Estou a trabalhar a epistemologia nas turmas do 11º ano, mais propriamente o problema da origem do conhecimento, o que é feito a partir dos grandes representantes das correntes opostas: o racionalismo e o empirismo (Kant aparece depois como o conciliador). O grande representante do racionalismo nesta questão é Descartes, o fundador da época moderna na Filosofia.
Apesar do programa retalhar Descartes para o reduzir a uma argumentação, eu nunca o retalho porque as obras dele estão cheias de pistas para pensar e melhorar a experiência humana que tanto eram válidas no seu tempo, como hoje. A Filosofia tem essa característica de ter uma dezena de grandes pensadores que abriram caminhos novos no pensamento da (e na) experiência humana e, se bem que nenhum deles tenha conseguido dar uma resposta definitiva e acabada às próprias questões (que são profundas e complexas), deram respostas válidas e/ou delimitaram os problemas de uma maneira intemporal. E vendo bem, qual é o saber que conseguiu dar uma resposta definitiva aos problemas que aborda...? Pois, nenhum. E a maioria até se orgulha da velocidade com que as respostas caducam e chama a isso, o progresso.
Há pouco tempo ouvi uma pequena entrevista de Hanna Arendt onde ela diz que a época contemporânea tem a virtude de possibilitar que possamos ir beber ideias a qualquer fonte (não somos obrigados a credos ou ideologias - na maior parte do mundo) e ainda de termos a oportunidade de poder pensar, restando apenas a decisão de o fazer, já que a educação se alargou e as fontes de informação estão disponíveis ao público. Ninguém tem poder de impedir outro de pensar (desde que ele de facto, aprenda a pensar) e o pensamento tem essa característica de estar aberto à averiguação alheia e à crítica. A única autoridade no pensar é a razão.
É certo que para aceder aos textos dos filósofos é necessário aprender a linguagem filosófica como acontece em qualquer outra área específica do saber humano que ultrapasse o senso comum. Para compreender um livro de física ou de sociologia ou de medicina ou de direito, é necessário estar por dentro dos contextos, da linguagem, etc. e a maioria, se pegasse num livro desses sem nenhuma iniciação não percebia nada porque essas obras, se bem que estejam escritas para fazer avançar o conhecimento e a vida das pessoas, abordam problemas complexos que requerem estudo próprio e, por isso, não estão escritas, salvo excepções, para serem lidas pelas pessoas comuns, mas pelos especialistas. Por isso há professores e comentadores que traduzem, por assim dizer, as ideias complexas numa linguagem acessível à compreensão de quem não as estudou.
Há excepções. Galileu, por exemplo, que queria convocar o apoio do público como maneira de se defender dos ataques da Igreja, escreveu em italiano, em vez de latim e publicou os escritos na imprensa em forma de diálogos (à maneira platónica) fáceis de seguir e com uma linguagem acessível.
Também Descartes escreve este Discurso do Método numa linguagem muito acessível, porque isso cumpre os seus objectivos de divulgar uma nova maneira de organizar o pensamento (um método) que ele quer que se torne a norma - o que aconteceu, pelo menos nas ciências em geral. A obra de Descartes é tão importante que desde que ele pensou (aqui e nas Meditações) o problema do conhecimento e da verdade no conhecimento, nunca mais se falou de outra coisa, por assim dizer.
Estou, como disse no início, a trabalhar este tema e, porque este livro de Descartes é muito rico em ideias e insights, tirei cópia das partes mais importantes (três folhas) e é com elas que trabalhamos o assunto, com muito proveito, porque a época que Descartes quer fechar, na questão do conhecimento -e fechou-, o Renascimento, tem muitos paralelismos com os nossos dias, de maneira que os alunos reconhecem muito bem os problemas.
O Renascimento é uma época de grande cepticismo e relativismo no conhecimento. Para o homem comum, pior ainda do que Galileu contradizer a autoridade da Igreja católica e do Papa com as suas investigações e teorias acerca do Cosmos, foi o movimento de Reforma que partiu do seio da igreja e a estilhaçou em inúmeras versões religiosas contraditórias. De repente todos se aperceberam que a 'verdade' da igreja católica era uma entre outras e que nenhuma delas conseguia fornecer razões de ser mais verdadeira ou sequer, melhor que as outras.
Descartes quer muito virar a página desses 100 anos de cepticismo e discussão relativista e começar a construir um caminho de certezas, claras e úteis, não só nas ciências, mas também na vida de cada um.
Logo no início deste livrinho ele diz que o bom senso (a razão) é a coisa mais bem distribuída (é universal) e que, se existem tantas teorias contraditórias sobre tudo e muitas delas inúteis, se deve a que cada um conduz o pensamento com um método próprio, que não se deu ao trabalho de investigar e, ainda, que cada um considera coisas diferentes ao analisar as questões. Daí este Discurso do Método, que ele não impõe mas cujas virtudes partilha e defende: explica porque o construiu, como o construiu, em que consiste e porque é bom a conseguir construir certezas em vez de dúvidas sem fim.
Lembrei-me disto ao ler este artigo de Jürgen Habermas (on the Ukraine - A Plea for Negotiations) onde ele apela a que se façam negociações com Putin, sacrificando as partes da Ucrânia que a comunidade internacional entender que devem ser sacrificadas de maneira a salvar a face dos ucranianos e de Putin.
Os sociólogos têm esta característica de analisar as sociedades independentemente dos homens bio-psiquícos que as constituem. Como se fossem construções abstractas.
Não vou discutir aqui a extensa argumentação dele sobre os pacifistas, os alemães que entendem que se deve negociar, estarem a morrer ucranianos e russos, a experiência da Grande Guerra, o prejuízo da economia da Europa, etc. Quem quiser que a leia.
Só chego ao fim e valorizo ainda mais Descartes que tão bem explicou o que agora parece óbvio, acerca de cada um tomar em consideração coisas diferentes (as que lhe importam) e de isso dar origem a erros de juízo, como por exemplo, desconsiderar completamente certas coisas obrigatórias de ponderar nesta questão, como o facto da Rússia ter como objectivo explícito aniquilar a Ucrânia enquanto país e os ucranianos enquanto povo.
Habermas, claramente, se vivesse durante o tempo nazi teria sido um dos apaziguadores que defendiam (e eram muitos) que se devia fazer a paz com a Alemanha nazi para poupar vidas e não escalar a guerra. Onde estaríamos agora? E mais: se a Alemanha é hoje um país democrático e desenvolvido, isso deve-se a todos os que contrariaram os apaziguadores e deram a vida pela liberdade.
As pessoas muito à esquerda, como em geral não valorizam a liberdade, não a levam em consideração na construção dos juízos.
Descartes foi um pensador extraordinário e aprende-se muito com ele, concorde-se ou não com o seu Racionalismo.
No comments:
Post a Comment