurgica de escolher a palavra exacta para a emoção que queria passar - desassossego: não chega a ser depressão nem alienação; é uma impressão de não se estar confortável no mundo e na vida, uma desadequação incómoda, desassossegante. 

Pessoa tem uma poesia mais filosófica que literária e entramos na mente dele como quem entra num labirinto e a obra [opera] dele tem o verimso, o cubismo, o impressionismo, o classicismo, o atonal... pouca coisa lhe falta.

Enfim, hoje deixo aqui um par de páginas e mais uma onde o desassossego se revela. 




'desmanchamentos do alto'...
o patrão Vasques é a vida



October 17, 2020

Do livro da minha mãe

 


A minha mãe, que sentia muito o Pessoa, ofereceu-me este livro que toda a vida vi à sua cabeceira. Está muito usado já, mas eu cuido dele com carinho. Ofereceu-mo porque sabia que eu tinha uma relação com os livros e, muito particularmente, tinha fome de certo tipo de autores, como este poeta. Aliás, deu-me também as obras completas de Dostoievsky porque me viu lê-las de fio a pavio aí aos 16 anos. Mas isso é outra história. Esta edição da Aguilar é do ano do meu nascimento, o que para mim tem significado, mesmo sabendo que é uma coincidência. Sartre é que falava disso de nós escolhermos pequenas coisas para dar relevância de modo a fazermos uma narrativa ao nosso gosto. Aceito. Não faz mal. Ela deu-me este livro no início do Outono de 1999, aí uns seis meses antes de morrer. Disse-me que estava na hora de passar o livro e queria que eu ficasse com ele. Isso também é outra história, mas difícil de contar. O livro vinha com santinhos a marcar as páginas dos poemas (um dos santinhos é da minha 1ª comunhão) em que ela mais se via, calculo eu. Ainda lá estão todos, não tirei nenhum do sítio, nem digo a ninguém que isso parece-me uma violação de privacidade. Também já comecei a marcar.

Outro dia falava com a minha irmã. A minha mãe teve uma vida difícil, sobretudo depois de ficar viúva com 7 filhos todos a estudar. Devíamos ter dito mais vezes -muitas vezes- que percebíamos o valor e força dela. Lembro-me de discutir um dia com ela nesses anos e ser mesmo estúpida. Enfim... a vida, o que tem de pior é também o que tem de melhor: de repente, do nada, acontecem as coisas mais extraordinárias que nem imaginávamos ou conhecemos pessoas extraordinárias que nem sabíamos que existiam. Tudo se perde num dia mas tudo também se pode ganhar num dia.

Estes poemas mais abaixo foram escolhidos ao acaso.