Querem cancelar as humanidades?
Há uma percepção crescente de que as humanidades são menos relevantes para enfrentar desafios urgentes, como as alterações climáticas ou a inovação tecnológica, e reduz-se o seu financiamento.
A crise actual no financiamento público para a investigação nas humanidades nos países europeus é uma questão insignificante para a opinião pública e para vários governos europeus. A história não é nova na nossa pós-modernidade. Motivada por factores sociais, económicos e políticos mais amplos, esta posição política reflecte uma tendência de desfavorecimento das humanidades para que seja possível reforçar o orçamento de áreas científicas ligadas directamente ao crescimento económico, como as áreas STEM (Ciências, Matemática, Informática, Engenharia, Indústrias Transformadoras e Construção). É uma agenda que os políticos avaliam como proveitosa, porque se convencem de que as humanidades contam muito pouco nas urnas.
Podíamos acrescentar as opções do programa Horizon Europe, que financia projectos competitivos no espaço europeu, cujos resultados são invariavelmente em favor de projectos de larga escala com impacto societal imediato, marginalizando projectos focados exclusivamente nas humanidades. Consultem-se os resultados do Pilar II: Desafios Globais e Competitividade Industrial Europeia e perceberão como a prioridade é proteger as áreas STEM e a investigação aplicada, deixando poucas oportunidades para projectos focados nas humanidades. Os programas europeus de financiamento que ainda se focam nas humanidades são cada vez menos inclusivos nos orçamentos globais. Tais programas, como por exemplo o cluster Cultura, Criatividade e Sociedade Inclusiva (que pertence ao Pilar II), acabam por convergir em apoios em áreas muito específicas e com mais impacto comunicacional, como os estudos sobre migrações, memória histórica e o impacto da transformação digital nas democracias europeias. Outros programas mais focados nas humanidades, como o Humanities in the European Research Area (HERA) e o DARIAH (Digital Research Infrastructure for the Arts and Humanities) dificilmente podem competir com as grandes áreas STEM em termos orçamentais.
Num momento em que se aproxima a conclusão do processo de avaliação das unidades de I&D organizada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), e quando sabemos já que mantém o mesmo orçamento de 105 milhões de euros por ano do ciclo de avaliação anterior – o que diz bem dos desígnios pouco ambiciosos do país que numa década não investe nem mais um euro na ciência que aqui se faz –, correm mais do que rumores de que as humanidades também vão ser canceladas em Portugal, porque é necessário reforçar as áreas STEM. Se tal se confirmar, será uma machadada na nossa construção cultural enquanto país que se quer desenvolvido
A marginalização das humanidades comprometerá sempre as oportunidades de trabalho interdisciplinar, que é essencial para enfrentar desafios sociais complexos. Não é possível compreender esses desafios sem as humanidades. Não será nunca possível compreender a raiz da maior parte dos problemas que tanto preocupam os políticos sem uma forte formação humanista. E nem sequer é possível compreender a importância de todas as ciências sem o pensamento humanista que as fundou.
Se querem mais pensamento crítico nas ciências, devem apostar numa maior consciência cultural e numa melhor capacidade para compreender aquilo que conseguimos fazer enquanto pensadores. Esta é base de todas as ciências e as humanidades permitem que essa base comece a ser construída. Se as cancelarmos, se as asfixiarmos nas suas oportunidades de financiamento para que também possam produzir conhecimento novo, são todas as ciências que perdem e jamais poderemos ser o país desenvolvido que ambicionamos ser.
No comments:
Post a Comment