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November 27, 2020

Pensamentos de dois melréis

 


'Try again. Fail again. Fail better', como dizia Beckett, não é para toda a gente. Apenas para aqueles que são capazes de revisão e mudança. Nem todos aprendem com os erros. Basta olhar Trump.

November 12, 2020

Pensamentos de dois melréis

 


Porque aspiramos ao incondicionado?

Porque sabemos que o condicionado é impermanente.

Impermanante não é um estado nem uma condição, é uma negação.

Daí que o humano esteja sempre em desequilíbrio: porque é e não-é ao mesmo tempo. Temos que saber encontrar-nos algures entre o ser e o não-ser.


October 16, 2020

Deambulações

 


Cada um de nós e todos somos o centro do universo, mas para essa posição não ser degradadora, antes rica, ela tem de ser um ponto no vértice de um cone invertido e não o oposto. A visão totalizadora tem de ser uma projecção do olhar que vê desde a base do cone invertido a sua posição no vértice inferior, abarcando a totalidade nesse olhar. Se não invertemos o universo-cone e nos pomos no topo a nossa visão fecha-se em vez de se abrir. É por isso que nem toda a gente tem capacidade para a verdade. É preciso muita revisão introspectiva, racional, muita coragem de percorrer os abismos, reconhecer os demens que aí moram, enfrentá-los e, mesmo não podendo ultrapassá-los, aceitá-los e aceitando-os, aceitar-se, sendo, com eles, numa dimensão humana, que inclui os outros que preenchem o cone que se alarga a partir de nós. Aceitar ser humano, não como desculpa, num olhar de cima para baixo, mas como uma determinação particular de natureza que tem a possibilidade de desconstruir-se a si mesmo e reconstruir-se conscientemente. Não é para a maioria que vive no topo do cone, com a máscara agarrada à cara sem nunca a tirar, nem saber que isso é possível e que uma outra existência é possível. Acho que é esta a tragédia humana de que falam tantos filósofos. 


May 25, 2020

Pensamentos de dois melréis



Li, já não lembro onde, um texto de Alain de Botton, onde dizia que, se as pessoas usassem com os adultos os instintos e o esforço que têm para com os bebés, o mundo seria muito melhor. Ele falava de como nós estamos dispostos e fazemos um grande esforço para compreender os comportamentos dos bebés e das crianças pequenas: se choram, se vomitam, se fazem uma birra, etc., não partimos do princípio que o fazem por serem malvadas ou nos quererem fazer mal, antes pelo contrário, assumimos que algo lhes aconteceu que provocou aqueles comportamentos e fazemos um esforço grande em perceber a sua causa. Sabemos que uma comida ou um excesso de ruído podem ter grandes efeitos negativos no comportamento dos bebés e das crianças e aplicamos todo o conhecimento, experiência e intuição a tentar percebê-los e ajudá-los. Se nos aplicássemos da mesma maneira com os adultos, teríamos um mundo com melhores relações entre as pessoas.

A Psicologia é a disciplina que faz exactamente isso: aplica todo o seu conhecimento, intuição e experiência a tentar perceber o comportamento dos outros - bebés, crianças, adultos e não apenas os humanos, mas de outros animais também- e ajudá-los.

Já a Filosofia faz exactamente a mesma coisa mas não aos comportamentos, antes à totalidade do real: os seres humanos e os seus pensamentos e os processos mentais humanos e as camadas de contextos em que eles se dão, temporais e supra-temporais.

Porque é que não aplicamos aquela intuição e esforço à maioria dos adultos? Fazemo-lo quando gostamos das pessoas ou elas nos interessam, o que significa que sabemos fazê-lo.

Talvez porque sabemos que a maioria das pessoas, a partir da idade em que se acaba a adolescência e entra na idade adulta, não muda e, sejam quais forem as causas dos seus maus comportamentos, não são passageiras nem voláteis como as dores de barriga dos bebés e os viciosos, mesmo que não saibam as causas dos seus vícios, são conscientes deles.

São muito poucas as pessoas que mudam na idade adulta. É preciso um grande esforço, auto-domínio, grande humildade, inteligência (naquele sentido abrangente) e capacidade de introspecção. Por isso é tão difícil o trabalho do psicólogo e o do analista. A ideia de que a idade acaba por mudar as pessoas e dar-lhes sabedoria é um engano e geralmente só lhes vinca os defeitos e torna-as mais hipócritas, ou mais cínicas ou sonsas.

Não é por ficar mais velha que a macieira do quintal passa a dar pêras. Embora seja possível -pôr uma macieira a dar pêras ou uma laranjeira a dar limões- implica um enorme esforço e trabalho inteligente, consciente e persistente, de modo que é uma raridade.

