August 23, 2021

Olha, se estes médicos praticassem 'mindfulness' estavam felizes

 


Agradecidos aos céus e aos mares, ao vento e às flores e em vez de se queixarem e de deixarem o país, eram amáveis e sofredores, mas felizes... é isso...


Médicos. "Estamos exaustos"

Filipa esteve na Suécia e, de regresso a Portugal, não quer voltar ao SNS. Mara abandonou-o há 11 dias e mantém-se no privado. Com mais de 30 anos de carreira, Constantino salienta o cansaço da classe.

por Maria Moreira Rato

Fez a especialidade de Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar (USF) do Cartaxo, no distrito de Santarém, e trabalhou dois anos como especialista na USF Salinas de Rio Maior. No entanto, em 2014, rescindiu contrato com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e integrou o grupo de 387 médicos que decidiram abandonar o país, segundo dados apurados pela Ordem dos Médicos. «O principal motivo pelo qual saí foi porque gastava 400 euros, mensalmente, em gasolina e portagens. Pedi para mudar de centro de saúde várias vezes e nunca me deixaram. Fazia cerca de 60 quilómetros todos os dias», desabafa Filipa Miguel, de 43 anos, em declarações ao Nascer do SOL, médica que viveu durante quatro anos na Suécia e somente regressou a Portugal em 2018.

«Decidi voltar por motivos pessoais porque profissionalmente estava muito bem como estava. Neste momento, trabalho parcialmente no privado e faço videoconsultas para a Suécia. Quando vim para Portugal, ofereceram-me a oportunidade de trabalhar 50% presencialmente e 50% virtualmente, mas não conseguia viajar para a Suécia de duas em duas semanas. Então, optei por trabalhar para um empregador privado que só oferece serviços digitais», explica a profissional de saúde que começou por dedicar-se ao setor público no país nórdico e não se arrependeu, pois «o ordenado líquido é quase três vezes superior àquele que se ganha cá e, apesar do custo de vida ser superior, tem-se um desafogo financeiro maior àquele que temos em Portugal a ganhar 1700 euros».

Além disso, «não tinha tantos doentes nem tantas consultas por dia e existiam, com alguma regularidade, reuniões em que se discutiam os problemas na unidade, aquilo que cada médico sentia e como podíamos melhorar as condições de trabalho. Aqui, não existe muito esse diálogo, mas lá querem que nos sintamos realizados e que tiremos o maior partido das capacidades que temos», sendo que, ao contrário daquilo que acontece em território nacional, não são colocados entraves quando os médicos pretendem fazer investigação ou reduzir o horário de trabalho por razões como o acompanhamento do crescimento dos filhos.

«Foi a primeira vez em que me senti realizada em termos laborais. Tinha feedback da entidade laboral. Estava em Gotemburgo, mas não foi lá que comecei, comecei por uma cidade mais pequena. E, para melhorar a minha vida social, pedi para ir para um centro maior. Em Portugal, nunca consegui mobilidade», sublinha a atual profissional do Hospital CUF Santarém que se formou em Medicina, pela Universidade da Beira Interior, em 2007.

«Nunca me passou pela cabeça voltar para o SNS. Fui e vim e estava tudo na mesma, senão ainda pior. Não quero regressar enquanto as coisas não melhorarem. Sinto que não posso mudar nada e não posso pagar com a minha saúde mental os problemas que o SNS tem», frisa, adiantando que, quando emigrou, aprendeu que «é importante termos tempo para nós e para a nossa família», sendo que, nos primeiros tempos, fazia horas extra para adiantar trabalho. Certo dia, a então chefe perguntou-lhe se estava tudo bem e se devia fazer ajustes ao horário para que Filipa não trabalhasse demasiado. No entanto, a médica tinha medo de não conseguir realizar as tarefas pois, em Portugal, almoçava em cerca de 15 minutos e tratava de tarefas administrativas fora do expediente.

O facto de Filipa ter continuado com esta mentalidade não é de estranhar, pois, de acordo com os dados disponibilizados no Portal da Transparência do Ministério da Saúde, que o jornal i analisou, até junho foram feitas quase 11,5 milhões de horas de trabalho extraordinário no SNS, mais 41% do que no primeiro semestre de 2020. O maior aumento da carga de trabalho para os profissionais, que por lei têm de fazer até 200 horas de trabalho suplementar por ano no caso dos médicos e 150 horas no caso dos enfermeiros, verificou-se nos primeiros três meses do ano, em que foram feitas mais do dobro das horas extra do que seria um primeiro semestre «normal», usando por comparação 2019 e 2020. No segundo semestre continuou a verificar-se um aumento de trabalho extraordinário face ao que eram os valores pré-pandémicos e, mantendo-se este ritmo, 2021 poderá superar o volume de trabalho suplementar de 2020.

