November 14, 2025

Porque é que os médicos mais novos não estão dispostos a sacrifícios




Porque é que os médicos mais novos não querem trabalhar as horas necessárias para serem... cirurgiões?

Henrique Raposo
Expresso

Boa tarde.

Há um ano, mais coisa menos coisa, causei uma certa polémica porque critiquei a geração mais nova dos médicos, a geração que agora tem um nome pejorativo: tarefeiros. Tive razão antes do tempo, devia ter feito esses textos só agora: agora, sim, parece que há uma abertura social ou cultural para se criticar esta atitude à “tarefeiro”, à “biscateiro” na medicina.

Até a Ordem dos Médicos critica, lembrando que há princípios éticos básicos nesta profissão, que, por razões óbvias, é diferente de todas as outras. Sucede que os médicos da Gen-Z e até da geração millennial têm alguma dificuldade em compreender esse espírito de corpo e sacrifício inerente à profissão. Porque, médicos ou não, esta geração tem de facto um problema laboral, vê na ética de trabalho uma usurpação do lifestyle.

Durante aqueles dias de polémica, fui criticado em público por jovens médicos e elogiado em privado por médicos mais velhos, que, na linha de Eduardo Barroso, veem algo de quase criminoso no que a nova geração anda a fazer ou a não fazer. Álvaro Beleza vai no mesmo caminho. Aliás, este debate entre mais velhos e mais novos atravessa a classe médica em todos os países. Quando os médicos novos americanos pedem mais equilíbrio trabalho/lazer, os mais velhos reagem e relembram que “that’s not the job”. O lifestyle não é para os médicos. Tal como não é para polícias, por exemplo, ou bombeiros sapadores, ou artistas, ou jornalistas.

Portanto, parece-me que a base do problema aqui é que há de facto um problema entre a Gen-Z e o trabalho. Parece mesmo que o trabalho é mais stressante para a Gen Z do que o desemprego - não é piada, é um trabalho sério do jornal “The New York Times”. Esta aversão ao trabalho de uma geração torna-se obviamente ainda mais grave quando falamos de médicos.

Sim, há que criticar, não os médicos em geral, mas uma geração mais nova que recusa fazer horas, recusa fazer os horários “chatos”, recusa até fazer especialidades e que – o que é ainda mais grave – está a colocar em causa a posição de cirurgião.

Como dizia há dias na Renascença o presidente da associação de administradores hospitalares, muitos jovens médicos não querem muito simplesmente trabalhar as horas necessárias para serem cirurgiões; não acham atrativo, acham que é demasiado trabalho. Isto é de uma gravidade imensa, tal como é imenso o silêncio sobre o tema. Isto devia gerar polémica e urgência no debate. Esta falta de cirurgiões (presente e futura) parece-me um problema ainda mais grave do que os interesses instalados dos tarefeiros.

No sector privado, os responsáveis dizem a mesma coisa: os médicos mais novos não querem trabalhar como as velhas gerações, mas parece que não se passa nada, aceita-se isto como normal ou inevitável. E, de resto, há uma contradição neste discurso dos responsáveis, públicos e privados. Por um lado, uma responsável respeitadíssima como Isabel Vaz diz que é preciso perceber que os médicos mais novos não querem trabalhar tanto, mas depois diz também que eles, os médicos, são como uma tropa de elite. Mas como é que se entra numa tropa de elite sem uma ética de trabalho e de serviço, como é que se entra numa tropa de elite se recusamos fazer horas e dar tudo pela missão?

Mais: como é que pode haver especialistas e cirurgiões se não trabalharem as horas que as gerações anteriores trabalhavam? A resposta é que não há e não haverá. Eis portanto um dado gravíssimo que está por debater: em breve, teremos uma carência gravíssima de cirurgiões.

E repare-se que este problema não é só português, é de uma geração inteira no ocidente inteiro. Na Polónia, discute-se o envelhecimento dos cirurgiões e a falta de cirurgiões mais novos, pois os médicos da nova geração não querem o trabalho extra e acham a tarefa demasiado stressante. Ou seja, não querem a responsabilidade.

Na Alemanha é igual. Idem para o Canadá. Idem para Inglaterra.

Aliás, no Reino Unido há uma desistência da própria profissão.Idem para os EUA. Em breve, só nos EUA faltarão cerca de 25 mil cirurgiões. É uma mudança sísmica que põe em causa a saúde da população inteira e, repito, é impressionante que não se fale mais do assunto. Porque não me parece que o problema seja a falta de dinheiro. Há aqui um bloqueio cultural de uma geração que recusa simplesmente trabalhar o número de horas necessárias para se treinar e praticar cirurgia. E isto é algo que já se nota pelo menos desde 2010, o que significa que o problema também marca os millenials.

Para terminar, sobram quatro grandes questões.

Primeira: se não queriam a responsabilidade e o stress da profissão, porque é que entraram nas escolas de medicina? Não será altura de mudarmos a forma como selecionamos os alunos das faculdades de medicina?

Segunda: um cirurgião veterano sente que a cirurgia em geral está a ficar mais perigosa para os doentes; os mais velhos sentem que os mais novos estão impreparados, algo registado nos EUA e em Portugal pelos mais velhos.

Terceira: com uma geração de médicos assim, ancorados no ethos da Gen-Z, não há sistema de saúde que aguente, cá e lá fora.

Quarta: tendo em conta esta deserção dos próprios médicos, será que a profissão de médico não será uma das primeiras grandes vítimas da Inteligência Artificial?

Um abraço,
Henrique

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