A outra maneira como algumas poucas pessoas mudam é com acontecimentos dramáticos. Situações-limite daquelas de que falava Karl Jaspers: uma grande tragédia, um grande amor, o contacto com uma qualquer realidade chocante (no sentido de causar um abanão ou desvendar os olhos) que levam a um despertar da consciência e de uma outra dimensão da pessoa que estava bloqueada.

Mas sim, se estivéssemos dispostos a fazer um esforço com todos os outros como fazemos com os bebés e as crianças pequenas, o mundo seria diferente. Muito diferente.

April 20, 2020

Pensamentos de dois melréis



O ser humano é um edifício. Construído, umas vezes por arquitecto, outras, a maioria, por curiosos. Umas vezes com muito cuidado, outras à força de martelo. Tem um espaço interior que engloba vida, contradições, contexto. Alguns edifícios são térreos e pequenos, outros estendem-se; outros ainda têm muitos andares virados para o céu. Alguns têm os andares subterrâneos, com caves, corredores labirínticos, passagens secretas, salas sem saída. Alguns têm poucos móveis e objectos, só o essencial, outros têm muitos objectos; alguns têm objectos caros e instrutivos, outros baratos e inúteis; uns têm tudo arrumado, outros tudo caótico. Uns cuidam de ter o edifício limpo por dentro, outros acumulam objectos e depois atiram-nos para a cave ou para o lixo, e compram outros novos para encher o vazio, até terem tantos que os desvalorizam e ignoram e perdem-se na busca. Uns são obcecados por terem o edifício limpo ao ponto de não deixar entrar ninguém. Outros não deixam entrar ninguém para não verem que não são perfeitos. Uns têm muitas janelas sempre abertas, outros têm poucas ou quase nenhuma janela e sempre fechadas. Uns têm a casa forrada a espelhos e não querem que ninguém veja; uns têm medo de sair, outros têm medo da luz, outros ainda têm medo que alguém entre e mude objectos de lugar ou ocupe e controle algum espaço. São os que fecham as janelas para não se ver nada lá para dentro. Outros abrem as janelas e deixam que os outros espreitem lá para dentro. Alguns convidam toda a gente lá para dentro,  com a porta sempre aberta, outros escolhem com cuidado quem convidam, com quem partilham a vida. Uns são edifícios escuros com paredes exteriores de cores alegres, outros têm cores alegres por dentro e são escuros por fora, como os vitrais. Uns poucos rejeitam o contexto, desconstroem-se e reconstroem-se em outro lugar, com nova estrutura. Alguns não têm estrutura sólida e é perigoso aproximarmos-nos deles. Há edifícios extravagante e originais e há edifícios construídos em banda, iguais a muitos milhares de outros. Quando a vida interior morre, não desaparecem, transformam-se em outras construções com outras vidas.

March 23, 2020

Pensamentos de dois melréis



Uma das razões que me faz desconfiar das predições matemáticas acerca de futuros sociais (e ainda hoje de manhã ouvi na BBC uma entrevista com uma CEO e escritora que falava sobre isso) é o facto de terem os seus modelos ajustados às grandes linhas estruturais mas falharem em ver os pequenos acontecimentos que trazem em si germes de grande mudanças sociais (como alguém na China vender morcegos para consumo em mercados vivos), de modo que só vêem o que se passa, quando nada se passa, por assim dizer. Isso não tem grande mérito nem préstimo, a não ser para prever se uma companhia vai ter as acções valorizadas em bolsa, por exemplo, mas nas grandes questões humanas, nas grandes mudanças baseadas em pequenas causas que agem como uma pequena infiltração de água num racha na parede com consequências dramáticas para o todo da humanidade, nisso falham. Ora, era aí precisamente que precisávamos que previssem.


March 15, 2020

Pensamentos de dois melréis



Pensar na realidade é observar. Observar com muita atenção. Saber observar e fazê-lo, efectivamente, dar esse passo. Sair de si para as coisas e estar nelas. O resto são técnicas para organizar, esquematizar, hierarquizar, relacionar, etc., o que se observa. É como a pintura ou a fotografia. Um pintor observa e pinta o que observa. O resto são técnicas, mas as técnicas sem a observação não produzem uma obra de arte, só uma coisa, um objecto, sem projecção, quer dizer, um objecto que está contido em si e não sai fora de si, não se projecta para nós. Pensar é idêntico. Certo que o observador e o observado estão envoltos num contexto, mas o observar em si mesmo escapa ao contexto, tem uma dimensão diacrónica, como a língua, que podemos usar para designar ou para pensar e se a usamos para pensar ela revela e revela-se-nos.
Por exemplo, aqui, o autor observou a força da curva, como ela puxa e projecta simultaneamente. Depois traduziu essa observação em linhas e cores que contêm a observação. Mas o contexto não enformou a própria observação realizada.
Pensar é saber observar com muita atenção sempre a descascar e depois dar-lhe um sentido, um significado, um rosto.


Tullio Crali. 1930.