December 12, 2021

O caso das FP25 por Cândida Almeida




Cândida Almeida tem vindo a escrever no JN uma série de artigos de muito interesse sobre as FP25, Otelo e a sua participação nessa organização terrorista.

Cândida Almeida, ex-diretora do DCIAP e procuradora do Ministério Público que acusou as FP 25, em 1984, esteve durante muitos anos à frente do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e foi quem fez o despacho de acusação, estando, por isso, ao corrente de todos os pormenores do caso que tem vindo a revelar.

Ficaram hoje completos.

Durante o presente ano, o caso de terrorismo interno conhecido por Processo FP25 voltou a ser alvo de intenso noticiário, de debates e comentários televisivos.


Cândida Almeida

(14.11.21)
Trinta e sete anos após o início do processo principal e trinta e quatro anos após a primeira decisão condenatória, constato que é bastante deficiente e desfocado o conhecimento dos cidadãos sobre um período violento que afectou a nossa vida colectiva, espalhando o terror, a morte e o medo. Em algumas das intervenções e comentários públicos surpreende-se uma tentativa de classificar politicamente a organização FP25, mas o certo é que o terrorismo não tem política, não é de Esquerda nem de Direita, é puramente terror, inimigo das democracias e da liberdade, querendo apenas instituir o caos e disseminar a intranquilidade e a dúvida no normal funcionamento das instituições. Pretende, enfim, estabelecer o medo e o silêncio. As prováveis razões da recuperação do interesse pelo caso terão sido a publicação da obra do conselheiro Cunha Rodrigues, "Memórias improváveis", que lhe dedica dois capítulos, relatando vivências até agora não divulgadas; a publicação do livro de Nuno Gonçalo Poças, "Presos por um fio - Portugal e as FP-25 de Abril", que retrata com muito rigor a organização, a sua nomenclatura, a sua estrutura, as suas reuniões e as suas actividades criminosas. Será também de ter em conta a inesperada partida de Otelo Saraiva de Carvalho, que lamento pessoalmente, e que terá constituído um motivo determinante das diversas notícias, porquanto, no desenho do seu perfil e no relato da sua personalidade, foi imperioso mergulhar no percurso que Otelo, por si e para si, esculpiu na História de Portugal, de herói do 25 de Abril de 1974 a dirigente de uma organização terrorista.

Em minha opinião, o seu lugar cimeiro na História da implantação da democracia em Portugal está gravado indelevelmente. Porém, alguns anos depois inverteu a sua marcha de herói e afundou-se na criação de um projecto terrorista, que dirigiu e designou de projecto global comummente conhecido por FP 25 de Abril. Esta organização era composta por quatro componentes, sendo uma delas a da violência, a estrutura civil armada (ECA), que levava a cabo, executava, os actos criminosos determinados pelas componentes direcção político-militar (DPM) e OSCAR (Otelo Saraiva de Carvalho). Considerando os anos já passados desde a Amnistia de 1995, a não permissão da divulgação pública das alegações do MP apresentadas, em tribunal, em 1997, determinada pelo então ministro da Justiça e o facto de ter constatado que existe ainda muita nebulosidade no que concerne aos julgamentos a que a organização e seus militantes foram sujeitos e sendo um período histórico que interessa a todos reter para prevenção de outros extremos que possam vir a ser concebidos, parece-me importante recuperar, ainda que sinteticamente, a história desta organização e do seu julgamento.

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(21.11.21)
O dossier FP25 de Abril pode congregar-se em três grandes processos judiciários, porquanto neles se relata e espelha toda a existência de uma organização terrorista, a que Otelo Saraiva de Carvalho apelidou de Projecto Global, conhecido publicamente por FP25.

Neles se revelam e comprovam a estrutura, a orgânica, as funções de cada elemento no seio da organização e as reuniões secretas levadas a cabo ao longo dos anos. Enfim, recuperando o título de um livro publicado por um dos arguidos, colaborador da justiça, Macedo Correia, aqueles três processos contam a história judiciária da ascensão e queda das FP25.

O primeiro daqueles foi instaurado no Tribunal em 17.6.1984, com a emissão de mandados de captura, de buscas e apreensão de bens e documentos. Entre 18 e 19 do mesmo mês foram interrogados os detidos que, por decisão do JIC, ficaram em prisão preventiva.

A prova assim obtida, sobretudo a documental, as armas recolhidas, as declarações de Otelo, conjugadas com os seus cadernos manuscritos e com as actas de reuniões manuscritas por outro co-arguido, foram fundamentais para reproduzir o desenho da organização, a sua estrutura, os seus objectivos, a responsabilidade de cada elemento e respectiva divisão de tarefas.

