Reforma eleitoral – porquê meia reforma, se a podemos ter inteira?
José Ribeiro e Castro
O sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas escolhas em que são forçados a votar.
Em 4 de Outubro passado, a Iniciativa Liberal (IL) veio reanimar o debate sobre o sistema eleitoral. É o Projeto de Lei n.º 940/XV/2: “Introduz um círculo de compensação nacional nas eleições legislativas”. É uma iniciativa importante, em matéria crucial para a qualidade da democracia, a que tenho dedicado muito trabalho e intervenção cívica nos últimos anos.
A IL faz bem em pôr o tema na mesa e empurrá-lo para a agenda. Mas lamento que se fique pela metade – a abertura da revisão constitucional de 1989 –, em fez de a lançar por inteiro – a abertura constitucional de 1997. Vendo bem, é bastante estrambólico o regime em que vamos vivendo – e afundando-nos. A Constituição permite, desde a revisão de 1989, a instituição de um círculo nacional, como foi introduzido na reforma do, então, artigo 152.º; e, passados 34 anos – sim, 34 anos! – ainda não o temos. Mas a Constituição permite também, desde a revisão de 1997, pela reforma do artigo 149.º, a introdução de círculos uninominais, complementares dos plurinominais e garantindo a representação proporcional; e, passados 26 anos – sim, 26 anos! – ainda não os temos. É difícil encontrar no mundo casos de tamanha preguiça legislativa. O legislador constituinte abre a porta a reformas importantes; e o legislador ordinário esquece-se de as levar à prática. Mais de ¼ de século sem sair da cepa torta! Um esquecimento obstinado…
O nosso sistema eleitoral tem dois problemas principais, que lhe afectam o funcionamento e a reputação. Um é a efectiva representação proporcional – o problema que mais interessa aos partidos. O outro é a efectiva representação política – o problema que realmente interessa aos cidadãos. Não surpreende, embora seja pena, que os partidos mostrem preocupar-se mais com o problema do seu interesse do que com o dos cidadãos, os eleitores. Seria melhor ao contrário: primeiro, a cidadania.
O problema para os partidos é a proporcionalidade da representação parlamentar ter vindo a deteriorar-se. E, como é natural, os partidos mais pequenos (incluindo os que se vão tornando mais pequenos) queixam-se: têm menos lugares do que deveriam, enquanto os partidos maiores concentram mais do que lhes caberia. É comum ouvir-se que a culpa é do método d’Hondt. Não é bem assim: o sr. Hondt terá culpa de muita coisa, mas não disso. A “culpa” é, por um lado, termos elevado número de círculos eleitorais pequenos, isto é, que atribuem poucos mandatos, o que faz subir muito a fasquia a partir da qual se elege alguém. E, por outro lado, o sistema partidário ter-se fragmentado, o que aumenta, círculo a círculo, o número de “votos perdidos”. O remédio mais óbvio é o círculo nacional de compensação. Toda a gente sabe isso. Mais ainda, depois da revisão da lei eleitoral dos Açores, que, em 2006, introduziu, com efeitos reconhecidamente positivos, o círculo regional de compensação. Quanto a isto, nada a dizer. Embora tenha duas observações a fazer à proposta da IL, que tratarei mais à frente.
O problema para os cidadãos é mais grave: o sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas escolhas em que são forçados a votar. O escrutínio político dos eleitos é também muito fraco, ou mesmo inexistente, e os cidadãos, na eleição seguinte, não têm a menor possibilidade de premiar ou sancionar aqueles em que anteriormente votaram. O ambiente político deixou de ser democrático para tornar-se oligárquico. Toda a gente sente (e sabe) que os deputados não são representantes do povo, mas realmente delegados dos chefes dos partidos. É aos chefes que prestam contas, não aos cidadãos. Este é que é o problema candente e crucial da decadência democrática. Por cada legislatura que passa sem o atender, mais o problema se agrava e a democracia se afunda.
A reforma que inclua os círculos uninominais não só nos daria melhores eleições e um melhor Parlamento, mas também garantiria melhores partidos políticos. Estes mesmos partidos, que por vezes já nos cansam, tornar-se-iam, de imediato, melhores, porque o processo de escolha de candidatos, com peso da cidadania, beneficiaria a própria forma de funcionamento interno dos partidos e a sua capacidade de respiração aberta com a sociedade. Hoje, o sistema favorece os compartimentos fechados e os actores pendurados do tecto.
