June 24, 2021

Duas palavras - 1ª caos

 


Nomear a realidade significa subtrair-se à confusão. Desde a primeira palavra pronunciada pelo ser humano na história da linguagem, o acto de atribuir ao mundo significantes -formas expressiva de o dizer- serve para tirar do 'caos' o seu conteúdo real. 

Anterior às palavras que nomeiam o real está o pensamento onde a realidade adquire forma e consistência. As palavras impedem que nos afundemos na desordem dos nosso sentimentos pessoais. Cada pessoa percebe a realidade de um modo único e quando elege a palavra para expressá-la tira-a e tira-se, do magma do anonimato. Atribuir 'etiquetas' linguísticas ao caos é o primeiro remédio para pôr ordem dentro de nós mesmos.

As palavras são o nosso index do universo, um mapa para não nos perdermos nele. 

Foi Hesíodo quem, na sua Teogonia (vv116-125) se encarregou de contar a génese do mundo a partir do caos:

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também 
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, 
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, 
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, 
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, 
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos 
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. 
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram. 
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram, 
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.

          (tradução de Jaa Torrano)


«ἦ τοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ᾽» No princípio havia o «caos».

No entanto, só no século XIV a palavra grega Χάος (caos) adquiriu o sentido de 'desordem primordial' que depois se transferiu para a Física e a Matemática. Em Hesíodo, o caos que 'vem a ser' não equivale ao 'ser' bíblico. O caos Grego não indica que há algo antes dele nem tampouco que seja um vazio, uma ausência de matéria. Pelo contrário, o caos Grego é «uma espécie de remoinho obscuro que traga todas as coisas num abismo sem fim, comparável a uma boca negra aberta de par em par»

Segundo Hesíodo, «no início não havia a palavra -que veio depois-, mas a responsabilidade de pôr ordem na gama de infinitas possibilidades que oferecia a existência. Só depois opta por gerar, sobretudo por meio de palavras (que têm poder criativo), a terra, os abismos, a luz e as sombras, sem esquecer 'eros', o mais formoso de todos, que afrouxa os membros e cativa de todos os deuses e todos os homens o coração e a vontade sensata nos seus peitos.» (Guidorizzi)

O Timeu de Platão não tem a menor dúvida: esse 'caos' descrito por Hesíodo não é senão a matéria informe e vasta a partir da qual se chegou ao pensamento. Ou, usando as palavras de Miguel Ângelo, dar forma a partir do todo [o bloco de mármore] e procedendo, não por meio de adição, mas de subtracção: mediante a 'arte de remover'. É exactamente o que é preciso fazer quando os nosso pensamentos estão etimologicamente «confusos», do latim confundere, isto é, «fundir conjuntamente», «misturar», vocábulo que nasce da união do prefixo «con» e do verbo fundere, verter - deitar num caldeirão uma variedade de ingredientes totalmente ao acaso, deixá-los cozer durante horas e ver o que daí resulta, como improvisados alquimistas da existência.

Daí vem o termo confusão, como no italiano confondere, no francês confondre, no inglês to confuse.

Está em estado de confusão quem não está em condições de entender o que lhe dizem, como quando fundimos a cabeça com pensamentos que nos assediam e deixam perdidos. Temos a opção etimológica de criar palavras, sabendo que a escolha das palavras é ao mesmo tempo a escolha das nossas acções no mundo e sobre os outros - e se criarmos palavras que nos sobrevivam, um registo, talvez possamos não ficar para sempre perdidos na «confusão» do universo e possamos brilhar de vez em quando, como uma estrelinha* intermitente.

*estrelinha = asterisco

do livro, Etimologías Para Sobreviver Al Caos de Andrea Marcolongo, ed. taurus (com adaptações)

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