March 28, 2022

Dois apontamentos




Relativamente à teoria segundo a qual a invasão da Ucrânia é da responsabilidade da NATO e do Ocidente, duas notas:

1º Essa teoria assume um ponto de vista sociológico e descreve os eventos como resultado de forças sociais, assentes em pressupostos deterministas segundo os quais a realidade é um encadeamento de causas e efeitos cuja força é inexorável. O indivíduo filosófico e psicológico que decidiu tal e tal acção está ausente dessas explicações, como se as suas acções particulares nada tivessem que ver com a sua identidade, a sua consciência, a sua intenção e o seu livre-arbítrio, mas fossem meras reações à força necessária da corrente dos acontecimentos em que se insere amorfamente. Porque a NATO fez isto e aquilo e o Ocidente teve esta e a outra atitude, Putin foi levado a invadir a Ucrânia. Ora, se há coisa que esta guerra mostrou foi a parcialidade ou falta de objectividade dessa teoria. Contrariamente aos vaticínios dos primeiros dias desta guerra, tanto de teóricos, como de dirigentes de países -incluindo Putin- ou de diplomatas, a Ucrânia não só não se rendeu como recusa ser um tronco à deriva arrastado pelo rio da realidade sociológico-determinista. Ora isso deve-se, sobretudo, à decisão livre, da pessoa do seu Presidente. Gostava de ver as teorias da força inexorável da corrente histórica explicarem uma pessoa como ele e a resistência, o moral, o espírito e a vontade do povo ucraniano que são um tronco, não a seguir impotentemente a corrente, mas a mudar-lhe a orientação.

2º Essas explicações parecem só funcionar para um dos lados. Putin justifica a sua decisão (que não foi um impulso, foi calculada e preparada durante muitos anos) com as acções da NATO  e do Ocidente e muitos aceitam essa justificação. Da mesma maneira explicam Lenine e Estaline culpando o imperialismo dos Czars, primeiro e, depois, o imperialismo do Ocidente; também Hitler é explicado pelo imperialismo arrogante dos ocidentais. No entanto, quando se trata de acções dos ocidentais, nunca a responsabilidade é alocada a forças deterministas da História, mas aos próprios indivíduos. Ninguém explica a decisão de Truman de largar a bomba em Hiroshima como uma reacção inevitável à corrente dos eventos históricos; ninguém justifica a decisão de Bush, o filho, de invadir o Iraque, como uma reacção inevitável aos acontecimentos do 11 de Setembro. Tanto num como noutro caso assume-se que essas decisões foram tomadas com a liberdade da vontade e plena consciência individual das pessoas em questão, tal como no caso das decisões da NATO. Podíamos citar muitos outros exemplos. De há uns tempos para cá, quando se trata do imperialismo dos ocidentais a culpa é da pessoa que decidiu, quando se trata do imperialismo dos outros (neste caso de Putin), a culpa é das forças da História postas em marcha pelos decisões individuais dos ocidentais. 

Portanto, os ocidentais são pessoas livres que tomam decisões conscientes e voluntárias, os outros déspotas são agentes determinados e amorfos da História que reagem às forças negativas postas em marcha pelos ocidentais?

texto também publicado no delito de opinião


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