Thomas Nail
Apesar da sua influência histórica, porém, o atomismo acabou por ser aniquilado pelo Platonismo, o Aristotelismo e a tradição cristã que se seguiu durante toda a Idade Média. Platão disse aos seus seguidores para destruírem os livros de Demócrito sempre que os encontrassem [´é a primeira vez que ouço isto...], e mais tarde, a tradição cristã fez jus a esta exigência.
Hoje, só restam algumas breves cartas de Epicuro. O atomismo, porém, não estava terminado. Reapareceu em 1417, quando um caçador de livros italiano chamado Poggio Bracciolini descobriu uma cópia de um antigo poema num mosteiro remoto: De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas), escrito por Lucretius (c99-55 BCE.), um poeta romano fortemente influenciado por Epicurus.
Este poema filosófico em verso épico apresenta o relato mais detalhado e sistemático do materialismo antigo que tivemos a sorte de herdar. Nele, Lucretius avança uma teoria de cortar a respiração sobre questões fundacionais em tudo, desde a física à ética, estética, história, meteorologia e religião. Contra a vontade e os melhores esforços da igreja cristã, Bracciolini conseguiu imprimi-lo e, rapidamente, circulou por toda a Europa.
De facto, esta é a razão pela qual, encurtando uma história longa e importante, a ciência e a filosofia ainda hoje tendem a procurar e a assumir uma discrição fundamental na natureza. Graças em grande parte à influência de Lucretius, a busca da discrição tornou-se parte do nosso ADN histórico.
O método interpretativo e a orientação da ciência moderna no Ocidente devem literalmente os seus fundamentos filosóficos ao atomismo antigo através do pequeno livro de Lucretius sobre a natureza.
Lucretius, como diz Stephen Greenblatt no seu livro, The Swerve (2011), é "como o mundo se tornou moderno". Porém, há um problema. Se esta história é verdadeira, então o pensamento ocidental moderno baseia-se numa leitura completamente errada do poema de Lucretius.
Não foi uma má leitura intencional, claro, mas uma em que os leitores cometeram o erro de projectar o pouco que sabiam, em segunda mão, sobre o atomismo grego (sobretudo através do testimonia dos seus inimigos) no texto de Lucretius.
Assumiram uma relação mais estreita entre a obra de Lucretius e a dos seus antecessores do que a que realmente existe. Crucialmente, inseriram as palavras 'átomo' e 'partícula' no texto traduzido, embora Lucretius nunca as tenha utilizado. Nem uma única vez! Uma omissão bastante estranha para um chamado 'atomista' fazer, não?
Lucretius poderia facilmente ter usado as palavras latinas atomus (partícula mais pequena) ou particula (partícula), mas ele fez questão de não o fazer. Apesar dos seus melhores esforços, porém, os dois termos latinos muito diferentes que ele utilizou, corpora (matéria) e rerum (coisas) foram rotineiramente traduzidos e interpretados como sinónimos de, átomos discretos.
Além disso, os modernos traduziram ou ignoraram completamente a linguagem quase ubíqua do continuum utilizada ao longo do seu livro, em frases como solida primordia simplicitate ('simplex continuum').A existência deste continuum material no latim original impressionou-me muito profundamente. Tentei mostrar tudo isto na minha recente tradução e comentário, Lucretius I: Uma Ontologia do Movimento (2018), mas aqui está o ponto alto: este simples mas sistemático e omnipresente erro interpretativo constitui o que pode muito bem ser o maior erro na história da ciência e filosofia modernas.
Este erro enviou a ciência e filosofia modernas numa busca de 500 anos pelo que Sean Carroll no seu livro de 2012 chamou de "a partícula no fim do universo". Deu origem às virtudes louváveis de vários naturalismos e materialismos, mas também a reducionismos mecanicistas menos louváveis, racionalismos patriarcais e ao domínio manifesto da natureza pelos humanos, nenhum dos quais pode ser encontrado nos escritos latinos originais de Lucretius. Mais ainda, mesmo quando confrontados com fenómenos aparentemente contínuos como a gravidade, campos eléctricos e magnéticos e, eventualmente, espaço-tempo, Isaac Newton, James Maxwell e até Albert Einstein voltaram a cair na ideia de um "éter" atomístico para os explicar.
