Hoje já fui ao mercado. Comprei vários produtos entre legumes, frutas e queijos frescos, com excepção desse que aí se vê que é de um produtor regional. Nada do que comprei se vende no supermercado. Estas uvas são de variedade Moscatel de Setúbal. Doces, doces e saborosíssimas. O queijo também não. Comprei cogumelos. Não têm nada que ver com os industriais que se vendem no supermercado e são só água. Estes deitam um líquido espesso acastanhado que sabe bem e faz um molho fantástico. Comprei espinafres de folha grande, tenros. Os do supermercado, se não são os de variedade 'baby', parecem papel. Etc.
A questão é que as compras saíram bastante mais caras do que se tivesse comprado os mesmos legumes e frutas num supermercado. E, sendo mais caras, as pessoas que têm menos dinheiro vão ao supermercado comprar comida industrial, mais barata.
Outro dia li um artigo de um indivíduo que dizia, 'para quê, todo esse esforço de pôr os restaurantes e os supermercados a guardar a comida que não se come/vende, para dar aos pobres, se não se revolve o problema da pobreza? Isso vai resolver o problema do excesso de produção agrícola e consequente desperdício? Não.'
E não vai. Vai perpetuar o esquema de numa ponta uns terem grandes firmas agro-alimentares que produzem em excesso de modo industrial para vender a grandes firmas de retalho que compram a preços irrisórios com os quais os vendedores de mercados e pequenas mercearias não podem competir e na outra ponta estarem eternamente os pobres sem acesso a alimentação não industrial a comer, pães, arroz, massas, carnes processadas e pouco mais.
Num esforço agressivo de aumentarem os lucros já obscenos, essas grandes firmas de comida -as que produzem e as de retalho- fizeram campanhas para se substituir as bandejas, nos refeitórios, por pratos muito grandes que levam uma enormidade de comida que as pessoas não precisam - depois temos tantos obesos. Os frigoríficos são cada vez maiores, contrariando o número de pessoas do agregado familiar que é cada vez mais pequeno. As pessoas enchem os frigoríficos de comida congelada e de porcarias que não precisam.
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Não estou a dizer que não há um problema de desperdício de comida, o que estou a dizer é que resolver esse problema sozinho com supermercados e restaurantes a dar comida que iria para o lixo, não resolve nada se os mesmos produtores e vendedores continuarem, uns a produzir em excesso, outros a armazenar em excesso. Só serve para as grandes firmas que produzem e vendem em excesso ficarem de consciência tranquila com os seus métodos de exploração de pessoas e recursos.
Esse problema liga-se ao problema da pobreza e da gestão dos recursos naturais e, um e outro problema, estão ligados aos lucros obscenos que as grandes firmas não dispensam e pelos quais mantêm milhões de trabalhadores na pobreza: os dos campos, quase em servidão, os pequenos produtores a quem os do retalho chantageiam para poder comprar os produtos a custo quase de zero e manter os seus próprios trabalhadores no limiar da pobreza para aumentarem os lucros já obscenos.
Esta é uma questão política que necessita de intervenção dos governos, não para mexer nos preços, mas para fazer legislação (e fazê-la cumprir!) para uma gestão de recursos naturais sustentável e, também, para melhorar a vida dos trabalhadores em geral, em vez de gabarem-se de todos ganharem mal. É preciso quebrar o hábito das grandes firmas só se contentarem com lucros obscenos e à conta disso porem toda a gente na pobreza e esgotarem os recursos naturais. É daí que vem o excesso de comida que vai para o lixo.
É o mesmo problema das vacinas: as farmacêuticas querem lucros obscenos e limitam a produção de vacinas para subir os preços e os governos e a OMS, em vez de pressionar as farmacêuticas para que se possam produzir vacinas em todo o mundo e a preços de aspirina, pressionam as pessoas a não se vacinarem.
É o problema da água: em vez de fazerem uma gestão inteligente dos recursos hídricos e combaterem as grandes firmas que compram a água, racionam e estragam com perfurações e químicos, dizem às pessoas que é bom não tomar banho, não se lavarem e andarem a cheirar mal.
É o problema dos grandes grupos de saúde: para não abdicarem nem um bocadinho dos seus lucros obscenos, estão dispostos a pagar menos aos seus funcionários, sejam médicos ou pessoal auxiliar. Na outra ponta o Proença promíscuo político e a contabilista desgrenhada, nas sua dupla incompetência, como não sabem negociar e pressionar resolvem tirar direitos e benefícios aos utentes da ADSE para... punir moralmente os grupos de saúde.
Portanto, o desperdício alimentar precisa de uma acção transformadora ao nível da produção e venda alimentar, que por sua vez depende da gestão dos recursos naturais, da eliminação da pobreza e da melhoria das condições de vida sustentada das pessoas, o que cabe aos políticos (é esse o trabalho deles) e, enquanto isso não for feito, a cena dos hipermercados e restaurantes darem comida para os pobres é um escape para os dos lucros obscenos poderem manter, de consciência limpa, os trabalhadores na pobreza e para os governos se livrarem das responsabilidades políticas que lhes cabem.