September 09, 2024

Mais uma pessoa a 'dizer coisas' sobre a educação

 

Preocupa-me mais a pesada mochila às costas, no sentido literal. Todos os anos se fala do problema, que me parece pré-histórico, mas, na verdade, continua a não haver uma solução. São mesmo necessários tantos livros? Na era digital, com as aplicações à distância de um clique, continuamos a assistir à epopeia dos alunos carregados com quilos de material. A imagem, passe a hipérbole, lembra-me Obélix a transportar os menires, mas esse valia-se de uma poção mágica. As nossas crianças, que se saiba, não caíram num caldeirão com poderes. 
E resisto a entrar a fundo pelos cinzentos programas letivos, aos meus olhos demasiadamente amarrados ao passado e que impedem as crianças de se soltarem. São demasiadas horas sentados em salas de aulas, muitas vezes a ouvir as cansadas músicas da Carochinha, o que não abona a favor da saúde física e mental.

Arnaldo Martins - JN
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Vejamos, há aqui dois problemas diferentes que o articulista não percebeu (talvez porque não sabe sobre o tema de que fala) e, por isso, não soube separar: o 1º é o de saber de os livros em papel são melhores, do ponto de vista pedagógico, que os digitais; o 2º é o de pensar em maneiras de diminuir o peso que os alunos trazem às costas, nas mochilas cheias de livros.

Quanto ao 1º problema.
O autor refere os países nórdicos como pioneiros-modelos da gratuidade dos manuais escolares mas 'esquece-se' de referir que também são pioneiros em ter voltado aos livros em papel. Como sabemos, os livros digitais, bem como as aplicações digitais, induzem a passividade e a dependência emocional. Um livro ou um manual escolar não são livros para se ler, passivamente, como se fossem um romance, são suportes de trabalho, onde se escreve, onde se anota, onde se resolvem problemas, etc. Um manual escolar bem utilizado, começa o ano limpinho e chega ao fim do ano todo escrito - a questão da escrita e da anotação tem grande importância nos processo de memorização, interiorização e processamento dos conhecimentos, mas talvez este articulista também não esteja por dentro desses assuntos. Portanto, a questão de substituir manuais físicos por digitais tem que ver-se do ponto de vista pedagógico e não do ponto de vista da moda ou de slogans superficiais sobre a era do digital. 
Ainda ontem li uma opinião segundo a qual os alunos sentem-se melhor, menos ansiosos, a ser ensinados por uma aplicação de IA sozinhos diante do computador que numa sala onde têm de interagir com pessoas... que tipo de trabalho terão, um dia, estes alunos, educados a só saber interagir com máquinas, educados para não saberem lidar com outras pessoas e com as ansiedades próprias das relações humanas? E que tipo de seres humanos e de cidadãos serão estes, ligados emocionalmente a máquinas e desligados dos outros seres humanos reais? Ditadores narcisistas sociopatas? - como o exército de narcisistas que vive em Silicon Valley? Num tempo em que se fala de educação para a colaboração e para a empatia, os mesmos que a defendem, querem um ensino que é a sua negação em todos os aspectos.

Quanto ao 2º problema.
Há várias maneira de diminuir o peso dos manuais escolares. A mais eficaz, do meu ponto de vista, é obrigar as editoras a imprimir os livros por secções ou capítulos. Um aluno só estuda um tema de cada vez e não precisa de andar com todo o currículo às costas. É o equivalente a estar a trabalhar na letra 'B' da enciclopédia e ser obrigado a carregar todos os seus 20 volumes. O que acontece nos dias de hoje é as editoras publicarem imensos cadernos acessórios aos manuais como maneira de os encarecer e os alunos andarem com aquilo tudo às costas. Portanto, pode ter-se um manual dividido por temas e o aluno, em vez de carregar 200 páginas por cada manual, só carrega aquelas 10 páginas correspondentes ao tema que está a abordar nesse momento nas aulas (mais 2 ou 3 páginas dos exercícios próprios do tema) de cada disciplina, desse dia. Reduz o peso de... não sei, 500 ou 600 páginas, para 45 ou 50, por dia.
Outra estratégia que completava esta, seria a de os aluno todos terem cacifos nas escolas, não a pagar, como é agora -nas que os têm- mas gratuitos. Como a maioria deles vai de carro para a escola, se assim que chegarem puserem os livros no cacifo e ficarem só com os que necessitam, aula a aula, acaba-se o problema do excesso de peso.

