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November 09, 2023

Era excelente que se aproveitasse para fumigar o sistema eleitoral e livrá-lo de vírus infecciosos





Reforma eleitoral – porquê meia reforma, se a podemos ter inteira?


José Ribeiro e Castro

O sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas escolhas em que são forçados a votar.

Em 4 de Outubro passado, a Iniciativa Liberal (IL) veio reanimar o debate sobre o sistema eleitoral. É o Projeto de Lei n.º 940/XV/2: “Introduz um círculo de compensação nacional nas eleições legislativas”. É uma iniciativa importante, em matéria crucial para a qualidade da democracia, a que tenho dedicado muito trabalho e intervenção cívica nos últimos anos.

A IL faz bem em pôr o tema na mesa e empurrá-lo para a agenda. Mas lamento que se fique pela metade – a abertura da revisão constitucional de 1989 –, em fez de a lançar por inteiro – a abertura constitucional de 1997. Vendo bem, é bastante estrambólico o regime em que vamos vivendo – e afundando-nos. A Constituição permite, desde a revisão de 1989, a instituição de um círculo nacional, como foi introduzido na reforma do, então, artigo 152.º; e, passados 34 anos – sim, 34 anos! – ainda não o temos. Mas a Constituição permite também, desde a revisão de 1997, pela reforma do artigo 149.º, a introdução de círculos uninominais, complementares dos plurinominais e garantindo a representação proporcional; e, passados 26 anos – sim, 26 anos! – ainda não os temos. É difícil encontrar no mundo casos de tamanha preguiça legislativa. O legislador constituinte abre a porta a reformas importantes; e o legislador ordinário esquece-se de as levar à prática. Mais de ¼ de século sem sair da cepa torta! Um esquecimento obstinado…

O nosso sistema eleitoral tem dois problemas principais, que lhe afectam o funcionamento e a reputação. Um é a efectiva representação proporcional – o problema que mais interessa aos partidos. O outro é a efectiva representação política – o problema que realmente interessa aos cidadãos. Não surpreende, embora seja pena, que os partidos mostrem preocupar-se mais com o problema do seu interesse do que com o dos cidadãos, os eleitores. Seria melhor ao contrário: primeiro, a cidadania.

O problema para os partidos é a proporcionalidade da representação parlamentar ter vindo a deteriorar-se. E, como é natural, os partidos mais pequenos (incluindo os que se vão tornando mais pequenos) queixam-se: têm menos lugares do que deveriam, enquanto os partidos maiores concentram mais do que lhes caberia. É comum ouvir-se que a culpa é do método d’Hondt. Não é bem assim: o sr. Hondt terá culpa de muita coisa, mas não disso. A “culpa” é, por um lado, termos elevado número de círculos eleitorais pequenos, isto é, que atribuem poucos mandatos, o que faz subir muito a fasquia a partir da qual se elege alguém. E, por outro lado, o sistema partidário ter-se fragmentado, o que aumenta, círculo a círculo, o número de “votos perdidos”. O remédio mais óbvio é o círculo nacional de compensação. Toda a gente sabe isso. Mais ainda, depois da revisão da lei eleitoral dos Açores, que, em 2006, introduziu, com efeitos reconhecidamente positivos, o círculo regional de compensação. Quanto a isto, nada a dizer. Embora tenha duas observações a fazer à proposta da IL, que tratarei mais à frente.

O problema para os cidadãos é mais grave: o sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas escolhas em que são forçados a votar. O escrutínio político dos eleitos é também muito fraco, ou mesmo inexistente, e os cidadãos, na eleição seguinte, não têm a menor possibilidade de premiar ou sancionar aqueles em que anteriormente votaram. O ambiente político deixou de ser democrático para tornar-se oligárquico. Toda a gente sente (e sabe) que os deputados não são representantes do povo, mas realmente delegados dos chefes dos partidos. É aos chefes que prestam contas, não aos cidadãos. Este é que é o problema candente e crucial da decadência democrática. Por cada legislatura que passa sem o atender, mais o problema se agrava e a democracia se afunda.

A reforma que inclua os círculos uninominais não só nos daria melhores eleições e um melhor Parlamento, mas também garantiria melhores partidos políticos. Estes mesmos partidos, que por vezes já nos cansam, tornar-se-iam, de imediato, melhores, porque o processo de escolha de candidatos, com peso da cidadania, beneficiaria a própria forma de funcionamento interno dos partidos e a sua capacidade de respiração aberta com a sociedade. Hoje, o sistema favorece os compartimentos fechados e os actores pendurados do tecto.

Voltando ao projecto da Iniciativa Liberal, penso que 40 lugares é uma dotação demasiado grande para o círculo nacional de compensação. Na proposta que apresentei, com círculos uninominais e plurinominais, o círculo nacional de compensação tinha apenas 15 mandatos para atribuir – e, nas simulações feitas, pareceu suficiente. Poderia ser um pouco maior, mas, na nossa avaliação, não muito maior. Nos estudos que fiz, admiti que pudesse ir até 20 lugares, o que corresponderia a uma quota percentual similar à Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Aqui, o círculo regional elege 5 deputados num total de 57. Um círculo nacional com 20 mandatos num total de 230 corresponderia a peso similar: 8,8%. É o bastante. É importante assegurar a proporcionalidade da representação, mas não se deve exagerar, com risco de afectar a governabilidade. Reformas que dêem representação eleitoral a candidaturas com menos de 1% de votação nacional seriam mais negativas do que positivas.

