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September 17, 2023

Os médicos portugueses entendem que são os "juízes morais das mulheres" e escolhem os direitos constitucionais a que elas podem aceder



Em IVG, o 'V' significa 'voluntária' que é uma palavra que se refere à 'vontade livre', à escolha fundada no livre arbítrio. Porém os médicos portugueses, na sua maioria, impedem as mulheres de serem agentes livres e não se inibem de lhes guilhotinar a autonomia.

Em Portugal a lei despenalizou o aborto mas deu aos médicos o poder de julgar moralmente as mulheres através de uma lei de objecção de consciência A La Carte. A maioria dos médicos são objectores de consciência e só realizam o aborto se a vida da mulher estiver em risco de vida. Alguns também o praticam em caso de violação, mas nem todos, há umas centenas que se recusam. É aquela ideia de que, 'se o macho pôs lá a semente', como eles dizem, a mulher tem obrigação de deixá-la crescer.

O que a maioria dessa minoria de médicos que pratica a IVG não admite de maneira nenhuma é que as mulheres peçam para fazer um aborto nas primeiras 10 semanas de gestação (o que chamam, 'a pedido da mulher') e portanto, negam-se. Assim, temos uma lei que permite fazer a IVG mas os médicos entendem que as mulheres não devem ser auto-determinadas, cívica e moralmente e impedem-nas, na prática, de exercer os seus direitos e de ter acesso à saúde. 

Parece que somos o único país onde se legalizou a IVG mas depois se encontrou uma maneira de, na prática, se impedir que as mulheres exerçam os seus direitos: quanto maior é a autonomia da mulher, mais objeções os médicos portugueses encontram à IVG. 

Os tais médicos objectores da IVG até às 10 semanas, não só são um obstáculo ao direito à saúde das mulheres como pressionam os médicos não-objectores a recusarem esse direito às mulheres.
O ministro da saúde é um desses machistas patriarcais que entendem que eles é que sabem como as mulheres devem viver a sua vida e a que cuidados de saúde podem aspirar.
Como se pode ter confiança nestes médicos que olham as mulheres como menores mentais e entendem que lhes cabe a eles determinarem as suas vidas?


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A percentagem de hospitais com valência de obstetrícia que fazem algum tipo de interrupção de gravidez é de mais de 80%. Só seis hospitais não oferecem este cuidado de saúde: quatro no continente e dois nas Regiões Autónomas (ambos nos Açores).
Isto porque há sete unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que fazem abortos, mas não os até às 10 semanas de gestação, habitualmente denominados "por vontade da mulher"- para os distinguir das outras IG legais, que, sendo igualmente efetuadas a pedido da mulher, apresentam razões médicas ou resultam de crimes de violação.

De acordo com o que o DN conseguiu apurar, a objeção de consciência seletiva terá sido criada, aquando da regulamentação da lei, por receio das autoridade de saúde de que, se a objeção só fosse possível "em bloco" - ao ato do aborto em si -, deixasse de haver médicos suficientes para levar a cabo as interrupções de gravidez por "motivos médicos". Tal significa que desde logo se antecipou que haveria mais tendência nos profissionais de saúde para censurar as motivações das mulheres que para rejeitar a morte do feto.

Ora isso, como sublinha Teresa Violante no texto citado acima, significa que o profissional de saúde "não objeta ao ato em si mas a praticá-lo em determinadas circunstâncias". E a constitucionalista, investigadora na Universidade Friedrich-Alexander (Alemanha), prossegue: "A objeção de consciência absoluta representa uma reivindicação de imunidade legal prevista na legislação que isenta funcionários de praticar um ato, independentemente das circunstâncias. No contexto do aborto, a objeção de consciência seletiva coloca os funcionários na posição de juízes morais do comportamento das mulheres."

