March 19, 2021

Totally missing the point





Este artigo é sobre a morte de James Levine um maestro americano que durante muito tempo esteve no topo desta carreira a nível mundial e ditou gostos e cânones no mundo da música clássica, tendo sido afastado depois de revelações chocantes de abuso sexual, intimidação e outros crimes sexuais a muitos rapazes. 
O autor deste artigo conclui dizendo que se argumenta que a arte deve ser independente da conduta, mas não percebe que esse argumento só se aplica aos casos em que a pessoa já está separada da sua obra e não pode, de maneira nenhuma, lucrar com ela, seja em dinheiro, fama, prestígio ou o que for. 

Vejamos, tenho cá em casa muitos discos de óperas e concertos dirigidos por ele e não vou deitá-los fora nem deixar de ouvir a música. Aliás, fui ver uma ópera ao MET, há uns bons anos e ele era o maestro. No entanto, se fosse hoje, não iria. Sabendo que ele forçava os rapazes das orquestras a humilhações sexuais, não iria pois isso havia de parecer-me uma cumplicidade. Aliás, desde que soube deste assunto, não voltei a comprar discos dele. Com ele vivo, não o faria. Talvez agora possa comprar. Ele está morto e as obras estão separadas dele. São agora uma coisa independente e ele não lucra com elas, nem em dinheiro, nem em fama ou privilégios. Reconheço que ele era um músico de excepção, mas como ser humano esteve muito baixo. Portanto, aprecio a música que ele dirigiu, mas não o homem.

Também não deixo de ver os filmes de Hitchcock pelo facto do homem ter sido uma espécie de Harvey Weinstein. Agora, se ele estivesse vivo, não iria ver filmes dele, nem comprar nada que lhe acrescentasse lucros ou fama. Hoje de manhã fui dar com um artigo a falar da influência que a maneira de ser de Hitchcock, o homem, teve nos seus filmes. Nem uma palavra acerca do bullying agressivo que ele fazia às actrizes que queria usar sexualmente, se se lhes negavam, como a Tippi Hedren. Isso acho mal. 

No ano passado, muito vergonhosamente, o César de melhor realizador foi a atribuído a Roman Polanski, um homem que fugiu dos EUA e tem uma mandato de captura por ter violado uma rapariga de 13 anos, em 1977, quando tinha 43 anos. Na altura do anúncio do prémio uma série de pessoas abandonou a sala em protesto e foram acusadas de feminismo... eu também abandonaria. Recusava fazer parte de um grupo de felicitação e honra a um violador pedófilo. Ainda não vi esse filme dele, J’Accuse, nem tenho intenção de o ver enquanto ele for vivo. Assim como nunca mais vi nenhum filme dele deste que soube disto. Não contribuo com um átomo para o lucro, fama, privilégio ou prestígio de um violador pedófilo.

Portanto, uma pessoa aprecia qualquer obra, seja da arte ou da ciência, independentemente da conduta moral do autor, excepto se essa apreciação contribui para alimentar a fama, o lucro, o prestígio, privilégios, etc. do próprio autor, o que acontece enquanto ele vive. E depois de ele morrer, apreciamos a obra mas não mascaramos ou escondemos o lado criminoso ou imoral do autor. 

E por isso mesmo, por não mascararem o lado criminoso e imoral de James Levine, o obituário dele, nos jornais, refere o prodígio musical que foi e os escândalos de abuso e imoralidade sexual que lhe acabaram com a carreira e a glória. Ele foi uma coisa e foi outra.

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"É difícil imaginar outro maestro americano alcançar tamanhas alturas de que cair", escreveu Michael Andor Brodeur, no The Washington Post, com razão. Levine processaria o Met por difamação e quebra de contrato, acabando por ser indemnizado em mais de três milhões de dólares. As acusações, que sempre negou, são oriundas de múltiplos testemunhos e envolvem relatos de "intimidação", "culto de seita" e "sexo em grupo" (Boston Globe, 2018) com jovens rapazes.

Se várias vezes se argumenta que a arte deve ser independente da conduta (ou não haveria arte), as responsabilidades de liderança de um maestro e as consequências das suas ações para uma geração de músicos não podem ser menosprezadas. Levine não estava fora de tempo, estava fora do normal.

Morreria em Palm Springs, na Califórnia, com 77 anos, sozinho. A música não será enterrada com os seus ossos.

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