June 07, 2022

O ex-SE, agora ministro, quer uma educação para o hedonismo





MAIA, a abelha distópica que vai matar a escola

Luis Filipe Torgal

O ex-secretário de Estado da Educação, entretanto promovido a ministro da Educação, sintonizado com Domingos Fernandes e a sua rede de «cientistas» e tecnocratas, fez um diagnóstico infalível (e bizarro) da educação portuguesa: os nossos professores mais as suas pedagogias e processos de avaliação, que remontam ao século XIX, lesam a educação inclusiva.

Perante tal diagnose, o Ministério da Educação (ME) iniciou uma cruzada que visa revolucionar as metodologias de ensino, aprendizagem e avaliação das escolas nacionais. Refiro-me, neste texto, ao projeto MAIA, Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica, iniciado em 2019. Começou por ser um «projeto de âmbito nacional e de adesão voluntário» (Domingos Fernandes, Para uma Avaliação Pedagógica: dinâmicas e processos de formação no projeto MAIA, 2020, p. 10), para, entretanto, adquirir uma dimensão tacitamente obrigatória e totalitária.

Multiplicaram-se as formações, os colóquios, os encontros, as comunicações presenciais ou digitais sobre o projeto. Os Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE) concentraram as suas preocupações prioritárias nos temas da avaliação/classificação (assim como nas tecnologias da informação e da comunicação) e passaram a desprezar ainda mais as ações de formação de professores dedicadas às áreas científicas específicas (História, Português, Matemática, Ciências Naturais, etc.)

Nestes «seminários» de formação de professores, o evangelho dos novos gurus da educação é propagado de modo sistemático e dogmático. Eis o seu conteúdo: excetuando um número exíguo de luminárias, os professores mergulharam há anos em práticas pedagógicas e avaliativas equívocas e perniciosas que têm desmotivado e lesado os alunos. Todavia, agora, chegou o momento de esses docentes reconheceram os seus atos falhados, saírem da caverna, enxergarem a luz da «verdade» e propiciarem, enfim, o sucesso educativo universal. Para isso, têm de optar exclusivamente por pedagogias ativas (discursar aos alunos sobre ciência tornou-se um pecado venial), fundir conhecimentos com competências, avaliar de forma holística, distinguir avaliar de classificar, diferenciar práticas de avaliação formativa e sumativa (fazer testes escritos sumativos é pecado mortal), definir objetivos, critérios, rubricas e indicadores de aprendizagem a partir das aprendizagens essenciais. Este é o novo paradigma educativo, o alfa e o ómega da escola, onde os professores devem concentrar toda a sua energia. Aqueles que preferirem canalizar a sua energia para a preparação pedagógica e científica das suas aulas não têm lugar na «escola moderna», onde ensinar conhecimentos se tornou um detalhe de menor importância.





Esta teologia e retórica «inovadoras», concebidas de cima para baixo pelo ministro da Educação e sua máquina de mentores, tecnocratas e burocratas já iniciou a sua «revolução» na escola pública. Porém, tal evangelho desperta reflexões e problemas que quase todos preferem ignorar, olimpicamente.

Há muito tempo que a maioria dos professores incorporou várias das práticas atrás descritas no seu trabalho, pois enveredaram por aulas dialogadas, optaram por experimentar metodologias ativas (e afetivas) e abandonaram os antigos hábitos de avaliar os alunos exclusivamente através de testes escritos. Contudo, é justo reconhecer que a avaliação formativa e sumativa sistemática e o recurso contínuo a pedagogias ativas acarreta dificuldades, a saber: é possível elaborar e operacionalizar critérios de avaliação holísticos onde os domínios comportamentais se fundem com os domínios do conhecimento? Como conciliar o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória com a lecionação dos conteúdos vertidos nos programas das diversas disciplinas? Devemos avaliar as escolas, os seus alunos e professores segundo os critérios utilizados nas empresas e aplicados aos seus «colaboradores»? Os professores do primeiro ciclo, que ensinam em regime de monodocência, têm turmas com cerca de 20 alunos, trabalham com os seus alunos todos os dias e acompanham-nos muitas vezes do início ao fim do ciclo, lá vão conseguindo, porventura, aplicar mais regularmente as intrincadas metodologias pedagógicas e avaliativas agora exigidas. Mas os professores dos ciclos subsequentes, que lecionam em regime de pluridocência, têm, na maioria dos casos, mais de cinco turmas (muitas vezes, oito, nove ou mais turmas), mais de 100 alunos com quem estão apenas numa, em duas ou em três aulas semanais de 50 minutos. Como podem estes professores ensinar e avaliar com objetividade e honestidade os seus alunos recorrendo, de modo sistemático, aos processos pedagógicos e avaliativos complexos hoje impostos, os quais pressupõem, por exemplo, um feedback (como agora se diz em bom português) instantâneo e contínuo? Como conseguem fazê-lo sem cair na armadilha de reduzirem a educação e avaliação a um processo bur(r)ocrático kafkiano? (Recordo-me de uma professora a quem os alunos chamavam «Caixa Registadora», porque passava as suas aulas a registar em grelhas digitais e em papel as alegadas evidências demonstradas pelos alunos). Como logram estes professores ensinar ciência e cumprir os seus programas recorrendo obsessivamente a estas pedagogias? Programas longos que em várias disciplinas (onde, em certos casos, a carga horária foi ainda mais reduzida) estão sujeitos a provas de aferição, provas finais de ciclo e exames nacionais que visam medir, com mais objetividade e seriedade, o conhecimento científico e literário dos alunos.

Decerto que podemos já tirar uma ilação da alegada aplicação das «novas» pedagogias no domínio da avaliação: o sucesso educativo inflacionou e as percentagens de retenções diminuíram drasticamente. E tais cifras fazem a felicidade das direções das escolas, do ME, do seu ministro e inspetores, bem como de muitos alunos, pais e professores. Paradoxalmente, a maioria dos alunos chega hoje ao ensino secundário e ao final do liceu pior preparados nos planos científico, literário e cívico. Trabalham menos, leem, interpretam e escrevem pior, revelam menos conhecimentos e – problema que não é de somenos importância – exibem comportamentos mais indisciplinados nas salas de aula. Isto é uma evidência que só escapa aos educadores românticos e aos tecnocratas da educação, que não pisam diariamente o chão das salas de aula, porquanto se escapuliram delas por falta de vocação e abnegação.

Está o ME disponível para debater estas questões? Não está. Neste momento, a ordem é arregimentar novos crentes, silenciar e marginalizar os descrentes e caminhar gloriosamente para o abismo. Quem chegar depois que feche a porta! E no futuro, a médio ou a longo prazo, quando se concluir que estas «políticas» pedagógicas não produziram melhores cidadãos, mas sim súbditos mais iletrados, amorfos e hedonistas, quem assumirá as responsabilidades? Obviamente, ninguém. Porque os portugueses já inscreveram no seu espírito a máxima de que em Portugal «a culpa [vive e] morre solteira»!

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