Desde praticamente o início da investigação judiciária contou-se com a colaboração de dois membros, presos, no Porto, aquando da tentativa de um assalto a um banco. Nos carros em que se transportavam os assaltantes foram apreendidos documentos de propaganda das FP25 e de reivindicação do crime que se preparavam para levar a cabo e que só não ocorreu por intervenção acidental da PSP.

Quer neste processo, quer no que se lhe seguiu, já com a colaboração de outros arguidos entretanto presos, Macedo Correia e Mário Lamas, entre outros, foi possível identificar uns e confirmar a identidade de outros elementos que ainda não haviam sido presos. A colaboração destes dissidentes foi fundamental para a investigação neste segundo processo que reuniu, na sua maioria, os membros que executavam os crimes, enquanto que o primeiro acolhia sobretudo os dirigentes máximos do grupo. Todos os crimes praticados eram-no em nome e no interesse da organização, com a aceitação voluntária e consciente de todos os seus membros.

O chamado Projecto Global/FP25 organizava-se, fundamentalmente em quatro componentes: a direcção político-militar (DPM), órgão máximo que decidia a estratégia e a táctica a levar a cabo e determinava as características dos cidadãos a assassinar; a estrutura civil armada (ECA/FP25), que tinha como objectivo imediato a execução dos crimes queridos e determinados no órgão próprio da organização; a organização política de massas (OPM/OUT/FUP), cuja função primordial era a de defender a legalidade do grupo enquanto OUT/FUP e responsabilizar o Estado pelos crimes cometidos, referindo-os como terrorismo de Estado; a componente Otelo Saraiva de Carvalho (OSCAR), unipessoal, que integrava também a DPM.

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(28.11.21)
Foram apreendidas à ordem de ambos os processos inúmeras armas de guerra, utilizadas nos homicídios, nos assaltos a empresas, a bancos e em atentados à integridade física de diversos industriais, prova testemunhal, documental e logística (localização de "cárceres do povo" e esconderijos de arsenal de armamento disfarçado no subsolo de uma casa).

Nas sedes da FUP, foram encontrados documentos manuscritos e escritos à máquina que, conjugados e cruzados com os apreendidos a Otelo e a outros co-arguidos, permitiram desenhar completamente a estrutura, logística, identificação dos elementos mais relevantes e responsabilidades de todos e de cada um no seio do projecto global/FP25. De entre os documentos recolhidos na FUP, sublinham-se 27 documentos, escritos por diversos elementos da DPM, OPM, ECA e OSCAR, levados a discussão e votação numa reunião secreta, ocorrida na serra da Estrela, a que chamaram Conclave, com todos os presentes encapuzados e, à frente de cada um, apenas um cartão com um algarismo que os identificava. No cartão com o número 7, Otelo manuscreveu frases muito reveladoras quanto às suas ideias sobre a violência, relativamente ao documento número 16, que estabelecia as regras para a intervenção violenta das várias componentes na decisão e execução dos crimes a levar a cabo. No que concerne à morte dos cidadãos, que a organização considerava inimigos, Otelo escreveu que se "contentava com o perfil do in a abater". Macedo Correia também participou nesta reunião, nela apresentando propostas de projecto político-terrorista, táctica e estratégica da organização, os crimes a executar. Naquele documento, no número 16, apelava-se à urgência de iniciar os "engarrafamentos", que em gíria terrorista significava raptos, sequestros, seguidos da colocação das vítimas em "cárceres do povo". Em julgamento, Otelo, confrontado com o documento, respondeu, quando especificamente perguntado sobre os "engarrafamentos", que pensava que "eram engarrafamentos de água do Luso". Sobre a violência em geral que emanava do referido documento, Otelo respondeu que a sua organização fora infiltrada pelas FP25. Recorde-se que dois daqueles "buracos" para confinamento das vítimas raptadas foram construídos com a participação de António Barradas, um dos colaboradores da justiça, morto a tiro pela organização, quando já se encontrava marcada data para julgamento.

Por outro lado, foi apreendido nos autos um documento manuscrito por Otelo Saraiva de Carvalho que dava conhecimento aos seus pares de um elemento da ETA estar disponível para vir a Portugal orientar e explicar a construção dos "cárceres do povo" e como acondicionar neles as vítimas, a troco da entrega de um caderno de cheques falsos. 

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(5.12.21)
Em 4.2.1984, Otelo resume a reunião da DPM, na qual se debateu uma informação que a organização recebera sobre a preparação de uma acção policial e judiciária contra os elementos da organização.

