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November 14, 2025

Voltamos ao tempo em que o barbeiro da aldeia era o cirurgião?

 


Porque é que os médicos mais novos não estão dispostos a fazer sacrifícios? Porque os decisores e os pedagogos que nas últimos décadas desenharam as políticas educativas e os horizontes de vida que dela decorrem são pessoas que não pensam.

Passaram de um extremo ao outro. 

Passou-se de um sistema político e educativo em que as pessoas eram educadas exclusivamente no serviço aos outros para um sistema em que são educadas exclusivamente no serviço a si mesmas, com foco no direito a engrandecer o ego, a estar sempre em estado de felicidade/prazer e no direito a ser e fazer o que lhes apetece, exigindo a empatia alheia para todas as suas idiossincrasias. Aliás, como é sabido, os novos alunos já exigem entrar nos cursos de medicina por razões de empatia, essa palavra abracadabra que agora serve para exigir tudo. 

Ora, estes direitos não são compatíveis com a responsabilidade para com os outros, o empenho e o sacrifício que imensas profissões exigem. Mesmo em profissões que não exigem este sacrifício de horas pessoais como é o caso dos cirurgiões de que fala o artigo do post anterior, os novos trabalhadores não estão para se empenhar muito. 

Amigos e família de diferentes sectores já há tempos que se queixam que, por mais que se apaparique os novos trabalhadores, ao fim de um ano a trabalhar despedem-se para descansar (vivem em casa dos pais) ou para viajar. Ou faltam ao trabalho porque zangaram-se com a namorada e estão tristes e exigem empatia. É como se não vivessem numa sociedade em que todos dependemos de todos e temos deveres para com os outros.

Este novo modo de ser já se vê há muito tempo nas escolas. Muito, muito tempo: os alunos têm o direito a passar de ano sem terem ido às aulas, sem estudar, sem conseguir uma única classificação positiva, sem nenhum esforço, muitos sendo indisciplinados - se isso os fizer feliz. Diz-se aos alunos que não precisam de aprender dos professores que são de outra geração e que agora têm os conhecimentos à distância de um clique. Estas narrativas convencem os alunos e os pais que os acham pequeno génios.

Um exemplo que há uma dúzia de anos seria escandaloso mas agora é corriqueiro. Um aluno entra no 10º ano a dizer que quer ser médico, sempre foi o seu sonho (Está influenciado por séries da TV e uma ideia de ser um curso que lhe dá prestígio pessoal e muito dinheiro). É uma pessoa inteligente, mas está habituado a ter as melhores notas com o mínimo de esforço porque o ensino básico é o que se sabe. Depois, no decorrer das aulas, mostra não ter auto-disciplina, nem método de estudo e gostar de estar distraído. Os professores avisam-no de que aquela atitude de falta de respeito pelo trabalho e pelo conhecimento não é adequada para alunos que querem entrar em medicina, um curso que exige notas altas ao longo de todo o secundário, depois nos exames e depois uma grande capacidade de trabalho ao longo da vida. Em vez de aceitar o conselho de professores que já enfiaram centenas ou milhares de alunos em cursos de medicina e outros que exigem notas altas, queixa-se à mãe, a mãe queixa-se à DT que os professores não têm empatia com o filho e estão a destruir os sonhos do filho que sempre quis ser médico.

Portanto, não me surpreende nada esta notícia de que os alunos de medicina não querem trabalhar as horas necessárias para serem cirurgiões. Querem o lifestyle e o status mas sem o trabalho e o sacrifício que os acompanha. Fazem-me lembrar aquele aluno do 10º ano que um dia me perguntou, 'oh professora, como é que posso ter os seus conhecimento sem ter de passar por estes anos todos, com estas angústias todas?' 

A decadência dos padrões de qualidade da educação afecta-nos a todos. Todos vemos como todos os dias, médicos enviam grávidas para casa que duas horas depois têm os filhos na ambulância, no Uber ou meio da rua, no chão de pedra - ainda ontem aconteceu mais um; todos sabemos das cirurgias no Algarve que deixaram pessoas com deficiências para o resto da vida, por negligência grosseira. 

