Nomear a realidade significa subtrair-se à confusão. Desde a primeira palavra pronunciada pelo ser humano na história da linguagem, o acto de atribuir ao mundo significantes -formas expressiva de o dizer- serve para tirar do 'caos' o seu conteúdo real.
Anterior às palavras que nomeiam o real está o pensamento onde a realidade adquire forma e consistência. As palavras impedem que nos afundemos na desordem dos nosso sentimentos pessoais. Cada pessoa percebe a realidade de um modo único e quando elege a palavra para expressá-la tira-a e tira-se, do magma do anonimato. Atribuir 'etiquetas' linguísticas ao caos é o primeiro remédio para pôr ordem dentro de nós mesmos.
As palavras são o nosso index do universo, um mapa para não nos perdermos nele.
Foi Hesíodo quem, na sua Teogonia (vv116-125) se encarregou de contar a génese do mundo a partir do caos:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois tambémTerra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todosele doma no peito o espírito e a prudente vontade.Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
O Timeu de Platão não tem a menor dúvida: esse 'caos' descrito por Hesíodo não é senão a matéria informe e vasta a partir da qual se chegou ao pensamento. Ou, usando as palavras de Miguel Ângelo, dar forma a partir do todo [o bloco de mármore] e procedendo, não por meio de adição, mas de subtracção: mediante a 'arte de remover'. É exactamente o que é preciso fazer quando os nosso pensamentos estão etimologicamente «confusos», do latim confundere, isto é, «fundir conjuntamente», «misturar», vocábulo que nasce da união do prefixo «con» e do verbo fundere, verter - deitar num caldeirão uma variedade de ingredientes totalmente ao acaso, deixá-los cozer durante horas e ver o que daí resulta, como improvisados alquimistas da existência.
No comments:
Post a Comment