Na primeira pessoa: “Sou professora e todos os fins de semana, todos mesmo, percorro 1120 quilómetros em 16 horas de autocarro para estar com a minha família”
Comecei a dar aulas em 2000/2001, tenho formação base de ensino básico com a variante de educação física. Nesse ano apresentei um projeto, junto com outros colegas, a um agrupamento de escolas na minha área de residência e lecionámos as nossas disciplinas em todas as escolas do primeiro ciclo e pré-escolar, mas a ideia não teve continuidade. Nos anos seguintes, fiz pequenas substituições por doença ou licença de maternidade, de um mês e/ou quatro meses, pelo Algarve e em Lisboa, e nunca consegui trabalhar um ano letivo completo.
Em 2008/2009, fui colocada por três meses no Algarve, na EB 1 de Silves, e, entretanto, engravidei. Por sorte, nesse mesmo ano, em fevereiro, fui colocada a 40 quilómetros de casa, em Oliveira de Frades. No ano letivo seguinte fui colocada pela primeira vez para o ano inteiro, mas no Alentejo, em Aljustrel. Como estava em final de gravidez, não me apresentei logo ao serviço e foi aí começou o meu dilema.
Ao fim de cinco meses do nascimento do Diego, quando me ia apresentar ao serviço, não consegui creche para o meu filho e fui alertada de que poderia tirar licença alargada de oito meses. Não hesitei. Apresentei-me a 1 de junho de 2010 e, como não conseguia creche em Aljustrel, fiquei alojada em Armação de Pêra, em casa de familiares. Fazia 135 quilómetros diariamente para ir trabalhar.
No ano seguinte, fui colocada novamente no Algarve, em Ferreiras, Albufeira. Levei o meu filho comigo pois sabia que tinha vaga na mesma creche onde havia estado no ano letivo anterior. No entanto, com esta decisão para trabalhar na área/profissão para a qual me formei, privei o meu marido Marcos de acompanhar o crescimento do nosso filho.
Durante estes dois anos ia a casa de carro apenas uma vez por mês e na companhia dos meus pais ou da minha sogra, que se deslocavam desde Viseu e do Porto respetivamente, de autocarro, para me fazerem companhia nas viagens, de forma a que eu não viajasse sozinha com o bebé.
Entretanto fiquei desempregada e decidi abandonar o ensino pois com as despesas, o filho em crescimento, o crédito de casa… era necessário trabalhar. Encontrei emprego numa empresa privada, embora ligada ao ensino, no Grupo Porto Editora. Era consultora pedagógica em várias escolas na periferia de Viseu e dormia em casa todos os dias. Não havia dinheiro nenhum no mundo que pagasse o facto de eu poder dormir todos os dias na minha cama e estar junto da minha família. Entrei nos quadros da empresa e pensei que já não voltaria mais a lecionar, mas a vida prega-nos partidas.
“Tive uma baixa psiquiátrica”
Em 2018, com a gratuitidade dos manuais escolares e a baixa taxa de natalidade, fui dispensada das minhas funções. Voltei ao ensino, mas como já não tinha um ano de serviço, nos últimos seis anos [requisito para estar na 2.ª prioridade dos concursos de professores] fui inserida na 3.ª prioridade. Tive de alargar o concurso para Lisboa e Algarve, perto das zonas onde tinha estadia em casa de familiares, para que as despesas não aumentassem e fossem suportadas. Estive três meses numa escola no Montijo e não trabalhei mais nesse primeiro ano de regresso ao ativo.
No ano letivo seguinte (2019/2020) enganei-me a concorrer e fui trabalhar dois meses para Vila Real de Santo António, onde tive de procurar alojamento. E em janeiro já estava colocada em Alfornelos, Amadora. Fui sozinha, deixando o meu filho, então com 10 anos, só com o pai, tendo de se deslocar para a escola com boleias porque o horário de trabalho do meu marido não era compatível com o horário escolar do nosso filho.
Entretanto veio a pandemia e, no meu caso, ficar em ensino à distância foi bom, pois embora fosse muito mais trabalhoso do que estar no ensino presencial, conseguia estar junto da minha família e principalmente do meu filho.
No ano seguinte (2020/2021), fui colocada em Lisboa, nas Olaias. Lá voltei eu a andar com a “casa às costas” para casa da minha tia, abandonando o meu lar e a minha família mais uma vez. A experiência não correu bem, entrei em baixa psiquiátrica e fui seguida em psiquiatria e psicologia. Tive de tomar medicação e não regressei a essa escola.
