Podia ler-se no «Le manifeste des 343 salauds», em França (os 343 porcos eram os deputados que queriam aprovar a lei), numa campanha contra a exploração sexual das mulheres disfarçada de consideração pela liberdade das mulheres que querem ser prostitutas.
É caso para perguntar quantos são os salauds que em Portugal não abdicam das suas putas? E quem é o lobby que está a exercer influência sobre os juízes? O dos proxenetas unidos? Os homens machistas gostam de pensar que as mulheres são prostitutas com porque gostam do seu sexo. Se isto não fosse grave era só patético.
Devemos passar a propor aos alunos a profissão de prostituta ou prostituto ou de proxeneta e chulo como uma opção de carreira, agora com o favorecimento do Tribunal Constitucional?
O Tribunal Constitucional quer mais exploração sexual de mulheres?
Maria João MarquesA regulamentação da prostituição e do proxenetismo levou, em todo o lado onde foi aplicada, a um aumento do tráfico de mulheres para exploração sexual.
O patriarcado é como o diabo: aproveita todas as oportunidades para espalhar os seus tentáculos. A associação entre conservadorismo e patriarcado conhecemo-la bem. De resto, a extrema-direita, em crescimento por vários cantos do mundo, tem no centro da sua ideologia o regresso à tradicional esfera feminina confinada à maternidade, à domesticidade, ao casamento. As ideias conservadoras, e os seus proponentes, têm uma vantagem: dizem ao que vêm.
Porém, a nova tendência é atacar os direitos das mulheres em nome do progressismo, da inclusão, enfim, da modernidade. O caso mais paradigmático vem do Tribunal Constitucional, que reverteu há dias a sua posição sobre a constitucionalidade do proxenetismo. São uns queridos, os nossos juízes do Tribunal Constitucional. Gostam tanto da iniciativa privada que querem ajudar pessoas – normalmente homens – que ganham dinheiro ajudando outras – esmagadoramente mulheres – a exercerem a sua enorme liberdade de se sustentarem servindo de boneca insuflável humana para os seus clientes. Tudo isto em nome desse grande valor progressista que é a liberdade e a libertação do puritanismo judaico-cristão.
Há muitas discussões, incluindo entre feministas, à volta da prostituição como exploração sexual versus trabalho sexual. Na teoria pode-se considerar que, fora casos de tráfico e sequestro de mulheres, quem se prostitui o faz voluntariamente e usando da sua liberdade e dispondo do seu corpo como quer. Na prática, 75% das pessoas que se prostituem são mulheres– e desconfio que não é pela enorme apetência de as mulheres terem sexo com desconhecidos propensos à violência. Normalmente, são mulheres imigrantes, muito pobres. A liberdade de que fazem uso é extremamente livre: recorrem à prostituição para não passarem fome e para se sustentarem e aos seus filhos, uma vez que não têm outra atividade que lhes esteja disponível, usualmente em países onde não nasceram e não possuem rede de apoio.
Caso não haja paciência e empatia para se ler os casos reais das mulheres que se prostituem em Lisboa, e a miséria que vem atrelada, podemos ir para a ficção, sempre mais higienizada. No filme Eu, Daniel Blake, mostra-se a estonteante liberdade das mulheres que recorrem à prostituição. Uma mãe solteira britânica não consegue trabalho nem tem respostas da Segurança Social, e acaba por escolher (chamemos assim) prostituir-se, quando é apanhada por um segurança – fazendo trabalho em duplicado como recrutador de mulheres em aflição – roubando comida num supermercado.
Acresce a isto a lista interminável de violência sobre as mulheres que se prostituem. Nos países onde a prostituição é vista como uma normal atividade económica, os números dos assassínios de mulheres que se prostituem são consideráveis. A violência sexual é um dado adquirido para estas mulheres. São violadas e espancadas por clientes, por proxenetas e até por agentes da autoridade. Há uma grande ligação, comprovada por estudo atrás de estudo, entre ter sido alvo de abusos sexuais em criança e, mais tarde, envolver-se na prostituição – o que também levanta dúvidas às pessoas que não estão cegas pela vontade de coisificar mulheres sobre a tal liberdade com que as mulheres escolheriam viver de vender sexo.
Além do evidente risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis, os problemas de saúde mental são mais prevalecentes junto das mulheres que se prostituem do que na população em geral, desde ansiedade e depressão até stress pós-traumático. Para terminar este rol de maravilhas que vem com a dita liberdade de uma mulher se prostituir, a regulamentação da prostituição e do proxenetismo levou, em todo o lado onde foi aplicada, a um aumento do tráfico de mulheres para exploração sexual. Os liberais e ricos Países Baixos são dos maiores destinos de tráfico humano. Não é coincidência. Tem toda uma relação com exibirem-se mulheres como mercadoria em montras.
Dentro de quem vê a prostituição como uma atroz forma de explorar (e destruir fisicamente e psicologicamente) mulheres, os métodos para a combater também não são pacíficos. O modelo abolicionista – que descriminaliza quem se prostitui e criminaliza a procura de serviços sexuais pelos clientes –, também conhecido por “modelo nórdico”, não é unânime. Há quem argumente que pôr os clientes mais nas margens da legalidade os torna mais perigosos.
De todo o modo, veja-se a prostituição como exploração sexual ou trabalho sexual, defenda-se a regulamentação ou o abolicionismo, não se podem negar os factos de ser uma atividade particularmente danosa para as mulheres. Que só se permite porque a sociedade atribui menos valor à dignidade das mulheres e à saúde das mulheres do que à vontade de os homens terem sexo mesmo se não conseguirem seduzir nenhuma mulher para o fazer voluntariamente e gratuitamente. De modo mais cru: porque os orgasmos masculinos valem mais do que a vida das mulheres.
Que seja constitucional que um terceiro ganhe dinheiro com esta atividade degradante para as mulheres significa que a Constituição, apesar da prosápia sobre igualdade, considera que as mulheres, afinal, são objetos para satisfação sexual dos homens. Ou os intérpretes da Constituição estão numa senda misógina de ataque à dignidade das mulheres ou a Constituição afinal não presta e não defende a dignidade humana em se tratando da parte humana feminina.
Que esta degradação se faça em nome do combate ao moralismo, ao puritanismo e como defesa da liberdade sexual das mulheres torna a argumentação ainda mais indecorosa. Vamos lá fingir que transformar as mulheres em mercadorias que se compram e vendem para satisfazer vontades masculinas é libertação sexual feminina, quiçá feminismo do melhor. Não concordam? É porque são umas puritanas, botas de elástico, anti-sexo, odeiam homens, ainda não fizeram a transição para o século XXI, detestam a liberdade alheia.
Chamem-me moralista quanto quiserem. Afinal os quadros legais e constitucionais não desceram dos céus quais dez mandamentos. Devem refletir os valores que uma sociedade mais preza e punir os comportamentos que atentam contra. Mas nada que incomode alguns legisladores e a maioria dos conselheiros do Tribunal Constitucional. Afinal serão as mulheres pobres aquelas que “livremente” se prostituem. Não serão as suas filhas ou as suas netas, pois não?
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico