Hoje estive a ler uma tese de doutoramento de António Carlos Brolezzi. O que me chamou a atenção foi o título, A Tensão entre o Discreto e o Contínuo. Não a li na totalidade porque tem capítulos dedicados ao ensino da Matemática, mas tem também capítulos ligados à Filosofia -afinal, a Matemática ocidental começa na Grécia Antiga com os pré-socráticos- e outros sobre avaliação. Estes interessaram-me muito.
A avaliação escolar é uma tensão entre o discreto (o quantitativo) e o contínuo (qualitativo). Desde que os modernos desprezaram as 'qualidades secundárias' e Descartes impregnou a Matemática em todo o conhecimento como metodologia de rigor, que as ciências, tanto as do 'preciso' como as do 'impreciso' têm reduzido quase todo o seu trabalho ao discreto, à custa do contínuo. O cientismo deu um grande impulso a este movimento, cuja inércia ainda se sente.
Para reforçar a tendência, os computadores vierem reduzir o humano a algoritmos, transformando a realidade numa vitória pitagórica - Pitágoras, desde que percebeu que as vibrações das cordas musicais se podiam traduzir em compassos numéricos, entendia que tudo era traduzível numericamente, logo, tudo era número.
Certamente esta tendência tinha que ter impacto na avaliação escolar que tende, cada vez mais, para um reducionismo quantitativo, porque a qualificação ganhou má reputação de subjectivismo a ser eliminado pela cada vez maior minúcia quantitativa. Hoje-em-dia há escolas que obrigam os professores a decompor todas as suas avaliações nas suas partes mais ínfimas e a quantificar cada uma delas, como se esse trabalho garantisse uma melhor avaliação dos alunos eliminando toda a subjectividade. Não elimina e desvirtua a avaliação contínua. Este absurdo é fomentado pelo ME que pensa assim controlar a qualidade dos professores - a SE que agora está em outro ministério a destruir a qualidade da ADSE era grande defensora deste simplismo enganador que agora transportou para outro ministério (mas deixou um seguidor no outro SE...)
Enfim, para se ser justo, é preciso reconhecer que lidar com grandes quantidades de alunos obriga a uma maior quantificação e que o problema da avaliação é muito complexo e impreciso, porque lida com demasiadas variáveis. No entanto, não era necessário, nem desejável, chegarmos a este ponto, em que nos dizem qual é a única interpretação possível de uma resposta de um aluno em exame, por exemplo.
Actualmente, pelo menos no nosso país, os governantes da tutela não sabem resolver este problema da tensão entre o qualitativo e o quantitativo e polarizam-no: ou defendem que o ensino deve ser uma preparação para exames, desprezando completamente o contínuo ou defendem que deve acabar-se com os exames, desprezando completamente o discreto.
O discurso da tutela é completamente contraditório e não ajuda os alunos. Por um lado tem um discurso de inclusão, por outro tem um discurso de vergonha do erro e da falha ao ponto de obrigar a que se escondam os resultados dos alunos, como se fosse uma mancha na sua pessoa.
Na semana passada uma aluna fazia, no início da aula, o sumário da aula anterior - é a primeira tarefa de autonomia que ensino os alunos a fazer, no 10º ano, com o objectivo de chegarem ao final do 11º ano e não precisarem de mim para coisa alguma. À medida que ela ia fazendo o sumário, eu interrompia de vez em quando para corrigir, não o conteúdo mas a precisão de linguagem. De cada vez que a corrigia ela dizia, 'peço imensa desculpa'. À 2º vez perguntei-lhe, 'mas está a pedir desculpa de quê?' — de ter errado, disse ela. Nesta altura interrompemos a cena de do sumário e expliquei-lhes que o erro faz parte do conhecimento e é benéfico apercebermos-nos dos erros porque é assim que se corrigem e que avançamos e, ainda, que as aulas não são um campeonato de ver quem acerta e quem erra: são uma colaboração entre todos para melhorar o pensamento e sermos mais conscientes dos problemas humanos e mais eficazes a pensá-los numa perspectiva de melhorar o mundo, talvez. Com uma ponta de sorte e muita boa vontade. Logo, o erro, a não ser que seja de desleixo e falta de interesse, é inevitável e produtivo.
Há uma cultura de vergonha do erro, incompreensível, a meu ver, mas fomentada por estas pedagogias miserabilistas em que se tratam os alunos como coitadinhos. Enfim, também não é verdade aquilo que diz o SE da educação, isto é, que uma aluno que aprende bem consegue fazer qualquer exame e não precisa de treino. Pessoalmente, penso que ele diz isto como gabarolice, maneira de dizer que era tão bom que não precisava de treino para exames. como aquelas mulheres que são contra as quotas porque querem dar a entender que estão nos cargos porque são muito boas e nunca precisariam de quotas. Um e outras passam ao lado da questão sem compreender os seus parâmetros.
Um aluno treina-se para conseguir notas altas, dada a dificuldade de entrar em certos cursos, em certas universidades. Ora, um aluno pode ser excelente na disciplina e não saber como tirar notas altas em exames, porque o treino para o exame, não é saber responder a questões, mas saber responder de maneira a ir ao encontro do que é valorizado pelo avaliador.
(vou continuar isto noutro post -o que é avaliar, as suas variáveis e porque é necessário não escolher entre o discreto e o contínuo mas abraçar os dois, mesmo que um deles, finalmente, tenha que ser traduzido num nota quantitativa- porque agora mesmo desafiaram-me para ir comer um peixe assado e ainda tenho que ir vestir-me)
No comments:
Post a Comment