Até aos tempos antigos, pensava-se que o éter era uma substância subtil e fluída composta de partículas insensivelmente pequenas. Hoje, já não acreditamos no éter ou lemos Lucretius como um texto científico de autoridade. No entanto, à nossa maneira, ainda enfrentamos o mesmo problema de 'continuidade vs discrição' que nos foi originalmente legado pelos modernos: na física quântica
A física teórica está hoje num ponto crítico de viragem. A relatividade geral e a teoria quântica de campo são as duas maiores partes do que os físicos agora chamam "o modelo padrão", que tem gozado de incrível sucesso preditivo.
O problema, porém, é que ainda não foram unificados como dois aspectos de uma teoria abrangente. A maioria dos físicos pensa que tal unificação é apenas uma questão de tempo, ainda que as actuais frentes teóricos (teoria das cordas e gravidade quântica em loop) ainda não tenham produzido confirmações experimentais.
A gravidade quântica é de enorme importância. De acordo com os seus proponentes, está pronta para mostrar ao mundo que o tecido final da natureza (espaço-tempo) não é de todo contínuo, mas sim granular, e fundamentalmente discreto. O legado atomista pode finalmente ser assegurado, apesar das suas origens num erro de interpretação. Há apenas um problema preocupante: a teoria quântica de campo afirma que todos os quantum de energia (partículas) discretos são meras excitações ou flutuações em campos quantum completamente contínuos. Os campos são não fundamentalmente granulares. Para a teoria do campo quântico, tudo pode ser constituído de grânulos, mas todos os grânulos são feitos de campos contínuos dobrados que nós simplesmente medimos como granulares.
Isto é o que os físicos chamam "teoria da perturbação": a medida discreta daquilo que é infinitamente contínuo e assim "perturba a medida completamente discreta", como Frank Close a coloca em "O Enigma Infinito" (2011).
Os físicos também têm um nome para o movimento sub-granular deste campo contínuo: 'flutuações de vácuo'. Os campos quânticos não são mais do que matéria em constante movimento (energia e impulso). Portanto, nunca são 'nada', mas são mais como um vazio completamente positivo (o próprio fluxo do vácuo) ou um oceano ondulante (apropriadamente chamado 'o mar Dirac' por Carlo Rovelli em, A realidade não é o que parece (2016).
As partículas discretas, por outras palavras, são dobras em campos contínuos. A resposta à questão central no cerne da ciência moderna, 'É a natureza contínua ou discreta?' é tão radical quanto simples.
O espaço-tempo não é contínuo porque é feito de grânulos quânticos, mas os grânulos quânticos não são discretos porque são dobras de campos vibrantes infinitamente contínuos. A natureza não é, portanto, simplesmente contínua, mas um continuum fechado, o que nos traz de volta a Lucretius e ao nosso erro original.
Trabalhando imediatamente dentro e contra a tradição atomista, Lucretius apresentou a primeira filosofia materialista de uma natureza infinitamente contínua, em constante fluxo e movimento. As coisas, para Lucretius, não são mais do que dobras (duplex), pregas (plex), bolhas ou poros (foramina) num único tecido contínuo (textum) tecido pelas suas próprias ondulações. A natureza é infinitamente turbulenta ou perturbadora, mas também lava a terra, como o nascimento de Vénus, em formas meta-estáveis - como Lucretius escreve nas linhas de abertura de De Rerum Natura:
Sem ti [Vénus] nada emerge para as margens iluminadas pelo sol".
Levou 2.000 anos, mas talvez Lucretius se tenha finalmente tornado o nosso contemporâneo.
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