Precisamos de cirurgiões -a IA ainda não chegou ao ponto de os podermos dispensar- mas não queremos cirurgiões que nos matem na mesa de operações porque fizeram os cursos apelando à empatia e ao direito a ser feliz sem esforço e sacrifício. 

A cirurgia é um procedimento que vai contra todos os nossos instintos de sobrevivência. Aceitamos que alguém nos ponha inconscientes, vulneráveis e incapazes de defesa contra malfeitorias e depois nos espete uma faca, abra, corte, mexa nos orgãos, enfie tubos e outros geringonços lá para dentro. Não é o tipo de experiência que queiramos ter com alguém que não esteve disposto a estudar, a praticar, a aprender e não tem profissionalismo.

A medicina e, dentro dela, a cirurgia, não é um curso para toda a gente e é preferível haver menos cirurgiões mas bons, bem treinados e formados, que muitos e maus, daqueles que deixam as pessoas incapacitadas para a vida ou as matam, por falta de conhecimentos, de prática e de profissionalismo.

Acima de tudo, era necessário mudar as narrativas dos pedagogos e dirigentes que desenham as políticas de educação.

Um bom médico faz uma diferença abissal na vida da pessoa. Há três anos, andei um ano e meio com um problema de saúde, não só complicado mas que causava dores e ardores permanentes. A quantidade de médicos a que fui para que alguém me fizesse um diagnóstico... a quantidade de exames que fiz e de medicamentos que experimentei... nada. Andei esse ano e meio a trabalhar assim naquele estado e com o stress apareciam-me eczemas à volta da boca e dos olhos que dificultavam comer e tudo. Um dia uma médica recomendou-me uma colega que quando olhou para mim e viu o que se passava disse imediatamente, 'não sei como é que os meus colegas não perceberam logo o que é isto. Isto é isto e tal e tal e vamos resolver isso'. Nunca mais tive aqueles sintomas e nem consigo explicar o impacto que aquela médica teve na minha qualidade de vida.

Portanto, é necessário mudar as narrativas dos pedagogos e dirigentes que desenham as políticas de educação, sob pena de qualquer dia -já agora acontece- não termos médicos especialistas e muito menos cirurgiões. 
Voltamos ao tempo em que o barbeiro da aldeia era o cirurgião?

Porque é que os médicos mais novos não estão dispostos a sacrifícios




Porque é que os médicos mais novos não querem trabalhar as horas necessárias para serem... cirurgiões?

Henrique Raposo
Expresso

Boa tarde.

Há um ano, mais coisa menos coisa, causei uma certa polémica porque critiquei a geração mais nova dos médicos, a geração que agora tem um nome pejorativo: tarefeiros. Tive razão antes do tempo, devia ter feito esses textos só agora: agora, sim, parece que há uma abertura social ou cultural para se criticar esta atitude à “tarefeiro”, à “biscateiro” na medicina.

Até a Ordem dos Médicos critica, lembrando que há princípios éticos básicos nesta profissão, que, por razões óbvias, é diferente de todas as outras. Sucede que os médicos da Gen-Z e até da geração millennial têm alguma dificuldade em compreender esse espírito de corpo e sacrifício inerente à profissão. Porque, médicos ou não, esta geração tem de facto um problema laboral, vê na ética de trabalho uma usurpação do lifestyle.

Durante aqueles dias de polémica, fui criticado em público por jovens médicos e elogiado em privado por médicos mais velhos, que, na linha de Eduardo Barroso, veem algo de quase criminoso no que a nova geração anda a fazer ou a não fazer. Álvaro Beleza vai no mesmo caminho. Aliás, este debate entre mais velhos e mais novos atravessa a classe médica em todos os países. Quando os médicos novos americanos pedem mais equilíbrio trabalho/lazer, os mais velhos reagem e relembram que “that’s not the job”. O lifestyle não é para os médicos. Tal como não é para polícias, por exemplo, ou bombeiros sapadores, ou artistas, ou jornalistas.

