February 03, 2021

Deambulações a propósito de uma aguarela de Dürer

 


Um bom artista, tem um olhar próprio e uma linguagem própria que é o estilo, uma mistura de técnica e gosto particulares. E tal como acontece com as pessoas, nem todos os artistas são fáceis à primeira vista. Alguns têm uma visão muito diferente da nossa. Tiveram outra experiência de vida e são, interiormente, pessoas diferentes, quer dizer, são movidas por questões e interesses diferentes dos nossos que lhes moldaram a visão de um certo modo. E outros ainda, se bem que até semelhantes, têm uma linguagem que nos é estranha, à primeira vista (os abstractos, por exemplo) antes de nos familiarizarmos com ela. Alguns são como as pessoas difíceis a quem precisamos de nos habituar. Requerem esforço e paciência. No entanto, se o artista é bom, é um esforço recompensado, pois tal como acontece na literatura e na filosofia, quando entramos na sua visão, é um mundo novo de possibilidades que se abre e é por isso que a arte é enriquecedora. 

Dürer tem um olhar que é dele e uma linguagem muito própria. Reconhecemos os trabalhos dele e os dos que imitam a linguagem dele. Esta aguarela faz parte de um grupo de cinco estudos que Dürer fez de pedreiras depois de voltar da viagem a Itália em 1495. A ideia dele era treinar um certo tipo de atmosfera que se depreende destas formações rochosas que incluem vegetação e poder usá-la noutras obras. Escarpas rochosas eram um motivo tradicional da arte da Europa do Norte no século XV (fonte).

Na realidade reconhecemos nesta aguarela o Sul da Europa. Escarpas em tom barrento rosado com vegetação e uma atmosfera muito mediterrânica, langorosa e não agreste como a das escarpas dos países muito a Norte e ele conseguiu criar uma atmosfera onde entramos imediatamente. Uma atmosfera não é um cenário intelectual mas uma paisagem emocional: uma invasão de emoções, de memórias de sítios, luz e ambientes, de experiências. Quando entramos dentro do olhar de um bom artista, ele devolve-nos esse olhar nosso olhar com o dele e revela-nos coisas que nem sabíamos existirem em nós e no mundo. Outras que sabíamos vagamente mas sem definição, sem controlo objectivo e outras que pensávamos perdidas da memória. A arte tem até um efeito terapêutico parecido com o da psicanálise porque é capaz de de nos pôr a olhar o passado longínquo e a reinterpretá-lo, dar-lhe um sentido diferente que o 'limpa', por assim dizer, dos seus efeitos negativos.

A semana passada fui dar com um artigo de um professor de uma universidade americana cujo título era, 'como o, escrever bem, nos torna melhores pessoas'. Fiquei com curiosidade de perceber o que queria ele dizer com isso de escrever bem ter um efeito moral positivo e fui ler. Qual não é o meu espanto quando todo o artigo dele defende que devemos escrever [ele refere-se a filósofos e outros especialistas em geral] com palavras simples que a mais simples das pessoas possa compreender por uma questão de respeito, pois se as pessoas não compreender as palavras para quê escrever? Isto é que dizem os meus alunos do 10º ano no primeiro período porque vêm formatados com a ideia de que a educação e a aprendizagem não têm nenhum valor a não ser que dêem imediato prazer e que todo o esforço, sendo anti-prazer, é errado.

Esta é também a opinião do nosso ministro da educação e do seu SE que nivelam tudo por baixo e não compreendem que a aprendizagem requer um esforço de quem quer aprender e evoluir, ganhar outras visões, aceder a outros patamares de realidade cujo prazer e riqueza só depois de esforço e incómodo se alcançam, a não ser que o alvo da educação seja a mediocridade e o seu reforço. 

A qualidade não é independente da quantidade. Um artista, como um filósofo, como um cientista, um engenheiro, um professor, um médico, um marceneiro ou outra pessoa qualquer, só depois de muito trabalho, muito treino, muita prática, desenvolve uma sabedoria técnica e é sobre essa sabedoria das mãos, ou da linguagem, por assim dizer, que o talento se desenvolve. Uma mudança qualitativa requer uma quantidade significativa, que pode não ser igual para todos, mas que é necessária. 

Isso também é válido nos processos naturais: desde a mutação das espécies, a alteração das estruturas da matéria, até à imunidade de grupo, por exemplo. Só depois de uma quantidade significante se dá uma alteração qualitativa. 

Ninguém tem um desempenho complexo, uma visão complexa e rica sobre questões complexas se apenas aprender o simples.

Voltando à arte, um bom artista tem uma linguagem própria e nem sempre é simples e imediata, mas somos nós que ganhamos com a riqueza da sua visão e não ele com a nossa pobreza. Também ele próprio vai à procura do que o enriquece se quer expandir o seu talento. Dürer foi a Itália aprender com os mestres e por isso o trabalho dele tem uma marca d'água que os outros no seu país, na época, não conseguiram ter.



Albrecht Dürer, Quarry, 1506



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