November 22, 2020

"E foram felizes comendo perdizes" 😁

 


Na Idade Média, a Igreja estabelecia rigidamente que alimentos eram mais pecaminosos e quais eram típicos dos ricos e dos pobres.

Banquete de reis numa gravura inglesa do século XIV - de Agostini via Getty Images

Na sociedade medieval hierárquica, havia alimentos como as perdizes que eram vistos com suspeita por eclesiásticos e moralistas. 
Muito apreciada nas classes altas, em Valência, na primeira metade do século XIV, a caça à perdiz custava cerca de um sexto do salário de um mestre artesão. Ou seja, sendo relativamente acessíveis não deixavam de ser um luxo, pois pelos 200 gramas que uma perdiz pesava (aproximadamente) pagava-se o mesmo que por um quilo de carne ou 700 gramas de carneiro. 
Mas as perdizes, explica o historiador Juan Vicente Marsilla, continham um lado perverso no imaginário medieval, “porque já nos bestiários eram consideradas animais lascivos, sempre prontos para a relação sexual mesmo entre os do mesmo sexo; daí que na pintura, sobretudo nos mestres flamengos e seus imitadores começaram a ser representadas como o diabo ou o pecado ”.

Como resultado, “São Bernandino de Siena aconselhou as viúvas a terem cuidado com o seu consumo e disse-lhes que não podiam mais 'fazer o que faziam quando tinham marido e comiam aves'”. Além disso, a frase "foram felizes e comeram perdizes", com a qual tantas histórias terminam, poderia ter, diz este historiador da Universidade de Valência, um duplo sentido "entre o luxo imponente e a luxúria do casal protagonista". 
Sirva este exemplo para mostrar a importância que a religião teve na forma de alimentação durante a Idade Média. Partindo das idéias de Galeno, a filosofia natural da Idade Média estabeleceu o que foi chamado de "a grande cadeia do ser"[que começava no Ser divino absoluto e ia descendo gradativamente até ao ser mais inferior]

Luxúria e comida, una de las preocupações religiosas na Edad Media Universal -Images Group via Getty

De acordo com essa teoria, Deus criou o mundo natural e as classes sociais de maneira semelhante. Por isso, os alimentos mais adequados para cada classe social foram ordenados de cima para baixo. Quanto mais perto do céu mais valiosos.
Dentro desta escala, a terra era considerada o mais grosseiro dos quatro elementos (fogo, ar, água e terra), estando na base, então as plantas eram consideradas adequadas para pessoas sem possibilidades. Mas nem todas as plantas eram iguais. Os piores eram os bolbos subterrâneos, como cebola e alho. Melhor consideração teveram as plantas das quais as folhas se comiam, como a alface ou espinafre. Por fim, as frutas mais distantes do solo foram as mais valorizadas. O segundo segmento desta cadeia, associado à água, era o peixe, que também se organizava de acordo com a sua proximidade ao fundo do mar. Por isso, crustáceos e moluscos eram pouco valorizados, enquanto peixes que tendiam a nadar na superfície, como as baleias, eram apreciados.

Depois veio o ar, com os pássaros também organizados de acordo com a altura de seu vôo e, portanto, com os patos e gansos abaixo, as galinhas e capões um pouco acima e os pássaros no topo. No topo, explica Marsilla, estavam as águias e os falcões "a ponto de não serem comida comum porque são considerados animais de companhia". Quanto aos animais de quatro patas, entre a terra e o ar, eles não se encaixavam totalmente neste esquema, mas, em qualquer caso, estavam acima dos vegetais e peixes, e apenas abaixo dos pássaros. Acima de todos esses alimentos, como parte do elemento fogo, perto do sol, estavam animais mitológicos como a fénix.

Na sociedade medieval, todos conheciam o valor de cada alimento e seu preço, sem dúvida, ajudava a lembrá-lo. No entanto, também havia alimentos problemáticos que infringiam as recomendações médicas e eclesiásticas, mas eram altamente estimados e tentadores. O exemplo do livro foi a lampreia e outras espécies semelhantes, como o congro e a enguia. Numa atitude desafiadora para com os médicos e moralistas, que os olhavam com desconfiança pela sua suposta natureza fria e por viverem no fundo do mar a muitos metros de profundidade, não havia livro de receitas europeu que não contivesse um prato deste peixe marinho de corpo liso e pegajoso que deliciava comensais desde a Roma antiga.


