September 09, 2024

Uma entrevista com Andreas Eshete (1942-2024)

 

(excerto final)


WOUBSHET: Enquanto alguém mergulhado no pensamento ocidental, em particular na filosofia ocidental, quais são as sensibilidades etíopes que trouxe para as tradições ocidentais?

ESHETE: É uma pergunta difícil. Não tenho a certeza. Uma delas é que me lembro de Ato Tekle Tsadiq Mekuria, um historiador de renome, durante o período Derg. Eu estava a dar aulas na Universidade de Penn e ele veio visitar-me. Era suposto Filadélfia ser uma cidade histórica, por isso levei-o ao local onde se reuniram os primeiros congressos e onde foi redigida a Constituição e a Declaração de Independência. Mostrei-lhe o Sino da Liberdade e assim por diante. Ato Tekle Tsadiq olhou para o Sino da Liberdade e perguntou: “Quantos anos tem isto? e eu disse-lhe e a sua reação foi: ‘Bem, isto não é história, é apenas um artefacto contemporâneo’.
O sentido da história é algo que os etíopes têm. Se pegarmos na escrita etíope mais antiga e pegarmos na escrita americana, esta última é de ontem. Por isso, penso que uma coisa que um etíope traz ao pensamento ocidental é a profundidade e a extensão do passado. 
Coisas como Aksum e outras fazem parte da nossa auto-imagem pessoal, não apenas da auto-imagem nacional. Por isso, quando pensamos em civilização, por exemplo, não estamos simplesmente a pensar na Ford. Isso ajuda. 
Isso em filósofos ilustres que não são do Ocidente. Não é por acaso, na minha opinião, que Amartya Sen, ilustre economista-filósofo, se debruçou sobre a fome e a pobreza na Etiópia e foi por isso que ganhou o Prémio Nobel, não por economia técnica. 

WOUBSHET: Ao considerar as riquezas da cultura etíope, onde é que se dirige para procurar uma sensibilidade que lhe fale a si pessoalmente, mas que também diga algo sobre a cultura como um todo?

ESHETE: Certamente a literatura da Igreja, da qual não conheço o suficiente, mas deixe-me dar-lhe um exemplo de uma santa etíope. É uma história que Ephraim Isaac gosta de repetir e que eu adoro. Ela viveu durante o Zemene Mesafint, por vezes chamado a Era dos Príncipes, referindo-se a uma época em que toda a gente lutava contra toda a gente.
Estava profundamente perturbada com o facto de o seu país estar a ser destruído, por isso começou a rezar: “Senhor, por favor, traz a paz ao meu país” - uma grande oração, é importante.  E há muitas pessoas assim, mais modernas, como Mengistu Lemma, Eskundir Bogossian - pessoas que eu conheço. 
Conheço-os muito bem, são grandes inspirações e não só porque eram etíopes, mas também muito influenciados pela cultura cosmopolita. 
Afinal de contas, estava a mencionar as coisas que nos influenciam a partir do Ocidente, mas é claro que se pegarmos no melhor e no mais original da cultura americana, o que temos é africano. É o jazz. É o blues. É a escrita, a poesia e outras formas de arte que são influenciadas pelo jazz, blues, etc. Por isso, mesmo quando olhamos para eles não vemos algo estranho, pois o que nos inspira é o que eles fazem de melhor.

WOUBSHET: Uma semelhança clara que vejo entre as culturas afro-americana e etíope é o nexo sagrado-secular, que é decisivo em ambas. Pode dizer-nos alguma coisa sobre esta relação? Pergunto isto, em parte, porque sinto que na Etiópia de hoje, as pessoas, especialmente os jovens, estão a tornar-se cada vez mais rígidas e dogmáticas nas suas crenças religiosas.