Tal, considera a jurista, não pode ser permitido: "A objeção de consciência seletiva permite a possibilidade de julgar em que circunstâncias a mulher merece a proteção assegurada na lei democrática. Nas democracias constitucionais, esse julgamento só cabe aos legisladores e só pode ser formulado em termos gerais. Porque expõe as pessoas grávidas ao julgamento das suas atitudes e comportamentos pelo pessoal médico, reforçando estereótipos e estigmas. Mesmo se as mulheres forem remetidas para outros profissionais, existe um dano indireto à sua dignidade." E Violante conclui: "É difícil ver como a objeção de consciência seletiva pode ser compatível com a aplicação do princípio da não discriminação."

O  coordenador da região Sul do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal, Luís Mós, concorda.
Em maio, em entrevista ao DN, afirmava que o juízo de valor que identifica na objeção ao aborto até às dez semanas por parte de médicos e enfermeiros que por exemplo não objetam à IG por anomalia fetal pode ter como resultado obstruir o acesso à IVG segura por parte de muitas mulheres, colocando em risco o seu direito à saúde.

E exemplificava com o caso de um dos sete hospitais portugueses que fazem abortos desde que não "por vontade da mulher": "O Amadora-Sintra está numa zona com muitas imigrantes e é tudo mais difícil para elas, porque o encaminhamento é feito através dos centros de saúde, e muitas não estão lá inscritas. Até as nacionais que não têm médico de família se veem aflitas neste processo", preocupa-se Mós, lamentando que o hospital nem sequer veja "as senhoras das 10 semanas": "Nem a datação da gravidez [necessária para perceber se está dentro do prazo legal] é feita ali, mandam-nas para a Clínica dos Arcos (clínica privada lisboeta com a qual o hospital tem protocolo). São umas 200 por mês que são enviadas para lá. Custa-me fazerem isso, até porque na clínica a interrupção é cirúrgica, o que implica sempre mais risco que a medicamentosa."


Miguel Areosa Feio: há uma enorme percentagem de médicos objetores, e a constituição, ao arrepio da lei, de uma "objeção dos serviços" - ou seja, a decisão oficiosa de um serviço hospitalar de recusar a IG, funcionando como pressão sobre os próprios profissionais de saúde.

Numa situação muito semelhante à portuguesa - 35% dos hospitais sem serviço de IG e 70% dos médicos objetores - a Itália foi, como o DN reportou, por duas vezes condenada pelo Comité dos Direitos Sociais do Conselho da Europa (com o voto de Portugal) por violação do direito à saúde e por discriminação no direito à saúde das mulheres que querem abortar, assim como por discriminação no direito ao trabalho dos médicos não objetores.

As últimas diretrizes da Organização Mundial de Saúde (2022) sobre aborto estipulam, como lembra Teresa Violante no texto citado, que a objeção de consciência pode tornar-se indefensável se se provar ser impossível regulá-la "de uma forma que respeite e proteja plenamente os direitos de quem procura fazer uma interrupção de gravidez".

Miguel Ricou, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, considera ser "altura de pensar numa regulamentação objetiva e clara." Diz este especialista em Bioética, co-autor de um estudo sobre objeção de consciência publicado em julho (Conscientious Objection and Other Motivations for Refusal to Treat in Hastened Death: a Systematic Review): "Nunca vi uma reflexão pública adequada sobre a objeção. Fala-se dela como um direito absolutamente adquirido e inquestionável, e até pode ser, mas não se pode deixar que ponha em causa os outros valores, ou direitos, envolvidos. É preciso discutir, pôr as pessoas a refletir sobre o que é realmente objeção de consciência."

Um desafio que, aparentemente, não estará na mente do ministro da Saúde. Em entrevista à RTP na quarta-feira passada, Manuel Pizarro admitiu que, "muitas vezes, o problema é uma percentagem muito grande dos profissionais de um serviço serem objetores de consciência", mas acrescentou de imediato: "Isso tem de se respeitar". E, questionado sobre a necessidade de existência de registo dos objetores, respondeu: "Devo dizer que não tenho a certeza absoluta de que seja necessário haver uma lista."