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October 26, 2022

dessemelhança

 

Ser diferente é ser igual
a dessemelhança
no passo
uma luz
uma esperança, um facho
sozinho no seu compasso
expõe-se ao olhar do cínico
do medíocre, do devasso
arrisca-se
des-faz-se

bja

January 18, 2022

Irrupção do irracional

 


O homem ignora sempre tudo da irracionalidade que constitui a essência da sua actividade silenciosa, não sabe nada da «irrupção das vielas» a que está exposto, disso nada pode saber, pois a cada momento da sua vida se encontra no interior de um sistema de valores, sistema cuja única finalidade é encobrir e dominar o irracional que constitui o suporte da vida empírica, ligada à terra; não só a consciência, mas o próprio irracional, para falarmos em linguagem kantiana, é um veículo que acompanha todas as categorias — é o absoluto da vida, que, com todos os seus instintos, suas volições, suas emoções, caminha lado a lado com o absoluto do pensamento.

  — Hermann Broch

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Finalmente lembrei-me do texto que me queria lembrar hoje de manhã. Isto vem a propósito de estar na sala de DTs com um colega mais novo (novo de idade e recentemente chegado à profissão - portanto, um espécime em vias de extinção) que tem a hora de DT ao mesmo tempo que eu. Este ano é a primeira vez que ele tem uma DT e trocamos impressões. Então, ele contava-me que tem um amigo que teve um filho há pouco tempo e que o avisou, 'prepara-te para ficares irracional' - Como assim irracional? 'daqui a uns anos vais acreditar em tudo o que o teu filho te disser da escola e dos professores, mesmo as coisas mais estrambólicas'. LOL fartámos de rir porque começámos a contar cenas - ele já tem algumas para contar e eu tenho muitos anos de cenas para contar :)) Depois fiquei a pensar que já tinha lido um texto sobre a irrupção do irracional. Encontrei-o.


September 07, 2021

As Mulheres Têm fios Desligados

 


AS MULHERES TÊM FIOS DESLIGADOS
.
“(...) e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar o estore)
ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas, pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarradas à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
— O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é saber que durante uma semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
— As mulheres têm fios desligados
e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez. Meu Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
— Já não gosto de ti
se informam
— Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-gagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, com o Che Guevara ou eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhe caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
— O problema não está em ti, está em mim
a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Schubert. De Ovídio. De Horácio, de Virgílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca. Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti, está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
— Mereces melhor que eu
levou como resposta
— Pois mereço. Rua.
(...)”
.
.
— ANTÓNIO LOBO ANTUNES (Lisboa, 1 de Setembro de 1942), escritor e psiquiatra, na crónica homónima, publicada na revista Visão, de 31 de Julho de 2008, p. 12,

July 18, 2021

Este texto está bem caçado - os portugueses e o tempo 🙂

 


Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.

Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.

Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.

Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»

Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.

Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.

A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».

Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.

Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».

Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».

O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.

Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.

As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.

«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».


    — Miguel Esteves Cardoso / 2001

May 18, 2021

Incompletos



Je suis sur la terre
A la dérêve

Toi qui es
Cloué à la terre
Sans rêves
Ne trouble pas
Ma dérive
Dérêve

Mon ciel
est fou d'orange
Je suis a la dérêve d'anjes






imagem da net - deserto da Namíbia


November 29, 2020

É da alma do banqueiro que o trigo irradia

 


Pois é por demais evidente
que o banqueiro e o cliente
não são massa da mesma gente. 

O banqueiro pede milhões
é empreendedor quer investimento
o cliente pede tostões 
não tem visão 
não se lhe dá provimento
está certo 

pois é por demais evidente
que o banqueiro e o cliente 
não são massa da mesma gente. 

Dá-se o caso que o banqueiro 
tem alma e refinamento
e o cliente, por certo só 
tem corpo
não precisa de muito alimento
aconselha-se jejum 
e aquietamento.
É por isso muito justamente que o primeiro
sendo banqueiro 
'é' realmente e o outro,
é simulacro, 
por natureza indigente.
O banqueiro brinca às casinhas
como antigamente as meninas,
junta e separa dinheiro
convida as amiguinhas
enquanto isso o cliente é seu servente
pois sem banqueiro 
na banca
saia o planeta da rota 
a chocar com o sol ardente
e não mais pão haveria
pois é da alma do banqueiro
que o trigo irradia...

bja

December 15, 2019

Começar o dia a ler um texto bonito e bem escrito






Passei grande parte da minha vida a observar os arvoredos do Minho

Estou convencido de que o mundo - ou seja, a baía de Moledo, a foz do Minho, o monte de Santa Tecla, o forte da Ínsua e os pinhais em redor - desaparecem na próxima semana. E, com estes elementos, tudo o que os cerca e onde me dizem que existe o resto do planeta, uma massa disforme de matéria pegajosa e em desagregação. Podia escrever isto depois de assistir, com uma fingida e hipócrita perplexidade, ao primeiro quarto de hora do telejornal de ontem – mas hábitos quase seculares, aliados à preguiça que parece ser uma arma de defesa dos Homem de várias gerações, impedem-me de escrever à noite, aquele período reservado à contemplação das horas que foram, do dia que desaparece, dos ruídos que se despedem.

Assim, tive de esperar que Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, recolhesse a segunda chávena do café de cevada matinal – que acompanha, há décadas, o par de torradas de pão de mistura –, para me lamentar acerca do desconcerto do mundo e das ameaças que, de um mês para o outro, tomaram conta da espécie humana. Nem uma coisa nem outra me incomodam grandemente, como já em tempos esclareci os meus benevolentes leitores – e voltar a um assunto não significa que estejamos a repeti-lo, mas apenas a insistir numa obsessão guardada com cuidado.

Passei grande parte da minha vida a observar os arvoredos do Minho e a não ocupar demasiado espaço na vida dos meus semelhantes. Sei distinguir a cor das folhas dos carvalhos brancos das cada vez mais raras ramagens das faias e bétulas que descem para os prados que delimitam o caudal do rio Minho, esse curso de água que fica bem nos tercetos derradeiros dos sonetos mais melancólicos. Por hábito e razoabilidade fui um homem poupado que desprezou o desperdício e aquilo que a minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdista da família, designa por "consumismo". Não viajei muito de avião nem sequer de carro. Gastei mais solas de botas do que o juízo dos meus semelhantes. E, como uma quinquilharia conservadora guardada no baú do Alto Minho, entre florações de mimosas e o Outono do pico das montanhas, aguardo que o mundo se conserve igualmente em condições.

Não me vejo a repetir as palavras do Tio Henrique, que, à sua maneira, era um ecologista dos Arcos de Valdevez – e que desejava que regressássemos ao que o mundo era há cinquenta ou sessenta anos antes da sua idade madura. Hoje, ninguém se contenta com a noite que desce sobre os pinhais nem com a mediocridade dos povoados que apagam as luzes às onze da noite. Uma coisa não vem sem outra. A luz das estrelas sobre a copa dos pinheiros de Moledo é uma lembrança que guardo até ao último dos meus dias.


António Sousa Homem