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July 18, 2022

Leituras pela manhã - A Arte É Para Ver O Mal (excertos)

 



art-is-for-seeing-evil


por Agnes Callard


Excertos:

Pense no que vê quando entra numa sala. Se estiver cansado, notará lugares onde se pode sentar; se tiver sede, notará copos dos quais pode beber; se estiver quente, notará janelas que pode abrir ou fechar. Se a sala pertence a alguém sobre quem gostaria de saber mais, o que vai saltar à vista são artigos - como livros - que oferecem pistas sobre a pessoa. O que vê é uma função do que lhe é útil naquela sala, dados os objectivos com que lá entrou. A maior parte do que está na sala passa-lhe ao lado. Como naquela famosa experiência da psicologia em que um homem vestido de gorila passeia entre um grupo de estudantes que passam uma bola entre eles e os sujeitos experimentais não reparam no gorila porque estão ocupados a seguir a instrução para contar o número de vezes que os jogadores de branco passam a bola. Toda a sua vida é assim.
(...)

Considere a história de Leontius na República de Platão:

Leontius, o filho de Aglaion, estava a subir do Pireu ao longo do exterior da Muralha Norte quando viu alguns cadáveres deitados aos pés do carrasco: Tinha apetite para olhar para eles mas, ao mesmo tempo, ficou enojado e virou-se para o lado. Durante algum tempo lutou consigo mesmo e cobriu o rosto, mas, finalmente, dominado pelo apetite, abriu bem os olhos e correu em direcção aos cadáveres, dizendo: "Olhai por vós próprios, seus infelizes malvados, enchei-vos da bela visão!

Os olhos de Leontius, tendo varrido a paisagem à sua volta, iluminaram alguns cadáveres. Ele apressa-se a censurar os seus olhos como maus e nojentos - tal como, de uma forma mais geral, censuramos as bisbilhotices, as fofocas maldosas e tudo o que nos parece um exemplo de chafurdar voluntariamente na maldade. Leontius nega aos seus olhos um vislumbre da maldade por que anseiam e os seus olhos rebelam-se ao serem constrangidos desta forma. Talvez nós, como Leontius, julguemos esta rebelião como uma instância de algum tipo de perversão ou doença. Mas outra forma de pensar sobre isto é que os olhos e algo na alma em geral, querem ver o que está lá - mas não deixamos que isso aconteça. Somos o censor da nossa própria realidade.
(...)
Na vida normal, a visão é sobrecarregada pela positividade: tendemos a apontar, alcançar, melhorar, apreciar e desfrutar. Há quase sempre algo que estamos a tramar e esse propósito distorce o nosso processo de observação. Quando as coisas à nossa volta não dão qualquer contributo prático - sem utilidade ou alegria - não nos chamam prontamente a atenção; quando os danos se recusam a tomar a forma amigável de obstáculos ultrapassáveis, esforçamo-nos por ignorá-los; quando os males não oferecem nenhuma face positiva, nenhum prazer compensatório, ordenamos a nós próprios que nos afastemos deles. Nadamos num mar invisível composto de tudo o que é irrelevante, inútil ou perverso.
(...)
Os poetas olham com atenção para aquilo que o resto de nós não consegue examinar; eles são os nossos olhos e ouvidos. De facto, há alturas em que o poder do poeta para confrontar aquilo de que o a maioria de nós se afasta, constitui uma fuga tão dramática dos limites humanos com que nos confinamos, que nos sentimos atraídos a descrevê-los [aos poetas] como tendo sido tocados por "uma centelha divina". Deus é, afinal de contas, aquele que vê o invisível. A partir de tudo o que li, a teoria de que os grandes romances fornecem uma orientação para a vida prática parece-me empiricamente menos bem fundada do que a teoria de que eles são, de uma forma ou de outra, divinamente inspirados.

Tenho admiração pelos poetas e pelo seu poder de revelar.