Portanto, os problemas das escolas referentes aos alunos têm que ver-se sempre primeiramente na vertente pedagógica, a que diz respeito à aprendizagem, pois esse é o primeiro objectivo da escola.

E já agora, quanto a esta afirmação gratuita do autor:

E resisto a entrar a fundo pelos cinzentos programas letivos, aos meus olhos demasiadamente amarrados ao passado e que impedem as crianças de se soltarem.

O que significa os programas serem "cinzentos"? Não serem como os jogos de PSP, os vídeos de Tik Tok e a pornografia em que os alunos estão viciados e em frente dos quais passam seis ou oito horas por dia, passivamente, a serem manipulados? Devemos acabar com o ensino da escrita e da leitura na primeira classe, dado que são aprendizagens muito difíceis e morosas -como tudo o que se refere à educação e à aprendizagem consistente- que requerem horas e horas de prática 'cinzenta', aborrecida?

E o que significa os "alunos estarem amarrados ao passado", nos programas? Aprender a nossa história é inútil e impede que estejamos no presente? Pelo contrário. Aprender o que se passa no mundo em termos físicos (geográficos, geológicos, históricos, etc),e mentais é (que ideias nos trouxeram até aqui, porque é que umas falharam, que méritos têm outras como a da ciência, etc.) é inútil para formar pessoas conscientes e capazes de decidir e fazer escolhas no mundo actual? Pelo contrário.

E o que é isso das crianças "não se poderem soltar"? Por acaso estão presas? A ideia de que a aprendizagem impede a imaginação e a criatividade é um lugar-comum sem nenhum fundamento. A imaginação que não assenta em conhecimentos e técnicas estruturais definha e não cria nada. Quando vemos quem são os grandes cozinheiros ou arquitectos ou engenheiros ou poetas ou médicos, etc., o que vemos é que os melhores e os que mais inovam são os que têm conhecimentos -cinzentos- mais sólidos e profundos sobre os temas do seu trabalho e não os que se ficaram pelo giro, colorido, superficial.

Gostava mesmo que não dessem o microfone para falar de educação, a pessoas que nem sabem nada do assunto e nem sequer sabem dar bom uso de actividade à sua parte cinzenta de células (pun intended)

6 comments:

  1. O que querem é acabar com a leitura de 'Os Maias' e substituir por cenas de hoje em dia.

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    1. Uma coisa não tem que ver com outra. Pode ler-se Os Maias e literatura contemporânea.

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    2. Sim, mas a ideia é essa. Já houve uma tentativa mais aguda há uns anos, quando se substituiu a literatura por requerimentos e afins. A ideia de muito boa gente é eliminar mesmo a literatura, reduzindo o corpus textual aos dias de hoje.
      A minha cunhada, porque o filho não lê coisa nenhuma e é daqueles para quem pensar causa dor de cabeça, manifestou-se contra a leitura d literatura medieval e renascentista. Tentei explicar -lhe que aqueles poemas singelas abordam questões intemporais, como a velhice, o papel da mulher, a misoginia, que a cantiga de amigo retrata o sentir feminino de forma muito semelhante ao atual, desde a mentira amorosa, à autoimagem , à insegurança de um primeiro encontro ou de uma primeira relação sexual, etc.
      Foi inútil. As crianças sofrem.imenso, porque não é divertido, etc.

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    3. Já tive esse problema com um sobrinho do género. Hoje em dia paga o preço dessa maneira ignorante de ver as coisas.

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