Voltando ao projecto da Iniciativa Liberal, penso que 40 lugares é uma dotação demasiado grande para o círculo nacional de compensação. Na proposta que apresentei, com círculos uninominais e plurinominais, o círculo nacional de compensação tinha apenas 15 mandatos para atribuir – e, nas simulações feitas, pareceu suficiente. Poderia ser um pouco maior, mas, na nossa avaliação, não muito maior. Nos estudos que fiz, admiti que pudesse ir até 20 lugares, o que corresponderia a uma quota percentual similar à Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Aqui, o círculo regional elege 5 deputados num total de 57. Um círculo nacional com 20 mandatos num total de 230 corresponderia a peso similar: 8,8%. É o bastante. É importante assegurar a proporcionalidade da representação, mas não se deve exagerar, com risco de afectar a governabilidade. Reformas que dêem representação eleitoral a candidaturas com menos de 1% de votação nacional seriam mais negativas do que positivas.
Por outro lado, quanto à atribuição dos mandatos pelo círculo nacional de compensação, penso que é melhor o sistema da nossa proposta. No método inovador que propomos, o círculo nacional não teria listas, sendo a atribuição dos respectivos mandatos feita da seguinte forma: primeiro, são repartidos pelas diferentes candidaturas na razão proporcional que a cada um couber; segundo, dentro de cada partido, são atribuídos aos mais votados não eleitos, dando preferência aos candidatos de círculos em que esse partido ainda não tenha obtido representação. É uma forma de ir ao encontro da preocupação existente com a justiça territorial do sistema e de, contrariando o império do “voto útil”, premiar a fidelidade dos eleitores.
Porém, a grande falha da proposta da IL é a outra metade que fica a faltar: os círculos uninominais, que serão, na verdade, o elemento regenerador da nossa democracia. De facto, a reforma em que tenho trabalhado, lançada pela APDQ e pela SEDES, dá uma resposta global muito boa, resgatando a democracia e devolvendo-a à cidadania. Está pronta e à vista. Fá-lo, porque o sistema misto de representação proporcional personalizada, previsto no artigo 149.º da Constituição, é, de facto, muito inteligente e muito equilibrado: protege a proporcionalidade da representação; e confere aos eleitores um poder prático muito significativo na designação individual dos candidatos e na eleição dos deputados. Essa reforma seria a grande restauração democrática em Portugal. Por sinal, muito oportuna para ser adoptada em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril. Que melhor presente para toda a cidadania portuguesa do que a reforma eleitoral que trouxesse de volta a alegria e a genuinidade da democracia?
Em 4 de Outubro passado, a Iniciativa Liberal (IL) veio reanimar o debate sobre o sistema eleitoral. É o Projeto de Lei n.º 940/XV/2: “Introduz um círculo de compensação nacional nas eleições legislativas”. É uma iniciativa importante, em matéria crucial para a qualidade da democracia, a que tenho dedicado muito trabalho e intervenção cívica nos últimos anos.
A IL faz bem em pôr o tema na mesa e empurrá-lo para a agenda. Mas lamento que se fique pela metade – a abertura da revisão constitucional de 1989 –, em fez de a lançar por inteiro – a abertura constitucional de 1997. Vendo bem, é bastante estrambólico o regime em que vamos vivendo – e afundando-nos. A Constituição permite, desde a revisão de 1989, a instituição de um círculo nacional, como foi introduzido na reforma do, então, artigo 152.º; e, passados 34 anos – sim, 34 anos! – ainda não o temos. Mas a Constituição permite também, desde a revisão de 1997, pela reforma do artigo 149.º, a introdução de círculos uninominais, complementares dos plurinominais e garantindo a representação proporcional; e, passados 26 anos – sim, 26 anos! – ainda não os temos. É difícil encontrar no mundo casos de tamanha preguiça legislativa. O legislador constituinte abre a porta a reformas importantes; e o legislador ordinário esquece-se de as levar à prática. Mais de ¼ de século sem sair da cepa torta! Um esquecimento obstinado…
O nosso sistema eleitoral tem dois problemas principais, que lhe afectam o funcionamento e a reputação. Um é a efectiva representação proporcional – o problema que mais interessa aos partidos. O outro é a efectiva representação política – o problema que realmente interessa aos cidadãos. Não surpreende, embora seja pena, que os partidos mostrem preocupar-se mais com o problema do seu interesse do que com o dos cidadãos, os eleitores. Seria melhor ao contrário: primeiro, a cidadania.
