February 25, 2022

Uma entrevista acerca do futuro do SNS que vale a pena ler




Hans Martens: "Sucesso dos seguros é prova de que o serviço público de saúde falha"


Especialista em administração pública que ajuda a pensar sistemas de saúde alerta para urgência de debate sobre papel dos privados. Europa em crise demográfica e invadida por doença crónica não suporta SNS a prazo. E despesa tem de focar-se nos cidadãos, defende.


Com uma esperança de vida média de 81 anos e um fortíssimo modelo social financiado pelos impostos, nunca na Dinamarca - onde o Estado social é rei a ponto de a palavra skat ser partilhada pelos conceitos de imposto e querido - se discutiu a presença de privados na prestação de cuidados de saúde. Até agora. "Qualquer dinamarquês dizia que tinha o melhor sistema de saúde do mundo, mas isso já não é verdade. Não quando temos 100 mil operações adiadas por ano", diz Hans Martens, apontando que "mais de 55% dos dinamarqueses têm hoje um seguro de saúde para conseguirem aceder aos cuidados de que precisam fora do público".

O dinamarquês, que vive entre Bruxelas e Espanha, está a ajudar a pensar os sistemas de saúde europeus à luz dos novos desafios, a começar pela crise demográfica e suas consequências para o Estado Social. E esteve em Lisboa a convite da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada. Fundador do think tank European Policy Centre, Hans não tem dúvidas: "Se o serviço público cumprisse, as pessoas não pagavam pelo que podiam ter de graça. O crescimento do negócio das seguradoras é sinal da falência do serviço público."

Defensor do Estado providência, o especialista em administração pública garante ao Dinheiro Vivo que a defesa da complementaridade do setor privado não é de todo incompatível com uma posição social. Antes pelo contrário: "Com a pirâmide demográfica que temos, não é possível sustentar os SNS como existem hoje sem criar enorme desigualdade entre quem tem acesso a cuidados pagos e quem depende do serviço público." A pressão sobre as unidades de saúde disparou com a covid, o investimento público é limitado e tem de se centrar nos cidadãos e na eficácia do que lhes oferece, defende, em vez de se preocupar com quem gere a infraestrutura.

Essa discussão está finalmente a ganhar espaço numa União Europeia envelhecida, com limitações à imigração, fraca natalidade e grande peso de doenças crónicas, muitas delas incapacitantes. "Se há cinco anos eu falasse nisto, calavam-me com vaias. Mas no meu tempo de vida a fertilidade passou de quatro para menos de dois filhos por casal e a Europa entendeu que não é possível agir de outra forma, porque mesmo que se criasse agora medidas supereficazes para promover a natalidade elas demorariam uns 25 anos a ter efeito. Usar o privado para dar acesso a mais pessoas é uma inevitabilidade. Sobretudo em pandemia e nas doenças com maior incidência" (em Portugal, a diabetes, as cardiovasculares e as respiratórias).
Igualdade em risco

Seja um sistema que desvie alguns dos pacientes para unidades privadas em lugar de os fazer esperar - especialidades não urgentes, em que o Estado não tem capacidade (psicólogos e dentistas são exemplo), certas doenças crónicas, exames, etc. - ou um regime que aposte em parcerias público-privadas, Hans Martens defende que para garantir a igualdade no acesso é necessário envolver todos os prestadores, sob pena de caminharmos para uma realidade com resultados semelhantes aos dos EUA, em que milhões de pessoas não têm acesso a cuidados ou não os conseguem com qualidade e em tempo útil. "O que realmente importa para a igualdade é quem paga a conta, não onde se vai."

Se construir um hospital demora anos e requer milhões, o especialista propõe que se recorra à infraestrutura instalada numa lógica de tirar o maior valor possível da despesa pública, com o melhor resultado para os cidadãos. "Se a Europa não expandir a sua capacidade rapidamente, vamos ver cada vez mais pessoas impedidas de aceder aos SNS, a ver tratamentos e cirurgias adiados; e os que não estão contentes e têm dinheiro e educação vão recorrer ao privado, os outros não." E lembra que os efeitos dessa desigualdade trazem também prejuízo ao país. Um exemplo simples: uma pessoa que cega por catarata e demora um ano a ser operada não está em risco de vida, mas vai tornar-se dependente, não vai produzir, não vai poder trabalhar e vai dar encargos acrescidos à Segurança Social. A casos destes juntam-se os idosos que poderiam ter muito mais anos com qualidade de vida com acompanhamento adequado. A média nacional é de apenas seis anos de boa saúde depois dos 65.
Serviço focado no resultado