«Em Portugal, no SNS, senti que era descartável. Vou tentar conciliar o trabalho como está organizado agora. Mas, se por algum motivo isto se tornar inviável, e tivesse de escolher, voltaria para a Suécia. Lá, ganhava muito mais e pagava menos impostos do que cá», finaliza a profissional que se encontra grávida do primeiro filho e tem noção de que benefícios como educação e cuidados dentários gratuitos para os mais novos só seriam possíveis fora do país. «Por todos estes motivos, quem beneficia da ótima formação que os médicos portugueses têm são os outros países».

‘Fui a sétima médica a sair desde que acabou o estado de emergência’

Quem corrobora a experiência de Filipa é Mara Marques, de 35 anos, que saiu do SNS no passado dia 9 de agosto. Depois de ter feito o internato em Rio Maior e ter lá estado cinco anos, foi para o Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Oeste Norte quando se tornou especialista, regressando às Caldas da Rainha, cidade de onde é natural. Após ter estado seis meses a contribuir para a abertura da USF do Bombarral, passou dois anos nas Caldas da Rainha, na sua vaga preferencial. «É um trabalho que atualmente está a ser muito ingrato. Temos muitos utentes por médico de família e listas de utentes com unidades ponderadas acima do que é estipulado. São ficheiros, na maioria das vezes, muito envelhecidos, sendo assim constituídos por pessoas que necessitam de muitas consultas, pois um ficheiro jovem não tem tantas necessidades em termos assistenciais», confessa a jovem , lembrando que a população idosa padece mais de doenças crónicas como diabetes, hipertensão e outras doenças do foro cardiovascular que exigem acompanhamento regular e atento.

«Outro ponto que há largos anos vem também assombrar aquilo que devem ser os cuidados de qualidade prestados aos nossos utentes são os tempos de consulta. O médico de família tem, muitas das vezes, apenas 15 minutos para ver um utente. É muito pouco, até porque a Medicina Geral e Familiar (MGF) é uma especialidade que se centra na pessoa e não apenas na doença, ao contrário de outras: por exemplo, a pessoa vai a um ortopedista para resolver um problema num joelho, mas quando vai ao seu médico de família, trata de quase tudo», conta, afirmando que os «médicos de família tratam a pessoa de uma forma holística», tendo em conta aspetos variados como as vidas familiar, pessoal e laboral.

«Apesar de haver um documento da Ordem dos Médicos que regula os tempos de consulta, onde lemos que poderíamos dispor de 30-60 minutos para uma consulta de saúde de adultos, a verdade é que, no meu horário, todas tinham a duração de 15 minutos», lamenta, realçando que «de nada servem estes regulamentos quando as direções executivas fazem circulares internas que obrigam os médicos de família a fazerem consultas com uma duração muito inferior».


Tal acontece porque a preocupação das chefias prende-se com «os números», tendo todos os profissionais de saúde dos cuidados primários «ficheiros com mais utentes do que seria suposto – 1550 utentes por médico de família – e, para estas chefias apenas há que dar resposta, mesmo que esta não seja a melhor para os utentes», sendo que Mara admite que alguns dos seus colegas tinham entre 1900 e 2000 utentes a seu cargo, um número que leva a que nem todos possam ser seguidos com a devida regularidade.

Para além de, desde o início da pandemia, os médicos de família estarem a ser mobilizados para «ainda mais tarefas assistenciais», na medida em que «já passou um ano e meio e o nosso Ministério ainda não encontrou outra solução para o seguimento dos doentes com covid em casa (Trace Covid) que não os médicos de família», tal como o apoio aos centros de vacinação, Mara, que se dedica a vertentes como a da perda de peso, da diabetes e da Medicina do Viajante recorda que também urge refletir acerca das restantes condições de trabalho com as quais os médicos se deparam. «Qualquer entidade privada é obrigada a ter medicina no trabalho, no SNS já não é bem assim, pois estive desde fevereiro de 2019 naquele ACES e posso dizer que nunca tive uma consulta. A saúde dos médicos enquanto trabalhadores não interessa para as nossas chefias nem para o Governo». Além disto, a médica trabalhava sem ar condicionado, nem sempre tinha tinteiros na impressora – «cheguei a ter de dizer ao doente que ia enviar as receitas por email e telemóvel e os utentes mais idosos orientam-se mais facilmente com as prescrições em papel e, por vezes, apagavam as mensagens sem querer e ficava com essa tarefa pendente» –, sendo que até o papel era racionado. «Em vez de levar uma resma para o meu gabinete, tinha de levar ‘um molhinho’ como me pedia a administrativa», narra, deixando claro que os problemas não ficavam por aqui.

«Quantas vezes o aparelho de tensão arterial ficava sem pilhas e, como não havia mais, tinha de ir pedir outro emprestado a um colega ou enfermeiro. Na última semana em que trabalhei, queria auscultar o foco fetal de uma grávida e não havia pilhas e, depois de esperar algum tempo, lá se conseguiu encontrar, segundo a administrativa, a última embalagem de pilhas que havia na unidade», constata a médica formada pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa que, antes de se despedir, pediu uma reunião com a diretora executiva do ACES, desejando debater aquilo que se encontrava mal e tendo até vontade de ponderar a mudança de unidade.

