Entretanto:
Representação do rei D. Carlos, entre 1902 e 1905. (é verdade que lhe desenharam a cara bonitinha, bigode e tudo)
Cartoonistas: respeitinho pelo senhor primeiro-ministro, se faz favor!
Maria João Marques
Não julgo que cartazes com um primeiro-ministro com lápis enfiados nos olhos seja uma mensagem que os professores – em conflito deflagrado com o Governo – devam brandir. Há uma negociação e, como sempre nestes contextos, respeito mútuo é essencial. Porém, a reação do primeiro-ministro aos cartazes e do spin socialista e dos aliados socialistas foi mais problemática que os cartazes.
Se António Costa quer gritar “racismo” a propósito dos cartazes, vou reputar tal indignação de bastante desesperada. António Costa é um filho do privilégio. Cresceu com um enorme capital social – que lhe terá potenciado os méritos e os talentos que tem. A mãe vem de uma diferenciada família portuguesa. As boas famílias de origem goesa – e o pai de António Costa era brâmane – sempre foram aceites sem qualquer reserva ou sobranceria pela sociedade lisboeta. André Gonçalves Pereira, Alfredo Bruto da Costa, Margarida Mercês de Mello – para dar uns poucos exemplos.
O próprio António Costa tem noção do seu privilégio. Partindo da sua experiência, dizia há dois anos ao PÚBLICO como o preocupavam as fissuras criadas pelas guerras culturais à volta do racismo e da memória histórica. Criticava Mamadou Ba, equiparando-o a André Ventura.
Nada me leva a crer que António Costa se tenha sentido alvo de racismo com os cartazes. Como político talentoso que é, aproveitou uns cartazes insultuosos para tentar retirar aos professores a simpatia popular pelas suas reivindicações profissionais. Já não é a primeira vez que o primeiro-ministro usa a cartada do racismo contra opositores. Já o fizera, do nada, com Assunção Cristas num debate parlamentar.
E, no entanto, vi um assessor e uma deputada do PS, na sequência da polémica dos cartazes, a descrever António Costa como “racializado”. Nem consigo qualificar o ridículo de embarcarem nesta narrativa. António Costa não é um político fura-vidas que veio de um bairro pobre da periferia e teve contra si o preconceito de professores e de empregadores – e de eleitores. Pretender que António Costa partilhou das experiências das pessoas racializadas em Portugal pode ser bom para animar a burguesia de esquerda das redes sociais, mas presumo que seja ofensiva para quem, efetivamente, veja as potencialidades da vida a estilhaçarem-se devido ao racismo. Para todos os demais – querem lá saber dos sentimentos do primeiro-ministro; interessam-se pela qualidade da governação.
Contudo, isto é só uma narrativa mediática mal concebida de um partido político. O resto é mais dantesco e salazarento.
Para argumentar que os cartazes dos professores são racistas, hordas foram pesquisar toda a produção artística do cartoonista que os desenhou. Claro, a necessidade de desenterrar outros desenhos com alusões racistas – há um único: Costa com um turbante de sikh e em cima de uma cama de pregos de fakir – mostra que os da manifestação não eram racistas. Ora este vasculhar da obra de uma pessoa que ousou desenhar o primeiro-ministro de modo pouco elogioso é francamente pidesco.
Chamem-me esquisita, mas eu prefiro que o escrutínio (violento ou delicado) seja aplicado aos detentores do poder do que a quem faz caricaturas sobre o poder. O humor sobre o poder é uma forma de o conter, de o criticar, de tirar as ilusões de grandeza de que todos os políticos sofrem. O humor, por definição, hiperboliza e distorce para evidenciar as críticas.
Entendo bem que numa sociedade estupidificada e com incapacidade para ler as várias camadas das mensagens que escapam à literalidade, bem como o contexto atual de conseguir ver ofensas em tudo, o humor e a arte sejam alvos preferenciais. Contudo, cabe-nos contrariar esta estupidificação.
Se posso preferir não ver cartazes violentos numa manifestação política, a verdade é que isso é menos grave do que o bullying político e mediático a um artista autor de cartoons ácidos. E que dizer da súbita exigência de respeitinho pelos nossos governantes socialistas? Afinal, há limites no discurso político. Afinal, não se deve abastardar a retórica política.
É curioso que António Costa não veja como abandalha o discurso político quando fala de “queques” que “guincham” referindo-se aos militantes da IL. Aparentemente, para o primeiro-ministro, pode-se gozar com pessoas porque são de uma certa classe social. Ou a má-criação com que as últimas críticas de Cavaco Silva – um ex-Presidente da República que merece respeito, sejam ou não as suas ideias simpáticas para cada um – foram comentadas no PS. Falou-se em “raiva”, “ódio”, “descer à terra” (esta foi do primeiro-ministro, como se Cavaco Silva já estivesse morto), “mal resolvido”. No PS, deviam ter noção que quando a retórica política agressiva nasce, é para todos.
É enormemente mais grave a linguagem agressiva e pouco institucional vinda dos que exercem o poder do que panfletos visuais violentos numa manifestação. Merece mais censura a precariedade de carreira a que os professores são sujeitos do que um cartaz animalizando o primeiro-ministro. É pidesco vasculhar-se a obra de um cartoonista e diabolizá-lo nas redes sociais como vingança por ter satirizado o primeiro-ministro.
O poder está do lado do Governo de maioria absoluta. É uma herança salazarenta exigir respeitinho pelos governantes todo-poderosos e perseguir quem faz pouco do poder – quando o poder é socialista, claro; quando é exercido pelo PSD, a liberdade de expressão na crítica é um valor absoluto. A hipocrisia vive nesta polémica.
Na Idade Média, existiam os bobos nas cortes dos reis e dos senhores feudais. Já então se percebia a necessidade de dizer a verdade ao poder através do humor. E dos efeitos terapêuticos de ridicularizar o poder. Hábitos sanitários desconhecidos do spin socialista do respeitinho e das tribos ululantes das redes sociais.