Nobres franceses num banquete do século XV - Getty

No entanto, a quantidade de alimentos era altamente variável, dependendo da classe social. Ao mesmo tempo, explica Antoni Riera Melis em, Estrutura social e sistemas alimentares na Catalunha medieval tardia, a religião cristã impôs aos crentes uma disciplina alimentar rigorosa durante uma série de dias escolhidos, durante os quais os fiéis eram recomendados a limitar a dieta ou abster-se de comer carne. 

“Eram dias penitenciais todas as sextas-feiras e quase todos os sábados do ano, a Quaresma, as quatro temporas (ou seja, o início das quatro estações), o Advento e as vigílias das festas solenes”, nota este historiador maiorquino. Por isso, “comer na sexta-feira” tornou-se tão comum que surgiu uma cozinha específica para esse dia.

Em retrospectiva, muitas das regulamentações dietéticas desse período visavam alertar acerca do pecado da gula (que tornava tão difícil cumprir os jejuns), de modo que nos sermões qualquer alimento supérfluo era condenado, uma vez que as necessidades fossem satisfeitas. 
No entanto, embora os eclesiásticos proclamem frugalidade e continência, nem sempre dão o exemplo de auto-controlo. Vastas secções do clero medieval tardio não eram exactamente caracterizadas pela sobriedade, embora não seja menos verdade que a dieta normal de muitos párocos rurais não era diferente da de seus paroquianos. A saber: algumas fatias de pão preto de cevada, alho, cebola e, eventualmente, um pequeno pedaço de bacon ou ensopado de legumes.

Confecção de carne de porco - miniatura do séc. XIV Universal -Images Group via Getty


Em uma sociedade hierárquica, o consumo de alimentos tornou-se, juntamente com as roupas e os penteados, um dos principais sinais de posição social. Porém, se algo caracterizou a Idade Média foram os jejuns e abstinências promovidos pela Igreja. Os antropólogos Jesús Contreras e Mabel Gracia lembram em Food and Culture (Ariel) que as origens da sagrada anorexia estão na Idade Média, quando um número crescente de religiosas se entregava a práticas ascéticas de todos os tipos, incluindo o jejum. Curiosamente, explicam, em tempos de adversidade e fome, o número de jejuns ditados pela Igreja aumentava para acalmar a fome pela fé ... Talvez por isso, houve anos em que se contaram até 150 dias de abstinência.

No entanto, os pontífices tinham o poder de conceder várias graças e privilégios sobre o jejum, geralmente em termos de serviços prestados à Igreja. 
No início, os buleros encarregavam-se de persuadir os crentes a adoptar as bulas. Costumavam invadir as aldeias entre o final do ano e o início do seguinte, obrigando os vizinhos a dar-lhes alojamento. Mas os excessos na pregação da bula tornaram-se tão notáveis ​​que, com o passar do tempo, os religiosos foram encarregados exclusivamente desta obra. 
Os fiéis tinham a obrigação de seguir essas bulas, das quais só se livrariam pagando uma quantia que dependia do nível económico de cada pessoa. Fisicamente, as bulas (do latim bulla, ou "bolha", pois, antes da aplicação do selo de chumbo, eram uma bola que depois se esmagava com a cunhagem) eram documentos expedidos pela chancelaria pontifícia e que podiam envolver dispensas, indulgências ou mesmo o perdão dos pecados.

San Alberto, acusado de saltar um jejum, converte água en vinho diante do papa e vários cardeais- Universal Images Group via Getty


Essas regulações dietéticas foram complementadas com diversas dicas que facilitaram a digestão, como mastigar devagar e, depois de comer, conforme aconselhado pelo médico medieval Arnau de Vilanova, relaxar ouvindo música ou histórias edificantes de santos. 
 Durante a Idade Média surgiram, o refogar (embora sem tomate, que viria depois da América), o molho romesco, os primeiros garfos de duas pontas, a junta de bois, os novos calendários baseados na semana, o moinho de água, o arado a a grade para trabalhar a terra horizontalmente e a rotação de culturas de três anos, que resultou na obtenção de duas safras por ano e uma maior produção de cereais. Porém, se algo avançou nesse período no nível nutricional, é a ideia de que qualidade é melhor que quantidade.


(tradução minha)

No comments:

Post a Comment