«Nunca tive resposta ao email. Entreguei a denúncia de contrato e nem uma palavra me deu. Na verdade, somos só números. No meu ACES, julgo que fui a sétima médica a sair desde que acabou o estado de emergência. Se nada for feito para mudar este rumo, o SNS continuará a perder os seus médicos e os doentes a sofrer o peso da falta de coragem e de planificação do Ministério da Saúde».

Entre março e novembro de 2020, o SNS perdeu 842 médicos, entre especialistas e internos. Mais de metade (476) aposentaram-se, seja por limite de idade ou reforma antecipada. No mesmo período, de acordo com o Portal da Transparência, foram contratados 378 especialistas. Por outro lado, nos primeiros cinco meses deste ano, este número situava-se nos 231 médicos, sendo que mais de metade eram especialistas de medicina geral e familiar.

‘A pandemia aumentou tudo o que de mau já se fazia’


A dois anos da reforma encontra-se Constantino Santos, de 64 anos, médico de família na USF S. Torcato, no ACES do Alto Ave, desde setembro de 2009, que conta com mais de 30 anos de experiência, tendo trabalhado em locais como a Unidade Coordenadora Funcional da Saúde da Mulher e da Criança do Hospital de S. Gonçalo de Amarante ou o Centro de Saúde de Felgueiras. «Se eu quisesse desistir, já o teria feito há muito tempo. Costumo dizer que a MGF é como trabalhar num campo de refugiados: a decisão principal toma-se à porta do campo e não quando se está lá dentro», para quem a covid-19 não só criou novos problemas como exacerbou aqueles que já existiam e estavam encobertos. «A pandemia aumentou tudo o que de mau já se fazia. A ideia é que o médico é um funcionário do Estado que tem de estar disponível para qualquer tarefa. Não é intencional, é uma ignorância que tem consequências perigosas em quem tem de ver doentes. Estamos muito longe daquilo que era o nosso trabalho habitual», lastima o profissional formado pelas Universidades do Porto e de Lisboa que assegura que os médicos estão «nos centros de vacinação, nas Áreas Dedicadas aos Doentes Respiratórios, no atendimento complementar e, no tempo que sobra, preenchem declarações, grelhas e outras burocracias». Por este motivo, «se a ciência da Medicina é a decisão, não fazemos Medicina porque não temos condições para decidir». Assim, o facto de mais de um terço das vagas para médicos de família terem ficado por ocupar, como o Nascer do SOL noticiou na semana passada, não surpreende o médico. «As pessoas começam a perceber que se forem para um centro de saúde, ficam sem vida. A maior frustração é pensar que entram num centro de saúde e toda a formação médica que têm não só é inútil como um obstáculo. A pior coisa que me disseram foi ‘Deves pensar que és médico’. Estamos dispersos e emocionalmente exaustos».

Maria João Tiago, de 51 anos, assistente graduada na USF São João da Talha, em Loures, começa por recordar que desde 2016 não existiam tantos portugueses sem médico de família, sendo que este número tem vindo a aumentar com as aposentações dos clínicos e com os jovens médicos que ao fim de pouco tempo optam por sair do SNS. No final de junho, existiam 1,057 milhões de portugueses sem médico de família, mais 19,5% que em junho de 2020 (+206 mil) ou mais 32,5% (+259 mil) que em junho de 2019, no período pré-pandemia.

«Voltaria a escolher Medicina com todo o gosto. Tenho é pena que quem nos tutela não tenha a mesma vocação e não dê prioridade ao bem do doente. Em termos de ordenado, um médico assistente de MGF leva para casa cerca de 1700 euros. E se falarmos de Lisboa, uma cidade com rendas de casa altíssimas, é compreensível que as vagas fiquem por preencher. São seis anos de curso, dois de internato e mais quatro de especialidade. São pessoas com 12 anos de formação que ganham este montante», critica a profissional com 26 anos de carreira. «Há um défice de médicos de família porque as condições não são atrativas. Lisboa tem uma grande oferta em termos do setor privado. Chegam-me ofertas muito mais sedutoras do que o SNS. Tenho duas filhas de 22 e 18 anos e equilibrar tudo sempre foi difícil porque trabalhamos muitas horas e sacrificamos a vida pessoal em prol da profissional», assume a médica formada pela Universidade Nova de Lisboa. «Temos de contratar mais médicos e, acima de tudo, não os deixar sair do SNS. Eles saem e nem uma palavra lhes dão. Em centros de saúde com grande carência nem sequer os chamam e pedem para ficar. Só queremos estabilidade», elucida que já passou pelo Hospital Curry Cabral, pela Maternidade Alfredo da Costa e pelo Hospital de São José. «E não falo só das condições monetárias. Por exemplo, há médicos que estão num centro de saúde num dia e noutro no dia seguinte. Um especialista em início de carreira tem as suas perspetivas goradas. Acredito no SNS e que quem não tem dinheiro tem direito a ter bons profissionais que os orientem e zelem pela sua saúde. Não queria ter de sair».


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