May 28, 2023

Seca - soluções (e erros no Alqueva)



"O segredo está no solo". Exemplos na luta contra o "desastre" climático



Num sul do país onde a escassez de água ameaça cada vez mais o território, também emergem modelos de exploração sustentável dos recursos nas adaptações às alterações climáticas. Da agricultura ao golfe. Em comum, está o respeito pelos solos.

Situada entre o barrocal e a serra algarvia, em Benafim, interior do concelho de Loulé, a Quinta do Freixo tem uma área a perder de vista. Numa ínfima parcela destes 700 hectares, quase mil ovelhas campaniças, raça autóctone desta região, pastam tranquilamente o solo coberto de vegetação, numa área de terreno que, ao olhar de um leigo, parece desnecessariamente pequena face à imensidão em redor. No entanto, reside aqui um dos segredos que fazem desta quinta um dos exemplos de agricultura responsável e sustentável num território a sofrer os efeitos severos das alterações climáticas, como o é a região do Algarve.

Ao fim de poucos dias, aquelas ovelhas vão mudar-se para outra cerca do género, com um espaço bem limitado, onde continuarão o pasto. E assim sucessivamente, "imitando o processo observado na vida selvagem às grandes manadas de herbívoros, que pastoreiam intensamente determinadas áreas à sua passagem, as quais depois descansam depois por longos períodos de tempo até as rotas de migração fazerem regressar esses animais", conta Luís Silva, à frente dos destinos das quintas (a do Freixo e a do Mel, nas Açoteias) que estão na sua família há cinco gerações, desde o final do século XIX

O "maneio holístico" -- assim se chama este método de pastoreio rotacional criado pelo zimbabueano Allan Savory, naturalista e criador de gado com uma vasta experiência na savana africana -- é uma das técnicas mais usadas na agricultura regenerativa, a filosofia que Luís Silva implementou nestas quintas nos últimos três anos e que permite, como o nome o indica, regenerar os solos de uma forma natural, sem estar tão dependente de recursos que se anteveem cada vez mais escassos, como a água. "Começa tudo com o solo", sublinha, apontando para a cobertura vegetal com que as ovelhas se vão deliciando. "Quando o solo é trabalhado da forma certa, tem mais matéria orgânica, o que implica ter mais carbono nos solos. E um solo mais vegetal funciona como uma esponja, vai absorvendo água e torna-se ele próprio um reservatório".

Ora, o pastoreio rotacional tem precisamente esse efeito na regeneração dos solos. "Metemos cercas elétricas mais pequenas que as ovelhas respeitam, restringimos o espaço que elas percorrem num período de tempo, elas impactam exaustivamente esse espaço e deixam estrume, melhorando a microbiologia do solo, que é fundamental", detalha Luís Silva. "Era assim que antigamente se criavam solos com elevado teor de matéria orgânica. Só estamos a recriar, do ponto de vista ecológico, condições que já existiam aqui".
À medida que explica este processo, o proprietário da Quinta do Freixo vai mostrando parcelas de terreno já impactadas pela ação das ovelhas, com farto coberto vegetal. "Só este ano já conseguimos recuperar 6 hectares de solo. Para o ano quero recuperar 25", revela. Os ganhos são óbvios: solos mais produtivos, menos água usada em rega e menor necessidade de comprar rações para os animais, que têm nos solos forragem para o pasto.

"Estes animais são ferramentas de regeneração. A carne é um subproduto", sintetiza Luís Silva. Além da pecuária e da pastorícia, as atividades na Quinta do Freixo englobam ainda a floresta (alfarroba, cortiça...) e os pomares de frutas e hortícolas, de onde sai também a matéria prima para as compotas próprias. Tudo isso abastece a unidade de turismo rural e restaurante integrados na quinta, onde Luís espera "em dois anos servir exclusivamente produtos da nossa produção". "Só com diversidade se consegue um ecossistema saudável", despede-se, apontando "as monoculturas intensivas que estão a degradar os solos para o futuro" como "um problema maior" que a falta de chuva.

