Algumas ideias acerca da felicidade:
1. O termo felicidade não é unívoco. Tem vários significados que diferem entre si: prazer e alegria. A alegria por sua vez pode ser, êxtase, euforia, contentamento, satisfação, bem-estar. Estes diferentes tipos de felicidade adequam-se aos diferentes tipos de objectos que o causam e, por isso, alguns tipos são superficiais e fugazes e outros duradouros e profundos.
2. O prazer, por si só, sem estar associado à satisfação ou à alegria, em geral, é uma emoção fugaz, que dura enquanto praticamos a actividade que o causa. Depois, podemos ter a memória do prazer mas já não o sentimos. Por exemplo, num dia de muito calor sentimos prazer em dar um mergulho no mar, mas esse prazer é sentido enquanto fazemos essa coisa e depois lembramo-nos de que isso causa prazer (como estou a fazer agora) mas não o sentimos, é uma memória. Podíamos falar de outros prazeres como o sexual ou o da comida ou o de outro qualquer. De modo que encerrar a felicidade em momentos de prazer não oferece nenhum estado duradouro como convém ao 'ser-se feliz' e o resultado é o vício de andar à procura de uns prazeres em cima de outros.
3. A alegria é uma outra ordem de felicidade. Veja-se que toda a alegria tem associada o prazer mas o contrário não se verifica pois nem todo o prazer causa alegria. Por exemplo, se estou muito stressada e tenho bombons de chocolate em casa ponho-me a comer uns atrás dos outros o que me causa prazer mas nenhuma alegria e é um prazer de que me arrependo no próprio acto de os comer. Portanto, a alegria é mais abrangente e duradoura que o prazer.
4. O tipo de objectos que causam alegria também diferem em qualidade e duração: a alegria de ver a equipa ganhar um jogo é diferente da alegria do nascimento de um filho, por exemplo, ou de ouvir um concerto excelente que enriquece a nossa vida estética, mas qualquer um destes tem mais duração que o prazer por si só, como uma excitação momentânea dos sentidos.
5. A alegria é tanto mais duradoura quanto mais significado nela encontramos. Por isso a alegria de um filho é mais duradoura que a alegria de um concerto excelente, embora a primeira venha com muito sofrimento associado e a segunda não. Assim como a alegria do amor, apesar de vir com sofrimento associado.
6. A felicidade, portanto, acredito, é um sub-produto, mas não no sentido de ser secundária como dizia o artigo do post anterior, pois todos os 'cálculos' de significado são também cálculos de felicidade. Por exemplo, Sócrates (o filósofo, não o outro) morreu pelas suas ideias quando podia ter fugido. No entanto, isso não significa quer fosse masoquista ou não ligasse à infelicidade. A questão é que, fugindo, esvaziava de sentido toda a sua vida, que foi uma vida a lutar pela Lei, pela Justiça e pela Verdade. Ora, a infelicidade que a injusta condenação lhe trouxe era, apesar de tudo, menor, que a infelicidade que adviria de trair toda uma vida, negando-lhe todo o sentido. Portanto, a questão da infelicidade também esteve presente na sua decisão acerca do sentido da sua vida. Uma pessoa faz sempre um cálculo de felicidade. Navalny foi preso assim que chegou hoje à Rússia, como já sabia que ia acontecer. Porque o fez? Provavelmente porque o sentido da sua vida está ligado à luta por uma Rússia democrática, de tal modo que a felicidade de não ser preso (não indo para lá) seria menor que a satisfação de saber que está a agir de acordo com o que defende e dá significado à sua vida.
Kant falava na moralidade como uma acção realizada pelo puro (no sentido de não-contaminado por emoções e interesses sensíveis) sentido do dever, mas penso que isso não existe. Quer dizer, quando se tem uma noção muito forte do dever e se age mesmo sabendo que a acção vai trazer consequências nefastas, isso também leva em conta que não agir nos deixa numa situação de contradição interna impossível de aguentar, portanto, também há um calculo de felicidade ou, pelo menos, de evitar infelicidade. Como dizia Sócrates no Górgias, 'é preferível sofrer uma injustiça que cometê-la', pois como viveríamos connosco próprios? Uma pessoa pode afastar-se dos que cometem injustiças, mas como nos afastamos de nós mesmos?
