Enquanto os tanques russos avançavam para a Ucrânia em fevereiro de 2022, Vladimir Putin travava uma batalha paralela na frente interna - uma batalha travada não com armas mas com ideologia, que chegava até às salas de aula do país.
Numa escola secundária em Karabash, uma pequena cidade industrial nos montes Urais, o professor Pavel Talankin sabia que tinha de documentar a situação.
Quase de um dia para o outro, a escola - e a comunidade muito unida onde Talankin, de espírito livre, conhecido como Pasha pelos seus alunos, tinha abraçado o seu papel de educador não-conformista - foi dominada pela militarização e pela propaganda de guerra. Como videógrafo de longa data da escola, Talankin foi instruído pelos seus superiores a documentar a implementação da nova diretiva do Kremlin: formar uma geração impregnada de visões ultranacionalistas e pronta a juntar-se em breve às fileiras do exército que combate na Ucrânia.
Ferozmente contra a guerra, Talankin decidiu captar e mostrar ao mundo uma visão interna e sem filtros da forma como a guerra de Putin contra a Ucrânia estava a moldar a vida das crianças russas. “Soube imediatamente que isto tinha de ser preservado para o registo histórico. Percebi rapidamente que este material não se pode perder”, disse Talankin ao Observer.
As gravações viriam a dar origem a Mr Nobody Against Putin, um documentário emocionante que estreou no mês passado no festival de cinema de Sundance, onde ganhou o Prémio Especial do Júri para Documentários de Cinema Mundial.
As gravações viriam a dar origem a Mr Nobody Against Putin, um documentário emocionante que estreou no mês passado no festival de cinema de Sundance, onde ganhou o Prémio Especial do Júri para Documentários de Cinema Mundial.
Num país onde todo o jornalismo independente foi proibido, Talankin disse que tinha um lugar na primeira fila sem paralelo para a história. “Qualquer jornalista que tentasse filmar o que se estava a passar nas escolas seria imediatamente preso. Eu fui colocado numa situação única”, conta.
“O Ministério da Educação russo enviava ordens extremamente pormenorizadas de que certas aulas tinham de ser filmadas e eu ia lá e filmava”.
No documentário, Talankin mostra como as crianças são obrigadas a marchar com a bandeira russa, a ler livros de história acabados de imprimir que defendem a invasão russa da Ucrânia e a competir em torneios de lançamento de granadas.
Os veteranos de guerra, muitas vezes antigos prisioneiros do famoso grupo paramilitar Wagner, visitam as escolas para pregar “valores patrióticos” às crianças.
“O Ministério da Educação russo enviava ordens extremamente pormenorizadas de que certas aulas tinham de ser filmadas e eu ia lá e filmava”.
No documentário, Talankin mostra como as crianças são obrigadas a marchar com a bandeira russa, a ler livros de história acabados de imprimir que defendem a invasão russa da Ucrânia e a competir em torneios de lançamento de granadas.
Os veteranos de guerra, muitas vezes antigos prisioneiros do famoso grupo paramilitar Wagner, visitam as escolas para pregar “valores patrióticos” às crianças.
Desde o início da guerra, Moscovo tem gasto milhões de rublos para moldar uma nova geração disposta a dar a vida no serviço militar. Os analistas russos descreveram a doutrinação ideológica dos adolescentes como uma das áreas em que o Estado russo mais se aproxima do totalitarismo.
“As escolas são um dos principais locais onde se difunde a propaganda”, disse Talankin. “O fascismo pode enraizar-se da forma mais simples - começando nas escolas, com as crianças”, acrescentou.
O próprio Putin declarou, no ano passado, que a campanha para transformar as escolas russas em instrumentos de militarização é um facto:
“As escolas são um dos principais locais onde se difunde a propaganda”, disse Talankin. “O fascismo pode enraizar-se da forma mais simples - começando nas escolas, com as crianças”, acrescentou.
O próprio Putin declarou, no ano passado, que a campanha para transformar as escolas russas em instrumentos de militarização é um facto:
As guerras não são ganhas por comandantes, mas por professores.No filme, Talankin faz um retrato matizado da forma como a militarização da Rússia se infiltra na sua escola. Talankin capta os professores a navegarem nas complexidades dos seus papéis - alguns abraçam totalmente o fervoroso sentimento pró-guerra do país, outros resistem discretamente. Entre os primeiros encontra-se Abdulmanov, um professor de história e firme apoiante de Putin, que admira abertamente alguns dos mais infames capangas de Estaline.
Outros, no entanto, lutam com os seus novos papéis de propagandistas, confidenciando a Talankin o seu desconforto com a mudança de direção da escola.
Muitos professores não querem fazer isto, mas estão encurralados, diz Talankin.
As pessoas estudam para serem professores e sonham em educar as crianças, mas depois vêem-se obrigadas a fazer propaganda.Em Karabash, os empregos são escassos, disse Talankin, e para muitos - especialmente os professores mais velhos - desenraizar as suas vidas não era uma opção. No final, muito do que acontece na sala de aula parece uma encenação para as câmaras, com professores e alunos a lerem a partir de notas preparadas, recitando as respostas que o Estado espera.
“Uma aldeia Potemkin", comenta Talankin.No entanto, adverte, os efeitos da militarização são reais e tangíveis: “Para as crianças mais pequenas, tudo o que o professor diz é tomado como verdade. O impacto a longo prazo da propaganda militar vai fazer-se sentir”.
Os alunos mais velhos são muitas vezes mais cépticos, diz Talankin, mas ele testemunhou em primeira mão o poder da propaganda sobre aqueles que o rodeiam. Alguns dos seus antigos colegas de turma e amigos decidiram assinar contratos militares e combater na Ucrânia - alguns regressaram a casa em caixões.
No verão de 2024, Talankin sentiu os muros a fecharem-se. Um carro da polícia permanecia à porta de sua casa e as suas opiniões contra a guerra tornavam-se cada vez mais visíveis em Karabash, numa altura em que a Rússia estava a apertar o cerco à dissidência com uma vaga de leis draconianas. Sem dizer a ninguém - nem mesmo à sua mãe - fugiu da Rússia em junho de 2024, levando consigo sete discos rígidos de filmagens.
Desde o lançamento do seu documentário, as reacções em Karabash têm sido mistas. “Ainda ontem recebi uma mensagem de apoio de alguém do meu país. Mas, antes disso, recebi muitas ameaças, longas mensagens de voz a chamar-me escumalha, traidor da pátria”, disse.
Ainda assim, espera que muitas pessoas na sua cidade natal e no seu país natal possam ver o filme. “Quero que o maior número possível de pessoas na Rússia veja este filme - não apenas em Karabash, mas em todo o lado. Para o seu próprio bem”.