Mas deve o Estado dar dinheiro a ganhar a privados? Hans Martens nega que isso seja tema. "O argumento de que ninguém devia ganhar dinheiro com a saúde não colhe. Médicos e enfermeiros recebem salários, as farmacêuticas, empresas que fazem equipamentos, máquinas de exames, próteses... todos recebem dinheiro. O Estado, os contribuintes pagam a todos eles. Se uma empresa constrói uma infraestrutura às suas custas, tem direito a geri-la. O que é preciso é que se negoceie os preços e condições com o privado, que se assegure a qualidade - se elas forem inteligentes vão querer um negócio de longo prazo e prestar os melhores cuidados ao melhor preço; se não forem, podem ser substituídas por outra."

Importante é que o Estado foque a despesa naquilo de que as pessoas precisam - e isso não é só tratar doentes. É garantir cuidados primários, acompanhamento, rastreios, diagnóstico atempado e prevenção que possibilite uma velhice ativa. "Temos de começar a tratar a saúde, não apenas a doença", resume Hans, que defende que isso vem da educação para estilos de vida mais saudáveis. "Em Londres, por cada estação de metro que nos afastamos do centro a população tem menos um ano de esperança de vida", exemplifica, para mostrar a relação entre educação e saúde.

Neste tema, a telemedicina já dá uma ajuda preciosa para nos vigiarmos e melhorarmos comportamentos, usando gadgets, mas também pelas consultas à distância e pela personalização. "Inteligência artificial, tratamento de dados, o European Data Basis e afins vão permitir, por exemplo, determinar o melhor tratamento para cada pessoa tendo em conta as suas especificidades." A saúde ganha eficácia e a ligação entre unidades do espaço europeu permite melhor resposta com menos esforço dos cidadãos.

Como deve então abordar-se o debate na Europa? Hans Martens não vê que seja seu papel dar soluções. Apenas recomenda que se observe as melhores práticas, se discuta o que está em causa e se centre o debate no valor para o cidadão. "Temos de ver a questão central sem ideologia ou preconceito, conscientes de que o melhor para nós - pessoas, governos, países - é termos uma população saudável. Temos de olhar para a questão demográfica e ver que modelo resistirá no longo prazo com maior grau de igualdade e justiça social. E isso passa por um plano que integre todos, que generalize o acesso em tempo útil à saúde."
Onde se pede desculpa por um dia de atraso

Tendo vivido muitos anos em Bruxelas. Hans Martens elogia o serviço de saúde belga como um dos mais eficientes do mundo. "Têm uma capacidade imensa e quando se tem problemas pode-se simplesmente entrar em qualquer hospital, sem sequer saber se é público ou privado. Quando a minha mulher teve cancro da mama, o diagnóstico foi feito numa quinta-feira e chamaram-nos ao hospital para pedir desculpa porque não operavam à segunda, pelo que tínhamos de esperar por terça, um dia, pela cirurgia", conta. O tempo é fundamental em casos destes: "Uma espera de dois ou três meses pode significar metástases por toda a parte e o serviço de saúde cuida para que não haja atrasos. Entre diagnóstico e operação não passa uma semana."

No campo dos exemplos que os diferentes países devem olhar com cuidado e ver como os podem aproveitar, destaca um estudo feito pelo governo alemão à eficácia da cirurgia à próstata. "Concluiu-se que a taxa de sobrevivência dos operados no sistema geral era igual à de uma clínica de Hamburgo que se dedica exclusivamente a essa atividade. Porém, pesados os efeitos na vida pós-intervenção, entre os operados na dita clínica não havia casos de incontinência, impotência, dor... O valor retirado para o paciente era muito maior."

A mensagem é que os fatores para avaliar a saúde têm de ser vistos com independência e abrangência. Por exemplo, a média de dias de internamento considerada eficaz na UE ronda os cinco dias (em Portugal são nove), mas se esses valores se cumprem e depois a taxa de regresso ao hospital é grande, é porque não serve.

2 comments:

  1. Isto é muito pertinente.
    Não se percebe porque motivo a ADSE não comparticipa teleconsultas, por exemplo!

    ReplyDelete
  2. Comparticipa. Em 2020 tive duas consultas dessas comparticipadas. É preciso que o hospital tenha um protocolo com a ADSE e depois é preciso fazer certos procedimentos. Em ambos os casos ligaram-me do hospital a explicar o que fazer - é um processo com várias fases de marcar a consulta e depois confirmar e isso.

    ReplyDelete