Parreira, um modelo há mais de 30 anos

Se a Quinta do Freixo é um dos exemplos crescentes de que começa a haver novas sensibilidades na cultura dos solos, na Herdade da Parreira, em Montemor-o-Novo, a uma hora de Lisboa, essa preocupação já vem de longe, há pelo menos 35 anos, ancorada na visão de Mário Carvalho, professor catedrático aposentado da Universidade de Évora que, na altura, se aliou ao seu aluno Nuno Marques, proprietário da herdade, para desenvolver na Parreira um projeto que hoje é considerado um modelo de sustentabilidade agrícola, inclusive com prémios europeus conquistados.

Na base, está um modelo de agricultura de conservação, à qual Mário Carvalho dedicou a sua carreira de investigação. Também aqui "o solo é o centro de todas as coisas". "Não se faz nada que possa comprometer o solo", vinca o professor jubilado. Na Parreira, foi implementado um modelo agro-silvo-pastoril cujas intervenções ao longo dos anos demonstraram como é possível adaptar uma exploração agrícola às alterações climáticas com a preservação e melhoria da fertilidade dos solos no centro das decisões.

"A herdade tem 900 hectares. Na grande maioria do Alentejo, uma herdade com esta dimensão teria umas 500 vacas. A Parreira tem 240. Não se aumenta o número de cabeças para preservar o montado e todos os solos da exploração. Mas também se vendem as vacas com 600 kg, não com 200 como outros, o que permite compensar em termos de rentabilidade ao mesmo tempo que garantimos solos mais ricos para futuros anos", conta Mário Carvalho.

Na Herdade da Parreira há uma componente de montado com pastagens permanentes melhoradas de sequeiro (não regadas) que garante a alimentação animal entre outono e primavera. Depois, "há um sistema de regadio privado que é aplicado só em culturas de outono-inverno". Esta componente agro cultiva forragens e cereais que possibilitam a alimentação de animais durante o verão quando a cultura de sequeiro não é suficiente.

Aqui "não há mobilização do solo", sublinha. "O solo está sempre constantemente coberto por resíduos. 75% da biomassa produzida na exploração fica na exploração". Além da melhoria dos resultados económicos, o modelo possibilitou regenerar solos e aumentar consideravelmente a produtividade da água. "Se não formos capazes de atuar ao nível da melhoria da qualidade do solo, permitindo melhor armazenamento de água e drenagem, as alterações climáticas terão um impacto tremendo na produtividade da terra. Melhorar o solo é a única solução", reforça o professor jubilado, muito crítico da gestão da água e dos solos no país. "Estamos a caminhar para o desastre", diz (ver entrevista).

Ângela aposta na policultura

Mais a sul, em Conceição de Tavira, numa parcela de terreno junto à linha de comboio, Ângela Rosa tenta replicar, à sua pequena escala, esta preocupação com os solos. Além desta, Ângela possui ainda outras três parcelas espalhadas pela zona, num total de sete hectares, onde tem mais de 120 variedades hortículas e frutícolas. Em todas elas, a agricultura que pratica é "de policultura", apresenta. "É mais amiga da pegada ecológica, baseia-se em cadeias curtas de distribuição". Os seus produtos são escoados em vários mercados biológicos na região

Ao contrário da agricultura intensiva, "como as explorações de abacate que vão tomando conta da paisagem", denuncia, a policultura "explora a variedade de culturas, enriquecendo os solos", o que "contribui também na preservação dos rios, da flora e da fauna" de uma determinada área. Nas parcelas exploradas por Ângela, o "desperdício é zero". A biomassa criada é triturada com uma biotrituradora e devolvida ao solo, colocada em volta das plantas ou árvores, "para conservar a humidade do solo e dar-lhe micro e macro nutrientes", explica. "E o solo fica mais produtivo de um ano para o outro com a fixação de biomassa".

Com os solos húmidos e ricos, diminui naturalmente a necessidade de rega, uma vantagem preciosa para quem tem, nesta parcela, a situação de precária - ou seja, sem acesso garantido ao perímetro de rega do Sotavento algarvio.

