June 17, 2023

Estou de acordo com Pacheco Pereira




Desde logo os perigos que advêm do deslumbramento do ME por tudo o que é digital, sem cuidado nem discernimento (acrescento) relativamente ao impacto negativo de afunilar as fontes e processos de conhecimento a recursos de qualidade limitada e, às vezes, duvidosa. Por exemplo, acho a Wikipédia um recurso imensamente útil para certas situações (saber rapidamente a data e local de nascimento e morte de pessoas, os cargos que ocupam, a dimensão em km2 de um país ou quais os filmes com óscares e outras informações básicas do género) mas com enormes limitações. 
Como é o site que, de longe, os alunos mais usam, quando me vêm parar às mãos, no 10º ano, gasto tempo a fazer uns pequenos testes e demonstrações com as informações da WIKI, para eles perceberem as suas limitações no que respeita à credibilidade e seriedade das informações e das fontes. (Agora vou ter de desenvolver algo do género para o ChatGPT.)

Há dicionários e enciclopédias online de qualidade mas são académicos, especializadas (por exemplo, a Enc. de Fil. de stanford) e em língua estrangeira. São pouco consultados em geral porque implicam esforço e concentração, o que não se coaduna com a sociedade digital. Em português não há quase nada de qualidade. Há significados de palavras que nem sequer aparecem nos dicionários online e é preciso irmos aos dicionários de papel para encontrá-los. Não sei se é para poupar espaço de internet ou se é só preguiça, mas os dicionários online só indicam o significado mais comum dos termos. E às vezes está errado. 

É difícil educar os alunos nesta realidade porque a quase totalidade nunca viu, sequer, um dicionário ou uma enciclopédia de papel, exceptuando uns dicionários de bolso de inglês ou algo do género e acredita que o que está na internet é a totalidade da realidade de maneira que não estão habituados a comparar fontes para aferir da sua credibilidade. 


Enciclopédias: mutação ou destruição?

Sim, está muita coisa na Internet, mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e enviesado.

José Pacheco Pereira

As duas coisas. Importa-me a mutação, mas mais me importa a destruição. O deslumbramento com a chamada “transição digital” faz muito mais estragos no saber do que se imagina. Já não me refiro, como faço há mais de 20 anos, à crise e declínio da leitura, que começa agora a ter alguma atenção pelo facto de os suecos estarem a voltar ao papel nas escolas. Mas não chega em Portugal, onde um dos locais mais perigosos para este deslumbramento é o Ministério da Educação, com os estragos de vento em popa.

Vejamos o caso das enciclopédias. Não tratamos aqui da função das grandes enciclopédias como manifestação e fixação do “estado” do saber numa determinada época, mas sim das alterações que se verificam no seu papel e uso. No Arquivo/Biblioteca Ephemera, sabemos sem qualquer dúvida que, quando se deitam livros fora ou se despejam bibliotecas, a primeira vítima são as enciclopédias. Compreende-se que, com a diminuição drástica do espaço para livros nas casas de hoje, as enciclopédias ocupam muito espaço. Igualmente, a maioria foi comprada nas últimas décadas para encher espaços com livros grossos, com capa dura, que servem para as fotografias e vídeos de advogados, CEO, escritórios de patrões, para pano de fundo com as mobílias escuras, tudo cheio de gravitas, ou seja, são elementos de decoração, de prestígio, não livros para serem consultados. As editoras responderam em espécie e produziram enciclopédias e dicionários, tudo em vários volumes cheios de pompa e de lombada. Na verdade, não estamos a falar de livros e, muito menos, de saber. Este é um mundo a acabar, no seu papel de pano de fundo, substituído por um largo monitor de computador, caro e cheio de resolução, ou um qualquer ademane da “transição digital”.

Existe a ideia de que “está tudo na Internet”, mais actualizado, mais fácil de encontrar, o que torna as pesadas enciclopédias inúteis. Sim, está muita coisa na Internet, mas não só não está “tudo” como muitas vezes o que está é incorrecto, falso e enviesado. E o que não está é gigantesco, embora admita que este seja um problema de tempo, que pode desaparecer quando o esforço de digitalização avançar e chegar às áreas onde ainda é muito escasso o material disponível. Caso da língua portuguesa, caso, dentro da língua portuguesa, dos autores portugueses, caso do retrospectivo histórico – tudo casos em que ainda são os brasileiros que foram mais longe.

Não faltam exemplos da necessidade das enciclopédias em papel, como é a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB), que começou a ser publicada em 1936 e foi sucessivamente ampliada com volumes de “actualização”, muito inferiores aos iniciais. Se tivermos de trabalhar em correspondências literárias da primeira metade do século XX e quisermos saber quem são os interlocutores de um determinado correspondente, a Internet é inútil, mas a Grande Enciclopédia, acrescentada de alguns volumes de Quem é Quem publicados na mesma altura, é fundamental.

Outro aspecto de que ninguém cuida é a qualidade literária, científica ou ensaística que falta na Internet. A GEPB tinha entre os seus colaboradores António Sérgio, o cardeal Cerejeira, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa, Lopes Graça, Aquilino e, entre os casos célebres de enciclopedistas, está Kropotkine, que escreveu o artigo sobre o anarquismo para a Enciclopédia Britânica. Mas este mundo também já acabou. Hoje já ninguém aparecerá, como Aldous Huxley tinha fama de fazer, a falar, numa semana, das coisas do volume da Enciclopédia Britânica que estava a ler – vulcões, Vulcano, vapor – maçando os seus amigos que, como eram literatos, sabiam muito bem de onde vinha a conversa. Como eu percebo Aldous Huxley.

Mas há outro aspecto desta questão que conta, quando as pessoas acham que “na Internet está tudo”, referindo-se, entre outras coisas, ao grande projecto enciclopédico da Wikipedia. A Wikipedia parte de uma ideia original e interessante, que tem o pequeno problema de ser falsa, a de que a colaboração dos “grandes números” de pessoas corrigindo-se umas às outras acabaria por dar a origem a entradas tão fiáveis como as entradas na Enciclopédia Britânica. Se o senhor A cometesse um erro ou publicasse uma variante de fake news na sua entrada original, milhares de contribuições corrigiriam, acabando por dar origem a um texto estável e cientificamente seguro. Não é o que acontece.

Embora as comparações entre a Wikipedia e a Enciclopédia Britânica nem sempre sejam favoráveis a esta última, e a peer review não garanta outras formas de enviesamento, principalmente para garantir o cânone conservador em certas áreas do saber, há artigos na Wikipedia seguros e estáveis, principalmente nas entradas científicas, na física, matemática, geometria, química, etc.. O problema são as chamadas “ciências humanas”, ou as questões de actualidade, onde a própria Wikipedia avisa que “a informação apresentada pode mudar com frequência”. Por exemplo, nos artigos José Sócrates, ou Maomé, veja-se a “discussão”, ou na Invasão da Ucrânia pela Rússia, cujas últimas correcções datam de ontem, a permanente instabilidade do texto. Por isso mesmo, em muitas universidades, a Wikipedia não pode ser citada em trabalhos académicos. Como em muitas procuras e consultas em linha, a Wikipedia pode ser útil, mas por quem tenha as literacias e a prudência para consultar textos sem edição ou com escassa edição.

Este é um dos casos em que, com tempo e com trabalho, com edição e revisão científica, as enciclopédias podem migrar com vantagem para a Internet, em particular beneficiando das vantagens do hipertexto e da actualização, sem os custos e o espaço do papel, mas durante muito tempo vai subsistir o problema da dependência do que se digitaliza do poder, da moda, do comércio, das audiências.

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