O problema para os partidos é a proporcionalidade da representação parlamentar ter vindo a deteriorar-se. E, como é natural, os partidos mais pequenos (incluindo os que se vão tornando mais pequenos) queixam-se: têm menos lugares do que deveriam, enquanto os partidos maiores concentram mais do que lhes caberia. É comum ouvir-se que a culpa é do método d’Hondt. Não é bem assim: o sr. Hondt terá culpa de muita coisa, mas não disso. A “culpa” é, por um lado, termos elevado número de círculos eleitorais pequenos, isto é, que atribuem poucos mandatos, o que faz subir muito a fasquia a partir da qual se elege alguém. E, por outro lado, o sistema partidário ter-se fragmentado, o que aumenta, círculo a círculo, o número de “votos perdidos”. O remédio mais óbvio é o círculo nacional de compensação. Toda a gente sabe isso. Mais ainda, depois da revisão da lei eleitoral dos Açores, que, em 2006, introduziu, com efeitos reconhecidamente positivos, o círculo regional de compensação. Quanto a isto, nada a dizer. Embora tenha duas observações a fazer à proposta da IL, que tratarei mais à frente.
O problema para os cidadãos é mais grave: o sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas escolhas em que são forçados a votar. O escrutínio político dos eleitos é também muito fraco, ou mesmo inexistente, e os cidadãos, na eleição seguinte, não têm a menor possibilidade de premiar ou sancionar aqueles em que anteriormente votaram. O ambiente político deixou de ser democrático para tornar-se oligárquico. Toda a gente sente (e sabe) que os deputados não são representantes do povo, mas realmente delegados dos chefes dos partidos. É aos chefes que prestam contas, não aos cidadãos. Este é que é o problema candente e crucial da decadência democrática. Por cada legislatura que passa sem o atender, mais o problema se agrava e a democracia se afunda.
A reforma que inclua os círculos uninominais não só nos daria melhores eleições e um melhor Parlamento, mas também garantiria melhores partidos políticos. Estes mesmos partidos, que por vezes já nos cansam, tornar-se-iam, de imediato, melhores, porque o processo de escolha de candidatos, com peso da cidadania, beneficiaria a própria forma de funcionamento interno dos partidos e a sua capacidade de respiração aberta com a sociedade. Hoje, o sistema favorece os compartimentos fechados e os actores pendurados do tecto.
Voltando ao projecto da Iniciativa Liberal, penso que 40 lugares é uma dotação demasiado grande para o círculo nacional de compensação. Na proposta que apresentei, com círculos uninominais e plurinominais, o círculo nacional de compensação tinha apenas 15 mandatos para atribuir – e, nas simulações feitas, pareceu suficiente. Poderia ser um pouco maior, mas, na nossa avaliação, não muito maior. Nos estudos que fiz, admiti que pudesse ir até 20 lugares, o que corresponderia a uma quota percentual similar à Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Aqui, o círculo regional elege 5 deputados num total de 57. Um círculo nacional com 20 mandatos num total de 230 corresponderia a peso similar: 8,8%. É o bastante. É importante assegurar a proporcionalidade da representação, mas não se deve exagerar, com risco de afectar a governabilidade. Reformas que dêem representação eleitoral a candidaturas com menos de 1% de votação nacional seriam mais negativas do que positivas.
Por outro lado, quanto à atribuição dos mandatos pelo círculo nacional de compensação, penso que é melhor o sistema da nossa proposta. No método inovador que propomos, o círculo nacional não teria listas, sendo a atribuição dos respectivos mandatos feita da seguinte forma: primeiro, são repartidos pelas diferentes candidaturas na razão proporcional que a cada um couber; segundo, dentro de cada partido, são atribuídos aos mais votados não eleitos, dando preferência aos candidatos de círculos em que esse partido ainda não tenha obtido representação. É uma forma de ir ao encontro da preocupação existente com a justiça territorial do sistema e de, contrariando o império do “voto útil”, premiar a fidelidade dos eleitores.
Porém, a grande falha da proposta da IL é a outra metade que fica a faltar: os círculos uninominais, que serão, na verdade, o elemento regenerador da nossa democracia. De facto, a reforma em que tenho trabalhado, lançada pela APDQ e pela SEDES, dá uma resposta global muito boa, resgatando a democracia e devolvendo-a à cidadania. Está pronta e à vista. Fá-lo, porque o sistema misto de representação proporcional personalizada, previsto no artigo 149.º da Constituição, é, de facto, muito inteligente e muito equilibrado: protege a proporcionalidade da representação; e confere aos eleitores um poder prático muito significativo na designação individual dos candidatos e na eleição dos deputados. Essa reforma seria a grande restauração democrática em Portugal. Por sinal, muito oportuna para ser adoptada em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril. Que melhor presente para toda a cidadania portuguesa do que a reforma eleitoral que trouxesse de volta a alegria e a genuinidade da democracia?