A propósito de uma frase que li mesmo agora e gostei muito

 

... acerca de haver lugares que temos no sangue e que nos pertencem e ninguém sabe. Tenho vários, como toda a gente. Alguns vêm com cheiros e atmosferas emocionais associados. Os de infância e de adolescência são os mais pregnantes. Marcam fundo e deixam nostalgias doces. Mas nem todos são de infância. Hoje-em-dia tenho um lugar no sangue, que me pertence e ninguém sabe, num hospital.

Uma pessoa como eu faz muitos exames para avaliar a progressão da doença. Toda a gente que faz exames para avaliar a progressão de uma doença oncológica, mesmo que já esteja mais ou menos fora de perigo por já ter passado muito tempo sem ter nada vai em ansiedade saber o resultado das TACs ou das PETs. Porque esta é uma doença sem cura e com um bicho intempestivo, caprichoso e bera. Cada um tem as suas estratégias internas de lidar com isso na hora de saber. 

Durante muito tempo não lia os relatórios médicos porque não percebia o jargão médico e ainda era pior, ficava assustada. Hoje-em-dia, infelizmente, porque é sinal que já fiz muitos, leio aquilo tudo e percebo muito bem, de modo que tenho uma rotina de ir saber essas coisas. 

Adoptando o lema: esperamos sempre o melhor mas pelo sim pelo não preparamo-nos, emocionalmente, para o pior, faço questão de ir mais cedo para ter tempo de levantar o exame e lê-lo antes da consulta com a médica. Não quero ser apanhada de chofre na consulta com más notícias e não conseguir processá-las e ser a confusão. Embora não seja esse o meu estilo, sou de engolir impávida e depois mais tarde logo processo sozinha. Mas, nunca se sabe. Então, agora, chego lá, levanto o resultado dos exames e vou para um sítio que nunca tem ninguém: é o meu sítio de ler relatórios. Abro, leio, processo e depois vou à vida. Nunca passo por lá ou sequer me aproximo a não ser para ler relatórios sozinha, porque é um sítio de emoções fortes, que tenho no sangue e ninguém sabe. Bem, agora sabem que tenho esse sítio, mas não sabem o sítio. 

Nem todos os sítios que temos no sangue são doces. Alguns são perturbadores.