Ontem apanhei um post no FB de um pai indignado (ao que se lhe juntaram outros nos comentários) com uma folha de avaliação da professora/educadora (não sei ao certo como se chama) da filha no infantário.
A folha tinha três espaços para descrever aspectos distintos das crianças e num deles vinha escrita uma recomendação com descrição que o pai sublinhou. Dizia mais ou menos isto: a ......., o nome estava tapado, tem alguma dificuldade em respeitar os géneros. Diz que os rapazes não podem brincar com os brinquedos dela porque têm os seus de meninos. Diz que alguns dos meninos estão mal vestidos porque estão de cor-de-rosa e o rosa é para as meninas. Também diz aos meninos que não devem chorar porque os homens não choram e diz que nunca viu o pai a chorar.
O pai que pôs isto no FB estava indignadíssimo com o que chama endoutrinação ideológica das crianças, pois são são os pais e mais ninguém quem diz o que as crianças devem aprender e quais os valores com que devem viver, no que era apoiado por comentadores, todos eles indignados por a educadora ter escrito que a criança devia aprender a respeitar os 'géneros'.
A educação escolar reproduz de algum modo os problemas da sociedades multiculturais: valores em conflito radical terem que conviver em equilíbrio num contexto comum, que é a sociedade e, neste caso particular, o infantário ou a escola. Muitas famílias recusam fazer uma revisão racional dos seus valores culturais e culpam as escolas por fazerem-no. Entendem os filhos como sua propriedade, como o cão lá de casa que treinam como querem, sem deixar espaço para que a pessoa se determine. É por isso que em certas culturas não deixam as raparigas ir à escola, por exemplo, a partir de uma certa idade.
Todos os anos tenho alunos de raízes culturais diferentes. Embora na aula de filosofia não sejamos anti-nada, somo anti-anti-direitos humanos, se é que me faço entender. Não somos anti-religião ou anti-qualquer partido político, por exemplo, mas somos anti-falta-de-respeito-pelos-direitos-humanos. Ora, há várias posições culturais-valorativas que são anti-direitos humanos e, nesses casos, a única coisa a fazer é discutir racionalmente as questões e expôr as suas contradições.
Os alunos mais difíceis neste aspecto são os que pertencem a certas religiões ou facções religiosas porque são de um dogmatismo feroz. Falo dos Testemunhas de Jeová, por exemplo, que têm um nível de argumentação tão baixo que é difícil lá chegar. Certas facções do catolicismo muito machistas e atávicas, como esta deste pai que se indigna com a educadora por ela chamar a atenção para a maneira machista como a educam. Já tive alunos que se queixaram de as colegas os distraírem por usarem saias curtas ou pais queixarem-se de o professor da filha pôr as mãos nos bolsos das calças enquanto fala e eles considerarem isso um gesto inapropriado (querem dizer, sexual) e até das professoras distraírem os alunos por terem o descaramento de ter peito e o levar para as aulas como se uma pessoa pudesse fazer alguma coisa acerca disso... enfim, talvez usar burca para se ficar disforme e os adolescentes não olharem.
Por incrível que pareça as alunas muçulmanas que tenho tido, embora poucas, são muito menos dogmáticas que outros, talvez por as famílias quererem integrar-se na nossa sociedade.
A educação pública é o meio mais eficaz na luta contra os extremismos mas os sucessivos governos nunca compreenderam isso e reforçam com as suas palavras e comportamento, a falta de respeito e a desconfiança que muitos pais têm pela escola e pelos professores que consideram obstáculos à endoutrinação dos filhos. Portanto, lutamos muitas vezes contra o dogmatismo extremo dos pais e, como se isso não bastasse, também contra o dogmatismo daqueles que nos tutelam.