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Hoje em dia há quem defenda que o Império Romano chegou ao fim com e por causa da grande epidemia de peste da era justiniana, na medida em que enfraqueceu o Império e tornou-o presa fácil dos vândalos, godos e outros. Essa epidemia que se espalhou rapidamente em Constantinopla, centro de negócios e da vida política e económica que atraía viajantes e mercadores de todo o lado, terá matado, calcula-se, entre 20 a 50 milhões de pessoas (25% da população - Procópio fala em 10.000 mortos por dia) e continuou com surtos periódicos durante cerca 300 anos, até desaparecer completamente.
Se imaginarmos as condições de vida de então e as nossas -higiene, medidas sanitárias, medicina, hospitais, tecnologia, acesso à saúde, apoios sociais-, nomeadamente na Europa e repararmos no número de mortes diárias que esta pandemia está a causar, percebemos a gravidade e o alcance da situação em que estamos.
No entanto, não estamos com a civilização de pernas para o ar como estava o Império Romano, simbolizado nesta coluna, não somos uma sociedade agónica, apesar de parecer o contrário, quer dizer, quem vê o desnorte e impreparação dos líderes europeus pode pensar que era melhor que tivéssemos mais centralismo e autoritarismo, mas isso é um erro, como aliás a comparação entre a Europa, China e os EUA nos prova diariamente.
Na realidade, parece-me que há razões para optimismo na Europa e há agora uma porta aberta para a mudança.
A Europa, num certo sentido, é vítima do seu próprio sucesso. Quando, no final da última guerra mundial, os povos decidiram voltar costas à guerra e construir a paz, edificaram uma sociedade baseada na educação, no desenvolvimento da cooperação, da diplomacia, da arte, dos direitos humanos, do respeito pais diferenças. Naturalmente, esse desidério trouxe consequências.
Como me diz, frequentemente, a minha médica oncologista, quando começo a argumentar com os efeitos secundários dos medicamentos para não os tomar, 'todo o medicamento tem efeitos secundários e o corpo é dinâmico'.
Ora, o corpo social também é dinâmico e os alimentos e remédios que lhe damos também têm efeitos secundários. Neste caso, a educação europeia teve os efeitos desejados: a maioria dos europeus são pessoas pacíficas, que defendem a liberdade, a tolerância, a justiça social, a paz, os direitos humanos, os direitos dos animais, etc.
É claro que décadas de uma educação nesse sentido e duma vivência livre de guerras e conflitos armados internos (coma excepção da Bósnia mas sendo preciso ver que essa era uma sociedade ainda muito sovietizada), produziu uma sociedade amena, uma bocadinho infantilizada nos modos, que vista de fora, de sociedades muito bélicas e tribais, parece fraca.
Mas do nosso ponto de vista, os outros, como os afegãos e muitos dos árabes, por exemplo, é que são brutos e brutais nos seus hábitos e modos sociais, consequências de vidas ao nível da subsistência básica, da falta de direitos, da falta de educação universal, da falta de viagens, de mundivivência, de uma educação virada para a violência e da manutenção de uma vida rural muito isolada, factor de embrutecimento afectivo e empático. Por ventura queremos voltar a isso? Penso que não.
Aliás, estas corridas aos supermercados mostram a falta de hábito que os ocidentais têm em viver com dificuldades em vidas duras. Sim, existem sem-abrigos mas mesmo esses não têm que roubar para comer e tomar um duche pois têm casas e abrigos pelas cidades onde podem recolher-se.
Portanto, a Europa não é fraca. Acontece que projectou um ideal de vida, de paz e prosperidade há 70 anos e conseguiu atingi-lo, de modo que tem vivido uma vida mais ou menos amena, quando comparada com outras partes do globo. E assusta-se em pensar perdê-la. Daí, também o medo dos emigrantes, nomeadamente os muçulmanos que têm hábitos sociais muito ao nível da nossa vivência pré-guerra.
Se ainda aceitamos a carta dos direitos humanos como ideal positivo humanitário, a Europa tem estado no bom caminho.
Evidentemente que esse caminho não anula focos de violência e extremismo porque a natureza humana individual não é igualmente permeável à educação social e porque somos permeáveis a influências externas que perduram, às vezes de modo invisível, ou encapsulado e de repente ativam-se e desenvolvem-se.
O autoritarimo chinês e russo ou o 'cowboyismo' americano não são alternativas ao nosso modo de vida: não impedem, nem um nem outro, doenças virais, epidemias, terramotos, cheias, etc. No entanto, impedem que nessas ocasiões de excepção catastrófica as sociedades mantenham os seus níveis de sanidade sem perder os direitos conseguidos de liberdade, humanismo, solidariedade.
Olhando para o EUA e para a China, nós estamos a meio. Quer dizer, a China tem uma sociedade muito autoritária, sem liberdade. Nesta crise pandémica, não hesitaram em prender e deixar morrer médicos que tentaram avisar e evitar o pior, só para esconder informação. Conseguiram conter o vírus rapidamente com o seu autoritarismo mas o efeito secundário desse medicamento é uma vida subjugada a práticas de brutalidade. Não me parece que queiramos ser uma sociedade assim.
Por outro lado, o que vemos nos EUA é uma sociedade que perante uma crise desta desiste de uma porção da sua população por não lhes dar acesso a cuidados de saúde universais e por permitir o total far-west nos empregos, onde cada empregador despede quantos quer da maneira que quer e deixa toda a gente desprotegida. Não admira que sejam uma sociedade mais muscular. Estão habituados a não poder contar com ninguém a não ser eles próprios e as famílias, com sorte. Também não me parece que queiramos ser uma sociedade assim.
Portanto, os europeus estão a meio caminho entre o laxismo mercantilista dos americanos e o autoritarismo dos chineses. Ou estávamos, pois nestas últimas décadas assistimos a uma americanização dos europeus e perdeu-se de vista as prioridades do ideal de vida social europeu.
O que vemos aqui na Europa é que passado o primeiro choque desta pandemia, por todo o lado empresas e pessoas individuais reconvertem as suas actividades para ajudar o pessoal que está nos hospitais a lutar pelos doentes, sejam destilarias (That's the spirit: Distilleries switch to making hand sanitiser to help with COVID-19 fight), empresas de têxteis, pessoas com impressoras 3D, etc.
Portanto, não falta espírito de iniciativa, não faltam pessoas com conhecimentos especializados, não faltam pessoas que querem ajudar, não faltam pessoas que pressionam os governos a agir, o que faltam são mudanças na forma de entender as prioridades nas políticas e apostar naquilo de positivo que construímos nestes últimos 70 anos.
Agora, se aproveitarmos esta crise para aprender algo de útil, temos uma oportunidade de fazer mudanças. A maioria dos europeus querem-nas.A
Europa não está, estruturalmente, de pernas para o ar. Está numa encruzilhada.
Oxalá tenhamos líderes que ouçam a crise e aproveitem par pôr as prioridades em ordem.
Europa não está, estruturalmente, de pernas para o ar. Está numa encruzilhada.
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