December 30, 2023

Ter voz própria

 


O que faz com que certas pessoas que nascem com um talento extraordinário para a pintura escolham ser falsários? Talvez não escolham.
Estive a ver um filme (The Last Vermeer) sobre o processo de Han van Meegeren -considerado o maior e melhor falsário de sempre- na Holanda, no pós-guerra. Quando se descobre entre a arte roubada por Goering, um Vermeer desconhecido, os holandeses vão à procura da pessoa que lho vendeu e vão dar com Han van Meegeren, um pintor holandês de terceira categoria e negociante de arte. Acusado de colaborar com os nazis e arriscando-se à pena de morte, Han van Meegeren pinta um Vermeer num espaço de meses, na prisão, para provar que o Vermeer que vendeu a Goering é uma fraude e que nunca vendeu tesouros artísticos aos nazis, mas apenas falsificações. O que consegue fazer e lhe devolve a liberdade, mas como consequência desse revelação temos que até hoje não sabemos quais as pinturas 'descobertas' e vendidas por ele no século XX (ele morreu seis semanas após a libertação)  são verdadeiras e quais são falsas. Muitos quadros 'descobertos' e vendidos por ele estão em grandes museus do mundo. Han van Meegeren falsificava variados estilos mas era especialista em Vermeer, um pintor que pintou pouquíssimas telas que valem, pela sua raridade, uma enorme fortuna.

Estava a ver o filme e a pensar o que faz com que uma pessoa nascida com um talento extraordinário para a pintura escolha ser falsária em vez de deixar o seu legado para a posteridade? Em parte, como lhe diz uma personagem no filme, faltou-lhe a força de vontade, a alma, para enfrentar os críticos e vencer as adversidades próprias dos artistas que têm que abrir caminho por si mesmos. 

Porém, isso só não basta para explicar essa renúncia de si mesmo: falta-lhes voz própria. 

"Conhece-te a ti mesmo" era uma máxima do Oráculo de Delfos, da Grécia Antiga, citada por Platão em vários dos seus diálogos, pela voz de Sócrates. Quem não se conhece a si mesmo, quem não mergulhou nas profundezas da sua alma e viu os recantos, as armadilhas, os abismos e todas as cores e texturas que encerra, não tem inspiração para criar porque não tem voz própria. É um copiador de imagens, de superfícies. Pode ter uma técnica muito sofisticada ou rigorosa, como uma mecânica do gesto, mas falta-lhe a visão que a técnica revela. A visão vem de dentro, pois mesmo o que nos inspira vindo de fora, só o faz porque ecoa e é reconhecido dentro e é de dentro que vem esse sopro criador.

Em cada uma das mil vozes de Pessoa, reconhecemos Pessoa.

Educar é, em grande parte, educar a voz para a individualidade, ensinando o processo da reflexão, da introspecção, da arqueologia interior, sem os quais as pessoas crescem imitadores desinspirados, altifalantes de vozes alheias, cidadãos tecnicamente amestrados, renúncias de si próprios.


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