Golfe também se adapta

No Algarve, outro setor em foco quando se pensa no recurso água é o golfe, que tem 40 campos espalhados pela região. Rui Grave recebe-nos no Dom Pedro Laguna, um dos cinco campos deste grupo em Vilamoura. Ele é o head greenkeeper, ou seja, o engenheiro responsável pela manutenção dos campos. O encontro é marcado no Laguna porque este campo foi requalificado durante a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2022. Aproveitando os períodos com pouca procura devido às restrições de viagens e outras, o "grupo decidiu requalificar o campo colocando à frente, pela primeira vez, o critério da sustentabilidade ambiental". Ou seja, "em vez de pensar no melhor campo possível e depois adaptar as práticas ambientais a esse cenário, pensámos primeiros nas melhores práticas ambientais e adaptámos o campo".

Uma das intervenções que mostra com orgulho é o lago que ladeia o tee de saída do buraco 4. Uma espécie de "ilha de biodiversidade", que serve de refúgio a algumas espécies animais, como as lontras, que anteriormente ameaçavam algumas zonas do campo e agora ali vivem sem problema. De resto, todas as águas que são usadas no campo são "águas naturais dos lençóis freáticos" armazenadas nos lagos, "que não estão impermeabilizados". Mas a requalificação ambiental do D. Pedro Laguna abrange um leque de medidas tão pormenorizadas quanto o tipo de relva escolhido para cada zona de jogo, "privilegiando relvas de estação quente, como é a Bermuda, que não consomem pesticidas nem muita água", um novo sistema de rega "direcionado apenas para a zona de jogo, o que fez com que o campo se adaptasse à rega, encurtando de 30 para 27 hectares", até estações meteorológicas que medem constantemente a humidade no solo.

Também aqui, quanto mais o solo estiver adaptado maior é a eficiência. E a água, lembra Rui Grave, "é uma componente importante nos custos do negócio", adiantando que no Laguna já veem médias de redução na ordem dos 50% com a requalificação feita. O próximo passo, diz, é o reaproveitamento de águas das ETAR da região, processo que deve ficar concluído ainda este ano.


Prof. Mário Carvalho

Como olha para o problema da seca em Portugal e os seus impactos sobretudo no sul do país?
O problema da água sempre foi um problema do Mediterrâneo e está a agravar-se com as alterações climáticas. Nunca vamos ter água para regar todo o território. Temos que arranjar viabilidade para os sistemas produtivos, especialmente com o sequeiro. Outra coisa importante é uma melhor gestão da água que cai. Agora chove mais quantidade de água em períodos mais curtos, o que leva a escorrimento superficial e a perdas do solo por erosão. Estamos a perder mais água por escorrimento do que pelas alterações climáticas. Temos que melhorar a capacidade de retenção dos solos.

De que forma?
Temos de aumentar o teor da matéria orgânica dos solos, ajudar a absorver água na estrutura do solo. O aumento da infiltração leva ao aumento da retenção e permite às culturas viverem mais confortáveis em ausência de precipitação. Assim aumentará muito a eficiência do sequeiro e diminuirá a necessidade do regadio.

O aumento das áreas de regadio é um erro?
Devemos usar a água para ajudar culturas de outono-inverno, para aumentar a eficiência do sequeiro e sermos mais produtivos com a água utilizada. Criar biomassa. Usar água para alimentar exclusivamente culturas de verão que só sobrevivem com regadio é um erro. Mas estamos - país - a tomar uma opção ainda mais grave, que é conduzir regadio para culturas permanentes, como o olival e o amendoal intensivos ali no Alqueva. São dois erros em simultâneo: por um lado cria-se necessidade permanente de água num território de disponibilidade variável; por outro está a desligar-se o regadio do sequeiro.

O Alqueva está a ser mal explorado?
O que estamos a fazer no Alqueva é um caminho para o desastre. É aumentar todas as áreas com necessidade permanente de água. E estamos assim a reduzir a dimensão social do Alqueva, que era suposto preparar o território para a seca. O regadio está a desenvolver-se de forma autónoma das restantes necessidades do território. Mais ridículo ainda é que todo o custo fica do lado do Estado e todo o proveito no privado. Dos 35 cêntimos por metro cúbico que é o preço da água, o Estado cobra um décimo. O resto é subsídio. Ora, como a água fica barata, os grandes grupos multinacionais viram aqui uma grande oportunidade de negócio. Consomem os recursos e empobrecem o território. É uma falta de visão tremenda.

rui.frias@dn.pt

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