May 25, 2020

Pensamentos de dois melréis



Li, já não lembro onde, um texto de Alain de Botton, onde dizia que, se as pessoas usassem com os adultos os instintos e o esforço que têm para com os bebés, o mundo seria muito melhor. Ele falava de como nós estamos dispostos e fazemos um grande esforço para compreender os comportamentos dos bebés e das crianças pequenas: se choram, se vomitam, se fazem uma birra, etc., não partimos do princípio que o fazem por serem malvadas ou nos quererem fazer mal, antes pelo contrário, assumimos que algo lhes aconteceu que provocou aqueles comportamentos e fazemos um esforço grande em perceber a sua causa. Sabemos que uma comida ou um excesso de ruído podem ter grandes efeitos negativos no comportamento dos bebés e das crianças e aplicamos todo o conhecimento, experiência e intuição a tentar percebê-los e ajudá-los. Se nos aplicássemos da mesma maneira com os adultos, teríamos um mundo com melhores relações entre as pessoas.

A Psicologia é a disciplina que faz exactamente isso: aplica todo o seu conhecimento, intuição e experiência a tentar perceber o comportamento dos outros - bebés, crianças, adultos e não apenas os humanos, mas de outros animais também- e ajudá-los.

Já a Filosofia faz exactamente a mesma coisa mas não aos comportamentos, antes à totalidade do real: os seres humanos e os seus pensamentos e os processos mentais humanos e as camadas de contextos em que eles se dão, temporais e supra-temporais.

Porque é que não aplicamos aquela intuição e esforço à maioria dos adultos? Fazemo-lo quando gostamos das pessoas ou elas nos interessam, o que significa que sabemos fazê-lo.

Talvez porque sabemos que a maioria das pessoas, a partir da idade em que se acaba a adolescência e entra na idade adulta, não muda e, sejam quais forem as causas dos seus maus comportamentos, não são passageiras nem voláteis como as dores de barriga dos bebés e os viciosos, mesmo que não saibam as causas dos seus vícios, são conscientes deles.

São muito poucas as pessoas que mudam na idade adulta. É preciso um grande esforço, auto-domínio, grande humildade, inteligência (naquele sentido abrangente) e capacidade de introspecção. Por isso é tão difícil o trabalho do psicólogo e o do analista. A ideia de que a idade acaba por mudar as pessoas e dar-lhes sabedoria é um engano e geralmente só lhes vinca os defeitos e torna-as mais hipócritas, ou mais cínicas ou sonsas.

Não é por ficar mais velha que a macieira do quintal passa a dar pêras. Embora seja possível -pôr uma macieira a dar pêras ou uma laranjeira a dar limões- implica um enorme esforço e trabalho inteligente, consciente e persistente, de modo que é uma raridade.

A outra maneira como algumas poucas pessoas mudam é com acontecimentos dramáticos. Situações-limite daquelas de que falava Karl Jaspers: uma grande tragédia, um grande amor, o contacto com uma qualquer realidade chocante (no sentido de causar um abanão ou desvendar os olhos) que levam a um despertar da consciência e de uma outra dimensão da pessoa que estava bloqueada.

Mas sim, se estivéssemos dispostos a fazer um esforço com todos os outros como fazemos com os bebés e as crianças pequenas, o mundo seria diferente. Muito diferente.

4 comments:

  1. Concordo contigo mas, para isso acontecer, tinhamos de nos preocupar muito mais com os outros do que com nós próprios. E isso implicava darmo-nos aos outros e colocarmo-nos em segundo plano....deixarmos de nos preocupar tanto com a nossa aparência, deixarmos de competir com os outros, sei lá, tanta coisa.
    E nós não abdicamos disso!
    Manuela

    ReplyDelete
  2. Não estou de acordo. Para perceber os outros não temos que nos colocar em segundo plano. Tentar perceber as causas das coisas e dos comportamentos dos outros não temos que deixar de nos preocupar connosco.

    ReplyDelete
  3. Não estou a dizer que tenhamos de deixar de viver a nossa vida mas vamos ter de passar mais tempo com os outros, tal como fazíamos com os nossos filhos!
    Manuela

    ReplyDelete
  4. Não necessariamente. Não temos que ter com os outros a ligação que temos com os filhos mas podemos ter um olhar distanciado que compreenda. Daí não se segue que tenhamos que aceitar os viciosos, os maliciosos, os falsos, etc. Isso é trabalho para psiquiatra, mas podemos compreender e isso muda o olhar.

    ReplyDelete