Por outro lado, quanto à atribuição dos mandatos pelo círculo nacional de compensação, penso que é melhor o sistema da nossa proposta. No método inovador que propomos, o círculo nacional não teria listas, sendo a atribuição dos respectivos mandatos feita da seguinte forma: primeiro, são repartidos pelas diferentes candidaturas na razão proporcional que a cada um couber; segundo, dentro de cada partido, são atribuídos aos mais votados não eleitos, dando preferência aos candidatos de círculos em que esse partido ainda não tenha obtido representação. É uma forma de ir ao encontro da preocupação existente com a justiça territorial do sistema e de, contrariando o império do “voto útil”, premiar a fidelidade dos eleitores.

Porém, a grande falha da proposta da IL é a outra metade que fica a faltar: os círculos uninominais, que serão, na verdade, o elemento regenerador da nossa democracia. De facto, a reforma em que tenho trabalhado, lançada pela APDQ e pela SEDES, dá uma resposta global muito boa, resgatando a democracia e devolvendo-a à cidadania. Está pronta e à vista. Fá-lo, porque o sistema misto de representação proporcional personalizada, previsto no artigo 149.º da Constituição, é, de facto, muito inteligente e muito equilibrado: protege a proporcionalidade da representação; e confere aos eleitores um poder prático muito significativo na designação individual dos candidatos e na eleição dos deputados. Essa reforma seria a grande restauração democrática em Portugal. Por sinal, muito oportuna para ser adoptada em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril. Que melhor presente para toda a cidadania portuguesa do que a reforma eleitoral que trouxesse de volta a alegria e a genuinidade da democracia?

January 10, 2023

Montaigne foi o primeiro auto-reformado consciente da história



Foi Michel de Montaigne que deu ao termo "reforma" [retraite em francês. que significa retirar-se] o seu significado actual. Anteriormente, a palavra significava deixar um lugar (por exemplo, na expressão "bater em retirada"). Mas em 1570, 
Montaigne, que era parlamentar em Bordéus decidiu deixar o cargo e retirar-se definitivamente para o seu pequeno castelo. Tinha 38 anos de idade - na altura, era velho- mas aproveitou ao máximo a sua reforma, pois teve tempo de escrever os seus 'Ensaios' antes de morrer em 1592.

Montaigne não só foi o primeiro reformado consciente da história, como também escreveu palavras sobre a reforma que ainda ressoam. Num capítulo do Livro I dos 'Ensaios', intitulado "Sobre a Solidão", o homem neo-reformado assumiu a sua escolha: "Basta de viver para os outros: vivamos para nós próprios pelo menos nesta parte das nossas vidas." Não é que critique ou despreze o empenho na esfera profissional, a acção colectiva, o orgulho de um trabalho bem feito, o reconhecimento que dele se obtém. Mas a vida é constituída, segundo ele, por duas partes igualmente indispensáveis: envolvimento nos assuntos do mundo e atenção exclusiva a si próprio e aos seus entes queridos.

Montaigne está consciente de que o tempo é curto. Assim, "uma vez que Deus nos permite tomar conta da nossa partida, devemos preparar-nos para ela. Façamos as nossas malas, e rapidamente deixemos de fazer companhia; despachemo-nos daqueles laços de ligação que nos arrastam para outro lado e nos levam para longe de nós próprios". Inspirado pelo estoicismo da época, sentiu que tinha de se preparar para a grande partida, para tecer juntos os fios da sua existência através da leitura, reflexão e escrita. Ele não afirma que a sua forma de passar os seus últimos anos é melhor do que outras. É a forma que ele escolheu.

Mas "não é um jogo leve reformar-se em segurança". Para alguns de nós - e eu sou um deles - a perspectiva de parar de trabalhar de vez é demasiado assustadora. Sem um enquadramento, sem constrangimentos, existe um grande risco de desistir e de se desfazer. É por isso que, como Montaigne salienta, "existem complementos mais adequados a estes preceitos de reforma". É mais difícil para "almas activas e ocupadas que abraçam tudo e se comprometem em todo o lado, que são apaixonadas por todas as coisas, que se oferecem, que se apresentam e que se entregam em todas as ocasiões". Mas é perfeitamente adequado a um temperamento como o seu, "que não é facilmente escravizado ou empregado".

Antes de ler esta página dos Ensaios, não compreendia bem a relutância de uma grande parte dos nossos concidadãos à reforma das pensões proposta por Emmanuel Macron: porquê tornar sagrada esta antecâmara da morte se ainda temos o desejo e a força para continuar a trabalhar? Compreendo melhor: não se trata tanto de descansar, cuidar dos netos ou mesmo viajar livremente, mas de saber que há um tempo, santificado e não demasiado tarde, em que tem que estar-se consigo mesmo. Pois, Montaigne continua, "a maior coisa no mundo é saber ser o seu próprio eu", em vez de se alienar à necessidade, à excitação da acção, ou à boa vontade dos seus empregadores.

Certamente, Montaigne estava suficientemente confortável para não reclamar uma pensão do Estado. Foi por isso que ele se reformou tão jovem, mas expressou perfeitamente, creio eu, a necessidade existencial de ter, finalmente, um tempo para si próprio.

@philomag.com

October 17, 2021

“Manifesto: Por uma Democracia de Qualidade”

 



Proposta de Assembleia da República com 229 Deputados. Um estudo com a distribuição dos 105 Círculos Uninominais pelo país, de José Ribeiro e Castro, ex-deputado pode ser lido aqui.