Dizem que, depois da tempestade, vem sempre uma bonança. Em 2021 /2022 consegui voltar nos concursos à 2.ª prioridade e fui logo colocada para iniciar funções a 1 de setembro no Agrupamento de Escolas Silves Sul, na EB1 de Alcantarilha, onde fui muito bem acolhida por colegas, funcionários e direção da escola. No presente ano letivo estou com o meu contrato reconduzido no mesmo agrupamento.
“Estar longe é uma enorme dor”
Embora tenha um ambiente de trabalho espetacular, todos, mas mesmo todos os fins de semana, desde o ano letivo 2018/2019, vou a casa de autocarro para conseguir estar um pouco com a minha família. São 560 quilómetros de distância para cada lado. Faço 16 horas de autocarro – viajo das 16h20 às 00h25 à sexta-feira e das 16h00 às 23h30 ao domingo – para conseguir exercer a profissão de que tanto gosto e tentar aproveitar estar o mais possível com a minha família.
Tenho uma casa de familiares à disposição no Algarve e pago as despesas do dia-a-dia, mas não tenho de suportar uma renda. Ainda assim, com o atual nível de vida e os gastos que temos, continua a ser incomportável. Por esse motivo, o meu marido e o meu filho passaram a viver com os meus pais em Viseu, pois decidimos vender a nossa casa.
Consigo poupar dinheiro no almoço, pois levo uma marmita todos os dias e só me desloco para o Algarve na minha viatura no começo e no fim do ano letivo porque não é possível suportar o preço do combustível e das portagens.
Neste momento, o bilhete de ida e volta de autocarro tem o custo 66 euros por fim de semana, o que totaliza cerca de 250 euros por mês. Entre portagens e combustível, se eu levasse carro, aquilo que gasto mensalmente com as viagens de autocarro era o que iria gastar por fim de semana. O meu marido é administrativo, ganha o ordenado mínimo e é ele quem está com o meu filho e tem aguentado emocionalmente toda esta situação. Os dois continuam a ser o meu grande suporte.
Acabo por conseguir recuperar um pouco o sono durante a semana porque estou sozinha e deito-me mais cedo. De igual modo, o trabalho que tenho de fazer extra-aulas (preparação de aulas e correção de testes, por exemplo) fica circunscrito aos dias úteis porque não levo trabalho para casa ao fim de semana. Gostava que as pessoas percebessem que os professores têm muito trabalho invisível e que não termina nas horas em que damos aulas.
Vivemos numa constante adaptação. Estar longe de casa já levou o meu filho a verbalizar que quer que eu deixe o ensino. Ele diz-me: “Vem para Viseu e vai trabalhar para um supermercado”. Eu respondo-lhe que não é fácil arranjar um novo trabalho com a minha idade.
Não consigo deixar de me emocionar quando penso numa certa madrugada de novembro quando recebi uma mensagem do meu filho às 3h30. Dizia: “Mãe, não me sinto bem”. O Diego estava doente e mesmo sabendo que ele está muito bem com o pai, em momentos de aflição recorre à mãe. Não descansei até chegar a sexta-feirapara ir para casa. Estar longe nestes momentos é uma enorme dor.
Porque faço greve
Enquanto contratados, o nosso primeiro foco é entrar nos quadros. Este ano consegui renovar contrato na mesma escola para onde entrei no ano passado, mas nos moldes em que atualmente estão os concursos, o ano letivo de 2023/2024 seria o meu terceiro contrato e entraria em quadro de zona, neste caso no Algarve, mas poderia pedir destacamento por aproximação à residência. Com esta nova modalidade que o Ministério da Educação (ME) quer impor aos concursos, isso está fora de questão. O ME quer criar o que se intitula de mapas de pessoal, em que depois é impossível aproximarmo-nos à zona de residência porque os mesmos estão agregados a um município.
Defendemos que deve ser mantida a modalidade de concurso e não passar para a municipalização. Na proposta do Ministério, os municípios passam a ter autonomia para a colocação dos professores e os critérios deixam de ser a nossa graduação de lista e a nossa classificação profissional.
O dia 9 de dezembro foi o primeiro dia de greve e desde dia 12 que a mesma tem funcionado por tempos letivos. Neste momento, a greve continua por tempo indeterminado. Obviamente, temos muitas penalizações a nível salarial porque os tempos em que fazemos greve são descontados no nosso vencimento.
Ser professor nestas condições é ser resiliente, contra tudo e contra todos. A vida de professor não é fácil em muitos aspetos e é preciso gostar muito do que se faz. Os risos e os abraços que recebo dos meus 24 alunos todas as segundas-feiras ajudam-me a ganhar novo fôlego e a suportar um pouco melhor a dor que sinto por estar longe da família.
Visão
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