7. Portanto, acredito que a felicidade é um sub-produto, mas no sentido em que não se atinge directamente -isso em geral é a procura de prazeres que não trazem felicidade- mas indirectamente. Procuramos o que tem sentido e significado e é isso que traz consigo a alegria mais duradoura que suplanta a infelicidade. Este cálculo, por assim dizer, tem que ser feito relativamente a cada situação e depende do tipo de pessoa que somos, quer dizer, o que é que a cada um de nós, tendo em conta o nosso modo de ser e funcionar, causa felicidade e, também, infelicidade insuportável. Isto requer ter consciência do problema, de nós próprios e saber pensar porque podemos enganar-nos nos cálculos, por assim dizer e tomar as decisões contrárias à nossa felicidade.
8. O que dá significado a uns e outros difere e daí que não possa haver uma fórmula única de felicidade. No entanto, podemos e, penso que devemos, diversificar as fontes de alegria, porque a capacidade de sentir alegria é uma atitude que se educa e se treina. Por exemplo, esta fotógrafa andou pela cidade a tirar fotografias em locais onde as pessoas passam todos os dias sem reparar na beleza que as rodeia. Esse olhar dela foi treinado. A escola, (para não falar nos pais, evidentemente) tem um papel importante na formação da capacidade de diversificar as fontes de alegria, para que a vida humana não seja pobre. Reduzir a escola a aprendizagens essenciais revela uma grande pobreza de espírito e em vez de andar a endoutrinar as pessoas devia dar-se-lhes as ferramentas para que pudessem florescer e desenvolver o seu potencial enquanto seres humanos, como defende Aristóteles. É preciso treinar atitudes e olhares, pois para se reparar na beleza das coisas do quotidiano é necessário saber olhar e para se sentir satisfação com a leitura de um livro é necessária uma certa atitude.
9. Para se alcançar a felicidade é necessário manter uma atitude inocente, não cínica. A vida de toda a gente está cheia de sofrimentos e de dor. Desde muito novos que aprendemos a aguentar o sofrimento e a dor e se não houver inocência -que é um pouco diferente de ingenuidade, pois ingenuidade é acreditar por não ver e inocência é acreditar por confiar, no sentido originário do termo, fazer fé, ter esperança: nas pessoas, na vida. A tendência é ficar-se cínico com a idade, à medida que vão traindo a nossa confiança, mas isso é um impedimento à felicidade e o bem duradouro que advém de confiar, quando resulta em felicidade, é infinitamente superior à infelicidade daquilo que não resulta.
Porque o que é certo na vida é a dor e a infelicidade e o que é muito incerto é a felicidade, de modo que não dar hipótese à felicidade, é nunca elevar-se acima do destino natural humano que é o do sofrimento. O que se aprende com a dor é a evitar, a desconfiar, a fugir e nada disso contribui para o florescimento do nosso potencial, enquanto o que se aprende com a felicidade (venha ela do amor, da arte, etc.) é que permite o florescimento e expansão da nossa personalidade porque abre universos onde descobrimos e desenvolvemos potencial que nem sabíamos que tínhamos. É assim como mudar de nível de realidade, dar um passo para fora da caverna (de Platão).
10. Finalmente, resta a questão de sabermos se a felicidade está ligada à virtude ética para toda a gente, como defendia Aristóteles, pois parece-me evidente que há pessoas, e não são poucas, que retiram alegria e satisfação de acções contrárias à virtude - acções que fazem o mal aos outros, mas esse parece-me um problema muito complexo para o qual não tenho resposta, pelo menos agora.
Helena Georgiou