Um texto que enumera os problemas e os pressupostos das soluções dos problemas do SNS. O que mais me ficou foi o pressuposto da necessidade dos problemas de sistemas grandes e estruturais como o SNS não se resolverem apenas no âmbito do ministério respectivo, antes implicarem a coordenação e cooperação de vários ministérios e sectores da sociedade - o que não se coaduna com o MO deste governo em que o primeiro ministro defende que no governo cada um tem o seu gabinete e não se mete no dos outros.
Transformar o SNS - um novo modelo de governação e governança para a saúde
Ana Paula Martins e Constantino Sakellarides
O modelo tradicional de governação para a saúde já não responde ao que tem sido a evolução do sistema de saúde nas últimas décadas - nomear, legislar, despachar, distribuir dinheiro e reunir, já não é suficiente. Atualmente é necessário muito mais. E isso pode resumir-se em oito aspetos essenciais, simplificando muito.
1. Pessoas
Para concretizar as transformações necessária no SNS, há que privilegiar as pessoas, as suas reais necessidades e aspirações - ao longo da vida e nos seus percursos através dos serviços de saúde de que necessitam. E nos serviços, privilegiar as condições de trabalho e aspirações dos profissionais. Com a participação ativa de todos - as pessoas hoje querem outras coisas. Só com o envolvimento das pessoas, se consolida o compromisso coletivo de proteger solidariamente o acesso à saúde. Em democracia, são as escolhas informada dos cidadãos que preservam e fortalecem o bem comum. Todos temos um papel a desempenhar.
2. Informação e conhecimento
A gestão da informação e do conhecimento é de grande importância - torna-se necessário desconstruir o modelo da "inteligência hierárquica", hoje predominante, e substituí-lo pelo da "inteligência distribuída". Esta corresponde à sociedade do conhecimento da atualidade, que reconhece múltiplas fontes de iniciava, interagindo intensamente entre si. E ao fazê-lo, aprende-se continuamente com a experiência. Do que se trata é de promover inteligência coletiva e colaborativa.
3. Complexidade e abordagens sistémicas
Depois há que atender à grande complexidade do sistema de saúde. Os sectores que habitualmente se distinguem - como os cuidados de saúde primários, hospitalares, continuados, sociais e serviços de saúde pública - estão profundamente interligados. Não podem ser tratados independentemente uns dos outros com sucesso - requerem uma abordagem sistémica própria da complexidade. Não se pode, simplesmente, governar "dossier" a "dossier, sector a sector.
4. Investimento
É necessário investir no SNS, num horizonte temporal suficiente para colher os frutos desse investimento - um plano plurianual de investimento em recursos humanos, materiais e financeiros é essencial para o desenvolvimento do SNS.
5. Cooperação
E, ao mesmo tempo, é indispensável concertar com o setor social e privado uma estratégia de cooperação, também plurianual, transparente, devidamente compaginada com o plano de investimento no SNS. Só assim servimos o interesse das pessoas, tanto no curto como no mais longo prazo.
6. Estratégia
Abordar simultaneamente o conhecimento, a complexidade, o investimento e a cooperação, constitui um extraordinário desafio. Requer análise, planeamento e direção estratégica. É necessário conhecer a agenda dos múltiplos atores da saúde e proporcionar-lhes um enquadramento que direcione o sistema de saúde num sentido desejável.
E isso não acontecerá, seguramente, sem contar com um dispositivo de direção estratégica, identificável, competente para o efeito.
7. Qualidade do Estado
Muito do já referido, depende da qualidade do Estado. O SNS não pode simplesmente ser uma repartição de um Estado Marreta, normativo, centralizado, pouco adaptativo e inovador - terá que ser, necessariamente, a joia da coroa de um Estado inteligente, descentralizado, empreendedor, sensível às circunstâncias locais e às necessidades e aspirações das pessoas. Um Estado feito por pessoas para as pessoas. Eficaz, sustentável que contribua para libertar o potencial de crescimento do País. Um Estado que regula sem burocracias desnecessárias e sem preconceitos, sensível às desigualdades sociais. Um Estado amigo do progresso, do desenvolvimento e do cidadão. Um Estado que materializa os princípios da democracia e, dessa forma a preserva.
8. Discurso e os intangíveis na mudança
E finalmente, a importância do discurso - um discurso que aponte decisivamente para a importância e significado do SNS. Focado nos desafios dos nossos dias - do desenvolvimento infantil ao envelhecimento, da centralidade das pessoas às expectativas das profissões de saúde - mobilizador que ajude recuperar a confiança no futuro do SNS
Mas os processos de mudança comportam também intangíveis, como a não-acomodação, a confiança e a solidariedade, e o sentido de pertença. Tomando como exemplo a confiança que temos uns nos outros e o apreço pelo seu trabalho, podemos observar, a partir de dados comparativos com outros países, que em Portugal esse "capital social" é muito baixo. Para colaborar e transformar é preciso merecer a confiança e apreender a confiar.
Governar é muito difícil, principalmente no setor da saúde.
Legislar, proporcionar um enquadramento normativo para as transformações necessárias no SNS, faz sentido.
Mas não é suficiente: As intenções expressas na legislação da reforma dos cuidados de saúde primários, quanto à decentralização da gestão e à generalização das remunerações pelo desempenho estão há mais de uma década por cumprir; três iniciativas legislativas para a criação de centros de responsabilidades (integrados) na gestão hospitalar - em 1988, 1999 e 2017 - não conseguiram ainda generalizar este modelo de gestão nos hospitais portugueses; há cerca de 15 anos que está por cumprir o espírito e a letra da legislação (de 2007) sobre o acesso das pessoas ao SNS. A tolerância face a estes notórios incumprimentos tem muito a ver com as dificuldades que têm crescentemente infligido o SNS, incluindo as de atração e retenção dos profissionais de saúde.
É também conhecido o risco de reformas organizacionais de carater normativo poderem dificultar ou adiar as transformações essenciais indispensáveis.
Um novo modelo de governação é de facto necessário para gerir o processo de mudança. Pela natureza dos desafios do sistema de saúde, este processo não pode ser conduzido pelo Ministério da Saúde isoladamente, com apoios ocasionais e múltiplas resistências de outros sectores. Requer, agora, uma ação concertada e persistente do primeiro-ministro, e dos Ministérios das Finanças e da Saúde. E também o apoio do conjunto da sociedade.
Ana Paula Martins é ex-bastonária dos Farmacêuticos
Constantino Sakellarides é professor Catedrático Jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa