Em 1944, Fritz Heider e Marianne Simmel, especialistas no campo da psicologia cognitiva e do comportamento, levaram a cabo uma experiência publicada no, American Journal of Psychology: observaram o que hoje é conhecido por, 'A Ilusão de Heider-Simmer.'
Mostrou-se a um grupo de voluntários uma sequência em movimento composta por dois triângulos e um círculo contidos num espaço em branco e pediu-se-lhes que descrevessem o que viam. Todos os indíviduos disseram que nas figuras geométricas que se aproximavam umas das outras e chocavam entre si antes de afastar-se, haviam percebido sucessivos episódios de amizade e amor, marcados por discrepâncias, rivalidades, enganos e invejas. Houve quem tivesse falado de heróis e antagonistas e quem se tenha aventurado a descrever a personalidade dos personagens imaginários e dos seus problemas.
Tratava-se simplesmente de dois triângulos e um círculo. Porém, nenhum dos indivíduos participantes respondeu, 'figuras geométricas'.
Todos somos dados a interpretar a realidade que nos rodeia atribuindo-lhe emoções, desejos, objectivos e, até, biografias. Se algo à nossa volta se move -e nos move- imediatamente sentimos necessidade de ordenar o que percebemos, de dar sentido ao caos. E, graças ao poder das palavras, transformamos a vida em narrativas que nos fazem sentir um pouco mais seguros e um pouco menos perdidos.
«Conta-me uma história» foi sempre o primeiro instinto -a primeira necessidade- dos seres humanos. Para vencer o medo do desconhecido, da escuridão, dos fantasmas, da morte: não nos pedem as crianças que lhes contemos histórias antes de adormecer, antes que apaguem a luz?
Quantos relatos leva em si o étimo da palavra, «ler» -em italiano leggere- da qual derivam, «leitura», «leitor», «lenda» e «lição»?
O «livro», no entanto, procede, etimologicamente, do substantivo latino, liber, literalmente, a «membrana delgada entre a madeira e a casca de uma árvore» que em tempos se usava para escrever.
Trata-se de um homógrafo [palavras de significados diferentes, que se escrevem e se pronunciam de modo idêntico] do adjectivo latino liber, «livre», diferenciando-se dele apenas pela duração da vogal, i, breve no primeiro caso e longa no segundo.
No grego antigo, o verbo λέγω (/légo/), que nos remete, directamente, para o latim, legere, tanto ignificava, «colher» (papoilas num prado, cerejas da árvore) como «escolher» (como numa biblioteca, em bicos de pés, com o braço estendido para o cimo da estante) ou ainda, «contar», «dizer»; por este motivo, no presente, alterna muitas vezes com um verbo mais complexo, φημί (/phemí/), que indica exclusivamente o acto de falar.
A palavra para expressar o prazer da «leitura» provém de uma raíz indo-europeia, lag- que depois passou a ser pan-românica. Pois bem, se os franceses, ao mesmo tempo que «devoram» com gosto um livro (os livros enchem a barriga da necessidade de contos) dizem, lire e os italianos leggere, os espanhóis dizem leer, os portugueses, ler, os alemães lesen, maravilhoso nos parece o lituano, lèsti que originalmente significava, «apanhar com a picareta».
O mesmo que fazem os leitores numa livraria -autêntica loja de guloseimas, para o que ama as histórias e os contos- que para eleger um livro, o «escolhido» de entre milhares de títulos, deslizam um olhar agudo de águia pelas estantes, de alto a baixo.
Da mesma raíz procede a coisa mais preciosa que temos, a «palavra», derivada do grego, λέξις (/léksis/), que por sua vez dá origem a «léxico» λέξικον (/léksikón/), forma neutra substantivada de um adjectivo grego em que se subentende o substantivo, βιβλίου (/biblíon/), «o livro das palavras». E ao mesmo tempo, «o livro das histórias» e, sobretudo, «o livro das eleições».
É obrigatório citar aqui o dicionário A Greek-English Lexikon, chamado também, Liddell & Scott, Liddell-Scott-Jones, referido vulgarmente por LSJ. É o dicionário com mais autoridade no mundo no que respeita à língua grega antiga, publicado pela Oxford University Press, pela primeira vez em 1819 e que já vai na sua nona edição.
Subdividido em três variantes, ou melhor, em três tamanhos, dada a sua massa volumosa, The Little Liddell, The Middle Liddell & The Great Scott, a obra é acompanhada por uma história. O prestigiado reitor da universidade, Christ Church of Oxford, infatigável supervisor do Dicionário (ao ponto de ter aprovado oito edições numa só vida), Henry Liddell, foi o pai de Alice, a menina que inspirou a história fantástica do reverendo, escritor e matemático, Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo pseudónimo, Lewis Carroll.
Quantos significados numa só palavra e numa raíz tão pequena... seguindo a pista do étimo, «ler» percebemos que sem palavras não é possível tomar alguma decisão. Seríamos como cegos, seres primitivos, incapazes de dizer as coisas, como o célebre prólogo de Cem Anos de Solidão de Garcia Marquez:
o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las era preciso indicá-las com o dedo
Contar o que sentimos com palavras honestas e precisas como uma íntima eleição, é o que nos pede, ou implora, esta etimologia. Assunção de responsabilidade: se o dizer das coisas tem o poder de as tornar reais, somos então, realmente, em palavras, isto é, em actos, isto é, em vontade.
do livro, Etimologías Para Sobreviver Al Caos de Andrea Marcolongo, ed. taurus (com adaptações)