June 13, 2020

Violência contra estátuas 'versus' violência contra pessoas



Este homem fala do assunto como se fosse uma questão estética, sabendo nós todos que não o é. Põem-se estátuas de pessoas nas ruas e praças públicas para homenageá-las no pressuposto que prestaram serviços à Pátria, que a honram. É um reconhecimento público como a medalha da Ordem do Infante ou algo do género. É por isso que não há estátuas de Hitler no espaço público, apesar de ele ter mandado fazer muitas e de bom gosto estético. Se uma pessoa praticou actos odiosos, criminosos, qual é a razão de o homenagearmos publicamente? Nenhuma. Dizer que as estátuas de pessoas que cometeram crimes odiosos devem ficar por terem valor estético é fingir que não se percebe o problema.

Este indivíduo, George Floyd, cuja morte filmada foi a gota de água, é constantemente citado por ter um passado de pequena delinquência, mas aquele rapaz branco que violou uma colega, há um ano e maio, aproveitando-se de ela estar embriagada e a deixou caída, inconsciente e meio nua atrás de um caixote do lixo, na universidade de Yale, se não me engano, levou 3 anos de pena suspensa porque o juiz considerou que era de boas famílias e tinha um futuro promissor. É um violador promissor, sim. Isto é o pão nosso de cada dia.

Que as pessoas revoltadas contra o racismo tenham deslocado a sua agressividade para as estátuas e não para outras pessoas parece-me um mal muito menor e é significativo que ao fim de menos de 15 dias de protestos onde se sujaram e estragaram meia dúzia de estátuas a sociedade já esteja pelos cabelos e faça como este senhor que chama acéfalos aos que protestam e os compara, a eles e não aos que matam, efectivamente, pessoas e não estátuas, ao Daesh. 

O cardeal Fernando Niño de Guevara, pintado por El Greco não está na praça pública, está dentro de um museu e se não há nenhuma placa a explicar quem ele foi e o contexto da obra, devia haver.

A questão é complexa. Há homens que não podiam estar em cima de estátuas, publicamente: foram criminosos, praticaram actos criminosos, traficaram escravos, foram cruéis esclavagistas. Já Descartes dizia que um dos problemas da humanidade está em que se educa os mais novos na veneração dos violentos da história e não nos bons exemplos. 

Depois há outros, como o Padre António Vieira que defendeu os índios mas também defendia a escravatura por questões económicas, embora nunca tenha tido escravos e não parece correcto condená-lo por crime de pensamentos.

No entanto, compreendo a revolta. Há um tipo que há um par de anos escreveu no Expresso que a sociedade, diga-se os homens, devia vedar o empregos às mulheres até elas produzirem, pelo menos, 2 filhos, como se faz noutro país qualquer, mas é claro que isso não se podia fazer, dizia ele, porque as feministas haviam de fazer um escândalo. Isto é defender a escravatura das mulheres. Imagine-se que ele dizia que a sociedade devia vedar o emprego a negros até eles produzirem não sei o quê. Que diriam? Que ele defende a escravatura. Pois, é a mesma coisa. Ele continua a escrever alegremente grandes barbaridades no mesmo jornal. Não defendo que lhe façam mal, pois seria condenar alguém por crimes de pensamento, mas que é revoltante e triste que o jornal dê emprego a um tipo que sonha com a degradação das mulheres a escravas procriadores dele e seus capangas, ah isso é.

Também Churchill defendia que os negros e outros são raças inferiores, mas isso é o que ele pensava e não o que fazia. E, na verdade, ele foi alguém que prestou grandes serviços à Pátria dele e não só.
Hoje li umas respostas de Spike Lee a actores e realizadores acerca deste assunto e a certa altura perguntaram-lhe onde viveria se não vivesse na América: em Brooklin, disse, porque não imagina viver noutro sítio senão naquele país que inventou a democracia e que é melhor que os outros e é excepcional, etc. Portanto, um indivíduo que se queixa, com razão, dos que assumem e agem no pressuposto de que a raça dele é inferior, é ele mesmo veículo de ideias de haver povos superiores e povos inferiores.

(um aparte - ontem ouvi umas duas ou três horas de entrevistas do congresso americano a umas pessoas por causa do impeachment e vários vezes falaram do excepcionalismo americano. Eles estão mesmo convencidos que são um povo superior...)

Por conseguinte, as coisas são demasiado complexas para reduzir as pessoas a acéfalos ou bárbaros. Do lado dos que mandam e têm mais contas a prestar, há muita cegueira e recusa de ver o óbvio. O príncipe belga defendeu o Rei Leopoldo II, um ladrão e criminoso que fez coisas inomináveis, dizendo que ele nunca foi ao Congo e por isso não é responsável por nada do que lá se fez em seu nome. Isto é revoltante e a revolta de vez em quando transborda.
As pessoas não gostam de ver o transbordo e queixam-se mas nunca se queixam do transbordo dos outros, os que praticam a violência contra essa pessoas, dia após dia, ano após, ano, década, após década, século após século.

A sociedade funciona com o racismo, o etnocentrismo e o machismo em default. A máquina está programada para descriminar e tratar como cidadãos de segunda classe, os negros e outras etnias e as mulheres. Há excepções, sim, mas são isso mesmo, excepções.
Se se quer mudar este estado de coisas não se pode deixá-las correr por si, porque elas não se corrigem sozinhas, visto que os que estão no poder e têm vantagens não querem abdicar delas.
A quantidade brutal de homens incompetentes e intelectualmente menores que ocupam cargos só se percebe quando percebemos que o default da máquina social são eles. De modo que é preciso ir mexer nas configurações da máquina e assinalar todas as caixas e não apenas uma, como agora acontece.
E quem não vê isto e só vê um lado da questão, é cego e agrava os problemas.

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... a vandalização de monumentos que em algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto preestabelecido.
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O tema é antigo e sempre perigosamente recorrente, mostrando à saciedade quão acéfalo é o pendor dos homens para a violência gratuita e quão frágeis para lhe resistir são as obras de arte e os monumentos da História
...Com máximo propósito, estas palavras ganham sentido face aos actos de violência contra obras de arte – os monumentos públicos, as estátuas e os memoriais – que, nos últimos dias, se têm multiplicado em várias cidades do nosso planeta, e também em Portugal, na onda dos sentidos protestos contra a repressão xenófoba nos EUA.
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O iconoclasma é sempre um acto inadmissível, e não se resume naturalmente aos atentados do Daesh, ou dos talibans, contra museus, monumentos e demais patrimónios da humanidade, pois se alarga às atrocidades dos senhores do mundo nas guerras de cobiça contra populações inteiras para pilhagem e controle dos seus recursos.
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Pergunto: não aprendemos nós todos com a História? Parece que não sabemos, mas devíamos saber, que todas as obras de arte (independentemente da sua maior ou menor qualidade estética) são sempre trans-contextuais e, mais!, estão isentas de culpa pelos desmandos da cegueira humana. Vamos retirar de exposição pública no Metropolitan Museum de Nova Iorque o excepcional retrato do Cardeal Fernando Niño de Guevara, pintado por El Greco (c. 1600), porque o retratado é uma figura infame, responsável por inúmeras fogueiras inquisitoriais, coisa que aliás o próprio pintor bem sabia, deixando na tela a impressão da sua antipatia pelo modelo? 
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Vitor Serrão


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