Nessa reunião, decidiu-se o recuo dos elementos já identificados pela PJ - recuo, na linguagem terrorista, significava que aqueles elementos teriam de retirar-se das respectivas casas e vida social, escondendo-se em apartamentos ou residências desconhecidas, em lugar desconhecido. Os elementos que viessem a ser detidos, nos respectivos interrogatórios judiciais apenas se declarariam militantes da FUP (OPM). Foi ainda decidido que todos iriam eliminar os papéis e documentos reveladores da sua pertença a uma organização terrorista. Se bem que tenham cumprido, em Tribunal, o compromisso de se assumirem como militantes da FUP, não assim procederam à destruição dos documentos e papéis comprometedores. Desde Otelo às sedes da FUP, todos guardavam documentos extremamente elucidativos da violência programada e executada pelo Projecto Global/FP25. Com o cruzamento do conteúdo da informação assim recolhida, foi possível a investigação reconstituir todo o edifício terrorista, que tinha como objectivo final a tomada, pelas armas, do poder político democrático, então já instalado no país.

Numa outra reunião da DPM, resumida por Otelo nos seus cadernos, os elementos daquela decidiram ser útil e fundamental a organização conceder uma entrevista a um jornal diário, no sentido de defender os actos e actividades criminosas daquela e os seus objectivos estratégicos. Passados cerca de dois dias, é dada à estampa uma entrevista a um jornal, já extinto, com a insígnia e sob o lema das FP25, tratando exactamente os temas versados e aprovados naquela reunião da DPM. Otelo nunca assumiu que o Projecto Global e as FP25 eram uma mesma e única organização, acabando por revelar, apenas, que o seu Projecto Global fora infiltrado pelas FP25. No entanto, confrontado com a morte de um bebé em São Mansos, vítima de uma explosão que pretendia atingir o pai da criança, respondeu que fora um "incidente". Otelo nunca rejeitou qualquer crime cometido e reivindicado pelas FP25.

A organização terrorista Projecto Global/FP25 determinou e levou a cabo cerca de 17 homicídios, vários crimes de ofensas corporais graves e inúmeros assaltos armados. Todos os seus elementos actuaram sempre em nome e no interesse daquela, sabiam, queriam, determinavam, executavam e aceitavam os crimes cometidos no interesse estratégico daquela. Cada elemento tinha a sua função específica no interior da organização, os que a fundaram e os que a ela aderiram, mas todos sabiam, queriam e aceitavam a execução dos crimes já elencados, porque, no seu entendimento e querer, a violência, o medo e a instabilidade social e económica que infundiam na sociedade facilitaria o caminho à insurreição armada.

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(12.5.21)
Os milhares de documentos apreendidos nos processos, cruzados entre si e complementados pelas declarações dos arguidos que decidiram prestar depoimento e das testemunhas e vítimas inquiridas, permitiram esventrar a organização terrorista PG/FP25, acabando a maioria dos arguidos condenados a penas de prisão pesadas.

O terceiro processo destinava-se a apurar a responsabilidade criminal e o grau de culpa de cada um dos arguidos condenados naqueles dois primeiros processos, por cada um dos crimes de sangue que aquela reivindicou enquanto FP25 e praticados em nome e no interesse da organização, como um meio de provocar a insurreição armada no país e tomar o poder democrático pelas armas. Neste último processo, colocavam-se, assim, duas grandes questões jurídicas sobre as quais não havia jurisprudência. Primeira - todos e cada um dos elementos da organização terrorista, integrando as respectivas componentes, eram co-responsáveis criminalmente por todos e cada um dos crimes de sangue, decididos e aceites por todos e executados pelo braço armado ECA/FP25?

Segunda - para a condenação de todos os arguidos como co-autores de cada um dos crimes praticados seria necessário identificar cada um dos que executaram o acto? Estes actuaram, como autómatos, às ordens, vontades e aceitação do resultado criminoso de todos os que integravam o grupo. Impor-se-ia a identificação dos executores de cada um dos crimes, se os mandantes usassem drones ou robots para a consumação do crime? De sublinhar que, nos referidos dois primeiros processos, ficou provado que a organização levou a cabo os crimes de homicídio e ofensas corporais graves, reivindicados publicamente em panfletos redigidos sob a sigla FP25.

A primeira instância e o Tribunal da Relação de Lisboa decidiram que era necessária a identificação dos executores que actuaram sempre com capuzes ou longe de olhares inocentes. Era imperativo, por isso, o recurso para o STJ.

Por erro, lapso, deficiência ou falta de comunicação entre o MP no Tribunal da Relação, a magistrada responsável pela interposição de recurso não o fez e, em consequência, o processo sucumbiu ingloriamente num trânsito em julgado perturbador.

Assim se encerrou um dos períodos mais violentos, que atemorizou a comunidade e chamuscou indelevelmente a grandeza da conquista da nossa democracia, então já estabilizada.

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