Portanto, parece-me que a base do problema aqui é que há de facto um problema entre a Gen-Z e o trabalho. Parece mesmo que o trabalho é mais stressante para a Gen Z do que o desemprego - não é piada, é um trabalho sério do jornal “The New York Times”. Esta aversão ao trabalho de uma geração torna-se obviamente ainda mais grave quando falamos de médicos.

Sim, há que criticar, não os médicos em geral, mas uma geração mais nova que recusa fazer horas, recusa fazer os horários “chatos”, recusa até fazer especialidades e que – o que é ainda mais grave – está a colocar em causa a posição de cirurgião.

Como dizia há dias na Renascença o presidente da associação de administradores hospitalares, muitos jovens médicos não querem muito simplesmente trabalhar as horas necessárias para serem cirurgiões; não acham atrativo, acham que é demasiado trabalho. Isto é de uma gravidade imensa, tal como é imenso o silêncio sobre o tema. Isto devia gerar polémica e urgência no debate. Esta falta de cirurgiões (presente e futura) parece-me um problema ainda mais grave do que os interesses instalados dos tarefeiros.

No sector privado, os responsáveis dizem a mesma coisa: os médicos mais novos não querem trabalhar como as velhas gerações, mas parece que não se passa nada, aceita-se isto como normal ou inevitável. E, de resto, há uma contradição neste discurso dos responsáveis, públicos e privados. Por um lado, uma responsável respeitadíssima como Isabel Vaz diz que é preciso perceber que os médicos mais novos não querem trabalhar tanto, mas depois diz também que eles, os médicos, são como uma tropa de elite. Mas como é que se entra numa tropa de elite sem uma ética de trabalho e de serviço, como é que se entra numa tropa de elite se recusamos fazer horas e dar tudo pela missão?

Mais: como é que pode haver especialistas e cirurgiões se não trabalharem as horas que as gerações anteriores trabalhavam? A resposta é que não há e não haverá. Eis portanto um dado gravíssimo que está por debater: em breve, teremos uma carência gravíssima de cirurgiões.

E repare-se que este problema não é só português, é de uma geração inteira no ocidente inteiro. Na Polónia, discute-se o envelhecimento dos cirurgiões e a falta de cirurgiões mais novos, pois os médicos da nova geração não querem o trabalho extra e acham a tarefa demasiado stressante. Ou seja, não querem a responsabilidade.

Na Alemanha é igual. Idem para o Canadá. Idem para Inglaterra.

Aliás, no Reino Unido há uma desistência da própria profissão.Idem para os EUA. Em breve, só nos EUA faltarão cerca de 25 mil cirurgiões. É uma mudança sísmica que põe em causa a saúde da população inteira e, repito, é impressionante que não se fale mais do assunto. Porque não me parece que o problema seja a falta de dinheiro. Há aqui um bloqueio cultural de uma geração que recusa simplesmente trabalhar o número de horas necessárias para se treinar e praticar cirurgia. E isto é algo que já se nota pelo menos desde 2010, o que significa que o problema também marca os millenials.

Para terminar, sobram quatro grandes questões.

Primeira: se não queriam a responsabilidade e o stress da profissão, porque é que entraram nas escolas de medicina? Não será altura de mudarmos a forma como selecionamos os alunos das faculdades de medicina?

Segunda: um cirurgião veterano sente que a cirurgia em geral está a ficar mais perigosa para os doentes; os mais velhos sentem que os mais novos estão impreparados, algo registado nos EUA e em Portugal pelos mais velhos.

Terceira: com uma geração de médicos assim, ancorados no ethos da Gen-Z, não há sistema de saúde que aguente, cá e lá fora.

Quarta: tendo em conta esta deserção dos próprios médicos, será que a profissão de médico não será uma das primeiras grandes vítimas da Inteligência Artificial?

Um abraço,
Henrique