April 26, 2024

Por falar em linguagem

 


Há bocado estava a falar com uma colega que ensina Português e comparávamos a situação catastrófica em que muitos alunos, cada vez mais, chegam ao 10º ano, do ponto de vista da linguagem, e não é apenas por não lerem e não conhecerem nenhuma palavra que não usem no quotidiano. É também, e sobretudo, porque não fazem o mínimo esforço para tentar pensar ou compreender as palavras. Já não têm a ambição do melhoramento individual.

Ela contava-me que deu um texto a uma turma do 10º para trabalharem. O trabalho começava em casa. Tinham de chegar à aula seguinte com o texto lido e com o significado das palavras que não conheciam anotado. Uma tarefa que até há poucos anos seria própria do 5º ano de escolaridade.

Metade dos alunos não leu, porque ler não é giro nem divertido. Dos que leram, metade não esteve para ir procurar o significado das palavras e os que foram procurar, foram ao primeiro site que lhes apareceu no google. 

Resultado: ninguém sabia o significado de muitas palavras do texto. Coisas simples como, 'estanque', 'periodicidade', 'irrefutável' e mais umas 4 ou 5 do mesmo grau de dificuldade.

Pior ainda, mesmo na aula, com a ajuda da professora, não foram capazes de extrair o significado das palavras pelo sentido da frase e do seu contexto. Não fazem o menor esforço. Ficam à espera que os professores façam jogos ou fichas lúdicas e divertidas para se darem ao trabalho de aprender qualquer coisa. 

O discurso oficial dos pseudo-pedagogos, completamente aceite pelas tutelas é de incentivo à passividade do estudante, embora digam o oposto. Os alunos devem esperar que os professores e adultos em geral os entretenham com actividades divertidas. É proibido o esforço e tudo o que contrarie as inclinações naturais e interesses pessoais. Claro que isto forma seres humanos passivos e sem persistência. 

Hoje comecei a aula com a correcção de uma ficha de escolha múltipla que tinha dado aos alunos na quarta-feira. Muitos deles não souberam resolver os exercícios porque não destrinçam os elementos lógicos da linguagem. Por exemplo, "a afirmação, os juízos morais não são infalíveis, poderia ser uma objecção ao relativismo moral?" Acham a linguagem da pergunta muito confusa e difícil de raciocinar, de maneira que não sabem como escolher uma das respostas alternativas. 

Outro exemplo, "porque é que ter compaixão e ajudar os outros pode não ser, necessariamente, uma acção com valor moral, segundo Kant". Se não sabem logo como Kant respondeu a esta questão, não sabem como pensá-la para encontrar a resposta válida e tenho que fazer eu o raciocínio em voz alta, passo a passo e mostrar como devem discorrem o processo no pensamento para chegarem à resposta. Sozinhos não vão lá porque não pensam. Ou as questões têm uma resposta concreta e imediata ou se têm que ligar conceitos e elementos e fazer inferências, não vão lá. 

Os miúdos chegam ao 10º ano com hábitos de um facilitismo tão redutor e estupidificante e com uma retórica interiorizada acerca da virtude do perpétuo divertimento e da desnecessidade da leitura e do empenho individual que trabalhar com eles é um esforço cada vez mais inglório. 

Cada vez mais tantos e tantos são educados pelos telemóveis, pelas redes sociais e pelos sites de jogos e pornografia, que são esses os seus padrões de coisas de interesse. Deus nos livre de querer que alarguem os seus interesses ou contrariem as suas inclinações naturais.

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