January 19, 2025

Querem cancelar as humanidades?



Queixamo-nos de Trump e de Musk e das pessoas se deixarem enganar pela desinformação e irem atrás de discursos populistas ou de propaganda mas ao mesmo tempo vamos apagando a formação de um pensamento crítico e das ferramentas culturais para avaliarmos a cultura, os valores, a identidade, etc. e substituimo-las por formações em tecnologias e cálculo de fazer dinheiro. Naturalmente que as tecnologias são fundamentais, mas para que servem as tecnologias para enfentrar as alterações climáticas se os políticos que as devem implementar as negam? Porque é que há médicos a negar o benefício das vacinas? O que faltou nas suas educações científicas? Conhecimento da história, pensamento crítico, literatura...


Querem cancelar as humanidades?

Carlos Ceia

Há uma percepção crescente de que as humanidades são menos relevantes para enfrentar desafios urgentes, como as alterações climáticas ou a inovação tecnológica, e reduz-se o seu financiamento.

A crise actual no financiamento público para a investigação nas humanidades nos países europeus é uma questão insignificante para a opinião pública e para vários governos europeus. A história não é nova na nossa pós-modernidade. Motivada por factores sociais, económicos e políticos mais amplos, esta posição política reflecte uma tendência de desfavorecimento das humanidades para que seja possível reforçar o orçamento de áreas científicas ligadas directamente ao crescimento económico, como as áreas STEM (Ciências, Matemática, Informática, Engenharia, Indústrias Transformadoras e Construção). É uma agenda que os políticos avaliam como proveitosa, porque se convencem de que as humanidades contam muito pouco nas urnas.

Muitos governos europeus têm reduzido os orçamentos para o ensino superior e a investigação, afectando desproporcionalmente as humanidades. O financiamento da investigação científica está cada vez mais ligado a resultados mensuráveis e utilidade económica e cada vez menos relacionado com aquilo que a ciência pode trazer à formação cultural e humanista de cada cidadão. Os investigadores em humanidades dependem frequentemente de bolsas precárias e de curta duração, em vez de um financiamento institucional estável.

Existe uma percepção política crescente de que as humanidades são menos relevantes para enfrentar desafios sociais urgentes, como as alterações climáticas ou a inovação tecnológica, e, por isso, reduz-se descaradamente a sua prioridade nos esquemas de financiamento nacionais e europeus. As humanidades precisam de tempo para deixarem a sua marca que não é mensurável da mesma forma com que se mede a produtividade nas áreas STEM. Essa marca humanista é sempre mais duradoura, quando é protegida e consegue atravessar séculos. Hoje, esta marca vale muito pouco para os poderes políticos, que não enxergam nada para além dos seus mandatos.

A Alemanha criou o programa Excellence Strategy, concebido para financiar as melhores universidades, mas beneficiando desproporcionalmente as disciplinas STEM, oferecendo pouco apoio às humanidades; o Reino Unido tem assistido a cortes significativos no financiamento às humanidades, particularmente após a reestruturação do financiamento do ensino superior na década de 2010, dando prioridade à investigação aplicada nas ciências exactas e reduzindo significativamente recursos para os departamentos de humanidades, como em 2021 quando o Governo britânico propôs uma redução de 50% no financiamento para cursos de artes e humanidades no ensino superior; em França, a Agence Nationale de la Recherche (ANR) tem sido criticada por favorecer projectos STEM e ignorar as humanidades; a Dinamarca introduziu reformas que ligam o financiamento das universidades às taxas de emprego dos graduados, o que afectou desproporcionalmente as humanidades, pois os diplomados destas áreas, em regra, demoram mais tempo a encontrar emprego ou trabalham em funções menos quantificáveis; a Academia Húngara de Ciências reduziu drasticamente o financiamento para investigação em humanidades em favor das áreas STEM. E por aí fora.

Podíamos acrescentar as opções do programa Horizon Europe, que financia projectos competitivos no espaço europeu, cujos resultados são invariavelmente em favor de projectos de larga escala com impacto societal imediato, marginalizando projectos focados exclusivamente nas humanidades. Consultem-se os resultados do Pilar II: Desafios Globais e Competitividade Industrial Europeia e perceberão como a prioridade é proteger as áreas STEM e a investigação aplicada, deixando poucas oportunidades para projectos focados nas humanidades. Os programas europeus de financiamento que ainda se focam nas humanidades são cada vez menos inclusivos nos orçamentos globais. Tais programas, como por exemplo o cluster Cultura, Criatividade e Sociedade Inclusiva (que pertence ao Pilar II), acabam por convergir em apoios em áreas muito específicas e com mais impacto comunicacional, como os estudos sobre migrações, memória histórica e o impacto da transformação digital nas democracias europeias. Outros programas mais focados nas humanidades, como o Humanities in the European Research Area (HERA) e o DARIAH (Digital Research Infrastructure for the Arts and Humanities) dificilmente podem competir com as grandes áreas STEM em termos orçamentais.

Num momento em que se aproxima a conclusão do processo de avaliação das unidades de I&D organizada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), e quando sabemos já que mantém o mesmo orçamento de 105 milhões de euros por ano do ciclo de avaliação anterior – o que diz bem dos desígnios pouco ambiciosos do país que numa década não investe nem mais um euro na ciência que aqui se faz –, correm mais do que rumores de que as humanidades também vão ser canceladas em Portugal, porque é necessário reforçar as áreas STEM. Se tal se confirmar, será uma machadada na nossa construção cultural enquanto país que se quer desenvolvido

A marginalização das humanidades comprometerá sempre as oportunidades de trabalho interdisciplinar, que é essencial para enfrentar desafios sociais complexos. Não é possível compreender esses desafios sem as humanidades. Não será nunca possível compreender a raiz da maior parte dos problemas que tanto preocupam os políticos sem uma forte formação humanista. E nem sequer é possível compreender a importância de todas as ciências sem o pensamento humanista que as fundou.


Se querem mais pensamento crítico nas ciências, devem apostar numa maior consciência cultural e numa melhor capacidade para compreender aquilo que conseguimos fazer enquanto pensadores. Esta é base de todas as ciências e as humanidades permitem que essa base comece a ser construída. Se as cancelarmos, se as asfixiarmos nas suas oportunidades de financiamento para que também possam produzir conhecimento novo, são todas as ciências que perdem e jamais poderemos ser o país desenvolvido que ambicionamos ser.

Público

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