Uma estratégia que tenho nas aulas é passar um filme em cada período. Umas vezes passo-o antes de iniciar o tema novo, outras depois da introdução, outras no fim, dependendo de querer que o filme sirva para introduzir questões do tema que quero que os alunos explorem por si mesmos (com a minha orientação, claro); ou de o tema ser complexo e ter de fazer primeiro uma introdução aos conceitos fundamentais e depois o filme servir de contextualização e reflexão sobre os conceitos ou, se quero que a discussão do filme consolide os conteúdos de um tema que trabalhámos.
O que me importa é escolher um filme que seja suficientemente rico em questões e pistas de reflexão para permitir voltar a ele recorrentemente à medida que se progride no tema/s, permitindo fazer a sua ligação à vida; finalmente, escolho sempre um filme que permita crescimento individual e 'sabedoria' para a vida, pois é isso que interessa, penso, num curso de Filosofia no ensino secundário. Não é fazer dos alunos especialista em Filosofia ou mestres de argumentação mas, acima de tudo, dar-lhes instrumentos para poderem usar a Filosofia como suporte de reflexão nos caminhos da vida.
Hoje em dia passo um filme porque é a maneira de garantir que todos os vêem e o discutem mas no passado, quando os aluno liam livros -agora são muito poucos os que o fazem- mandava-os ler um livro para depois discuti-lo.
(Nessa altura trabalhava-se uma obra filosófica inteira em cada ano. O Discurso do Método de Descartes que se dava no 11º ano, por exemplo, é um livrinho com o qual se aprende tanto, tanto, tanto. Espreme-se dali tanto sumo precioso... enfim...)
A literatura, a boa literatura tem essa característica de ser um motor de crescimento individual e passar subterraneamente, muitos ensinamentos para vida.
Por exemplo,
O Conde Monte Cristo, de Dumas. Fui dar há pouco tempo com um artigo sobre a obra (de, Ana Sharife) que mostra muito bem esse caracter formador da literatura.
Aprendemos com
O Conde Monte Cristo que o conhecimento liberta, que não é preciso ser-se rico ou poderoso para se ter dignidade moral, que a violência não é uma boa resposta à violência, que a vingança não traz felicidade, que o poder egoísta não traz felicidade, que a vaidade não traz felicidade, que o perdão nos desacorrenta e que o mundo não é justo e temos que saber lidar com a injustiça, o mal e o sofrimento. É uma obra que ensina a conhecer-se a si mesmo, a reconhecer o seu próprio potencial moral e de autonomia. Aprendemos ainda que os pensadores que nos precederam nos ajudam na medida em que fornecem orientação nos caminhos da vida.
Alexandre Dumas encerra um marinheiro inocente numa prisão horrível, condenado por um crime que não cometeu, para transformá-lo, a partir dessas injustiças, numa pessoa completamente diferente. Antes da injustiça, Dantès era um homem bom por ingenuidade e acaso mas no fim do livro ele transformou-se num indivíduo bom por consciência deliberada e isso faz toda a diferença.
Dumas escreve a obra numa França corrompida política e financeiramente, no meio de uma crise moral e espiritual, sem direitos humanos, onde os ricos e poderosos abusavam dos pobres e amiúde os encarceravam injustamente para prosseguir os seus interesses particulares.
Dantès, um marinheiro de valor, a ponto de ascender a capitão e de casar com a bela condessa de Morcef, está completamente alheio à inveja que desperta nos que o rodeiam. É preso no dia da boda, acusado anónima e falsamente pelo seu amigo, de ser um agente bonapartista. O cativeiro dura 14 anos.
No inicio do cativeiro, Dantès desespera com a ideia de que nunca sairá daquele inferno. Ele está preso quando Napoleão regressa do primeiro exílio, naqueles 100 dias que se acabaram na batalha de Waterloo.
Tudo muda quando conhece o abade Faria, um preso político que ocupa a cela contígua. Faria é um monge, professor de Filosofia, ensina-lhe História, Matemáticas, Línguas, Filosofia, Física e Química. Ensina-lhe o valor do caráter e mostra-lhe que a dignidade moral não tem que ver com posição ou riqueza. Dantès começa a sua transformação.
A amizade -genuína- com o abade é a primeira pedra na fundação da sua transformação. Este fala-lhe de Epicuro, Séneca, Maquivel, Pitágora, Juliano, Fabre d’Olivet, da filosofia prática que ajuda a enfrentar as dificuldades da vida e a alcançar a serenidade. É o abade quem lhe revela o tesouro e é a via da sua libertação.
Que essa amizade ou amor entre eles seja mais valiosa que todos os tesouros que alimentam as vaidades, é uma grande lição de crescimento.
No resto da obra, Dantès nunca comete actos de violência. Ajuda os que o ajudaram e foram bons para ele e arranja maneira de que os que o atraiçoaram paguem pelos seus actos. No entanto, está numa senda de vingança e só quando um pobre inocente morre por causa de uma das suas vinganças ele percebe que não lhe compete a ele fazer justiça e que a justiça não vem da vingança. Este é um 'recado' que Dumas envia aos leitores.
No fim do livro Dantès perdoa ao mais culpado de todos os que o atraiçoaram que foi aquele que falsamente o denunciou e enviou para a prisão por um crime não cometido. É nessa altura que Dantès se converte num ser humano que não apenas é capaz de amar a vida, apesar das injustiças, da maldade alheia e do sofrimento, mas também é capaz de superar os desejos de vingança e alcançar a felicidade, fazendo com que os outros também possam eles mesmos alcançá-la.
Este livro, lido na adolescência, ali pelos 10, 12 anos, deixa uma impressão profunda, porque somos cativados por histórias onde os bons conseguem vencer os obstáculos e os maus são castigados e, ao mesmo tempo, deixa muitas sementes para o crescimento pessoal.
E é por isso, para além do prazer de ler uma obra bem escrita, que é uma maneira do formar o gosto literário, que a boa literatura é fundamental, nomeadamente na idade em que estamos em crescimento e toda a boa orientação tem um impacto profundo e duradouro. Um adolescente pode esquecer-se de uma lição de Geografia, mas nunca mais se esquece do
Conde de Monte Cristo e das suas lições.
Ler é uma actividade que os pais podem incentivar nos filhos neste tempo de quarentena. Ou até seguir o hábito antigo de fazer uma sessão de leitura, em família.
É uma maneira de pôr os miúdos pequenos a gostar de ler.