June 17, 2023

A universalização repentina de produtos e serviços traz quase sempre custos de qualidade




Não há dúvida que a internet foi um passo gigantesco na democratização do acesso à informação. Quando nos lembramos que há 50 anos, em certas zonas do país, tinham de esperar pela passagem da biblioteca itinerante da Gulbenkian para ter acesso a livros e quando olhamos para a facilidade com que hoje se pode aceder a qualquer site, há um ganho imenso geral.

Porém, a universalização de produtos e serviços traz quase sempre custos de qualidade e a internet não foge à regra. A internet substituiu o critério da qualidade pelo da facilidade e rapidez e isso tem custos para o desenvolvimento do conhecimento. É sabido que os utilizadores de internet raramente passam do 2º ou 3º título/link que surge numa pesquisa qualquer e, como o 1º é geralmente a Wikipédia, é por aí que ficam.

Com o surgimento da internet aumentaram exponencialmente as fraudes académicas, logo a começar pelas universidades: mestrados, doutoramentos, publicações, etc. - é fácil copiar e há milhões de documentos online.

Nas escolas deu origem à superficialidade do ensino e do conhecimento.

Vejamos o caso de um professor: dantes, uma pessoa que queria investigar um assunto ou melhorar os conhecimentos sobre um assunto ou até se queria fazer umas fichas de trabalho, tinha de ir a uma biblioteca ou a livrarias, escolher livros para explorar. A escolha dos livros nem sempre era óbvia, pois não havia nenhum Google a indicar onde era provável encontrar a informação, de maneira que era preciso ler pedaços, maiores ou menores de vários livros até encontrar os que nos interessavam. Essa parte da pesquisa, só por si já era um alargamento de horizontes porque passávamos por muita informação nova até chegar onde queríamos. Por vezes ganhavam-se logo aí novas pistas de exploração de conhecimentos ou de inspiração.

Depois era preciso coligir informação dos livros e artigos seleccionados de maneira a dar um corpo consistente ao que pretendíamos. Isso obrigava a estudo, esforço intelectual, revisão de conhecimentos anteriores, processos de assimilação, de arquitectura conceptual.

Depois chegou a internet. Os colegas que andam agora pelos 40 anos e que já se licenciaram na era da internet já têm hábitos diferentes de ir ver tudo na internet, de maneira que toda aquela parte da pesquisa que obriga a ler muita coisa para se chegar onde se quer, já não a fizeram porque a internet direcciona logo a pessoa para meia dúzia de sites, o que é redutor. Porém, ainda eram obrigados a procurar informação e a fazer um trabalho mental de integração, assimilação e edição para dar as respostas e, portanto, para construir conhecimento, logo, havia modificação das estruturas internas.

Agora, com o ChatGPT, os futuros estudantes e professores nem sequer têm de procurar a informação para construir conhecimentos que depois transformam em respostas: vão directamente à resposta. Não há nenhuma evolução interna, nenhuma aprendizagem.

Já agora, o trabalho de professor anda a ser reduzido a um trabalho de técnico de aplicação de produtos digitais. Por exemplo, as editoras, já de alguns anos para cá, para encarecerem os manuais, produzem imensos cadernos: um com os apontamentos que o aluno deveria, ele mesmo, coligir (isto é fundamental e está muito estudado, mas está em desuso porque dá trabalho); cadernos com os planos de aula do professor; cadernos com exercícios, fichas, textos complementares para o professor usar, etc. - o professor, se quiser, faz zero pesquisa autónoma dos assuntos e zero trabalho de construir materiais e cristaliza-se. O próprio Manual traz casos que o professor pode usar, como exemplo, nas explicações dos temas... portanto, nem sequer querem que o professor faça um esforçozinho mental.

Como agora há uma pressão do ME para se 'desmaterializar os instrumentos', quer dizer que os alunos nem sequer fazem aquele trabalho de se apropriar dos conteúdos, marcando os livros, os textos e as fichas com as suas produções internas. Ficam ali a olhar para o ecrã, usam o telemóvel para fazer umas escolhas múltiplas com o Kahoot para a aula ser 'divertida' e gira e o professor, por sua vez, cada vez mais se torna num reprodutor de políticas e ideologias de Estado. O tempo que o professor é obrigado a gastar em burocracias também ajuda a que se apoie nestas muletas, mas onde há aqui evolução no conhecimento, diversidade, dialéctica interna e externa?

Quando vamos atrás das informações nos manuais, tal como acontece na internet, de site em site, vemos que todos dizem a mesma coisa exactamente com as mesmas palavras. Damo-nos conta de que a imensidade de sites que falam do assunto são uma cópia exacta uns dos outros e não houve ali nenhuma investigação. Não por acaso, dantes havia mais de uma dezena de manuais para ano de escolaridade, cada um com a sua personalidade vincada, o que possibilitava que o professor/escola escolhessem de acordo com a sua 'filosofia' e agora há 2 ou 3 todos mais ou menos iguais. Só muda a cor das páginas e pouco mais. Tal qual como os sites na internet.

Ontem fui dar com uma notícia sobre a Etiópia ter usado leões, vespas, etc. para derrotar inimigos. Fui ver se a notícia era credível ou uma invenção qualquer com photoshop. Estive quase uma hora a seguir links, em que cada um enviava para outro link que dizia a mesma coisa com as mesmas palavras e nenhum deles indicava a fonte primária da informação. A certa altura saí dos links e fui à procura de trabalhos académicos sobre a guerra da Itália contra a Etiópia (a batalha de 'Adwa') e acabei a ler capítulos de uma tese académica.

De facto, procurar fundamentar ou legitimar as informações dá trabalho, às vezes muito trabalho e obriga a esforço e isso não se coaduna com as prioridades da internet e da vida actual: facilidade e rapidez.

Não admira que os testes mostrem que a inteligência dos homens esteja a descer na Europa. Calculo que desça à medida que substituem a investigação e estudo pela internet de banda larga.

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