ESHETE: Se pensarmos no caso americano, a América deve ser, de longe, a sociedade moderna mais religiosa. Mas uma área em que, como diz, o laço sagrado-profano é fértil e enobrecedor, e não degradante, é a das igrejas e da cultura afro-americana em geral. Não sou religioso, mas sempre me senti em casa nas igrejas afro-americanas, quer se trate da igreja Abyssinian em Nova Iorque, ou da que havia na esquina de onde vivia, em Filadélfia, onde havia uma igreja abolicionista, a primeira igreja abolicionista Estava perfeitamente à vontade com a música, com o serviço, o entusiasmo, a mentalidade comunitária, o empenhamento cívico que vem destas igrejas, enfim, tudo. 
O que eu acho escandaloso em termos de religião, e não tem nada a ver com o sagrado, são os evangelistas políticos a quem devemos Bush.  
Penso que agora veremos muito disso aqui mesmo na Etiópia - o sagrado, tal como aparece, por exemplo, na música de Yared ou na pintura imortal do crucifixo de Gebre Kristos, é maravilhoso. Só um etíope, penso eu, teria feito este tipo de coisa - um crucifixo expressionista alemão, mas altamente etíope, porque na Etiópia também somos um pouco como as outras religiões antigas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, no sentido em que não glorificamos a imagem, incluindo a imagem de Cristo, e ele tem esta cruz sem Cristo, certo? E é isto.
Ao mesmo tempo, temos agora os chamados despertares religiosos evangelistas modernos por todo o lado, no Islão, na Igreja Ortodoxa Etíope e nas igrejas protestantes. E, para mim, uma caraterística marcante em todos eles é o facto de o sagrado ser mínimo nestes movimentos religiosos, apesar de toda a parafernália e fanatismo. 
Penso que há duas concepções de secularismo. Uma é a americana, que adoptámos de forma crítica na nossa Constituição como a visão da separação, da separação estrita. A outra conceção do laicismo, para a qual os indianos são atraídos, embora também não tenha funcionado muito bem para eles, não é a da separação estrita, mas a da criação de uma espécie de cultura laica inter-religiosa, em que há uma sobreposição de diferentes valores religiosos. 
Trata-se de algo que existia tradicionalmente na Etiópia, em locais como Wollo, Harar ou Keren. Existe esta cultura de sobreposição, pelo menos entre muçulmanos e cristãos ortodoxos. É esse o nosso objetivo, esse tipo de secularismo, um secularismo que aproveita o melhor dos valores religiosos de todas as grandes religiões, que têm muito em comum e, por isso, não há qualquer problema.

WOUBSHET: Foi testemunha do século XX e de grandes mudanças nos assuntos humanos num período de tempo tão curto. Na Etiópia, viu e participou em duas das maiores mudanças do país. Fiquei surpreendido com o seu comentário de há pouco, segundo o qual não imaginava que o regime do imperador se desmoronasse, que o seu direito divino de governar terminasse. Para terminar, deixe-me perguntar o seguinte: Tem ideias sobre o futuro? Que tipo de século nos espera? Que tipo de regimes poderão surgir?


ESHETE: Na última destas mudanças, por exemplo, toda a gente estava convencida de que o socialismo tinha sido posto de lado a nível internacional e que estava fora da agenda pública, que agora somos todos democratas, que agora somos todos capitalistas. Isto não foi há muitos anos. 
O capitalismo não parece tão bom agora, pois não? E não parece que seja uma doutrina tão duradoura, certo? 
Todos os Prémios Nobel são convidados a apresentar uma nova conceção do capitalismo, o que eu acho que é uma admissão de derrota. Não ouvi uma única pessoa dizer uma coisa inteligente sobre o futuro do capitalismo desde este desastre patético. Digo patético porque parece não haver uma boa razão por detrás dele, exce'to a ganância e ideias estúpidas como a de ganhar muito dinheiro com dívidas. Por isso, continuo a ser socialista e o socialismo ainda tem futuro por boas razões. 
Não me regozijo com o fracasso do capitalismo, mas aprecio a ideia de que aquilo que, segundo os nossos amigos ocidentais, é suposto ser a forma social duradoura, a única que se adequa aos nossos melhores conhecimentos teóricos e às nossas melhores opiniões sobre a evolução, não está a funcionar.
Portanto, isto dá esperança - por causa das coisas de que falámos antes-, que as pessoas sejam forçadas a pensar em novas possibilidades imaginativas. 
Não podemos simplesmente dizer que o objetivo das regras, o objectivo da condução da vida pública, incluindo a vida de cada um de nós, é polir e aperfeiçoar o capitalismo. Não pode ser esse o caso. Portanto, pode não ser socialismo, mas temos de pensar em novas possibilidades. Sabemos que esta não está a funcionar e provavelmente não pode ser reparada - pelo menos na minha opinião.

fonte: jstor.org


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