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October 06, 2024

Leituras de fim-de-semana - Acerca da «humildade intelectual» como virtude epistemológica

 

Este artigo tem afirmações polémicas e a conclusão é polémica mas é muito bom para pensar no tema. Fornece muitos nutrientes.


Contra a humildade

A humildade intelectual foi recentemente aclamada como a chave para pensar bem. A história de Barbara McClintock prova o contrário

Rachel Fraser (professora associada de filosofia na Universidade de Oxford)

Suponhamos que quer ser uma pessoa melhor. (Muitos de nós querem.) Como pode fazê-lo? Pode tentar tornar-se mais generoso e doar mais do seu rendimento a instituições de caridade. Pode tentar tornar-se mais paciente e praticar a escuta do seu parceiro, em vez de se zangar com ele. Estas prescrições de senso comum invocam uma tradição ética antiga. A generosidade e a paciência são virtudes - excelências de carácter, cujo exercício nos faz florescer. Viver bem, diz o especialista em ética das virtudes, é cultivar e exercitar precisamente essas excelências de carácter.

Parte de viver bem, porém, é pensar bem. As nossas almas têm uma parte intelectual, bem como uma parte prática; não podemos viver vidas plenamente florescentes se não florescermos intelectualmente. Haverá, então, virtudes especificamente intelectuais - excelências de carácter intelectual, cujo exercício nos torna bons pensadores? 

Aristóteles - cujas obras continuam a ser uma pedra de toque para os teóricos da virtude contemporâneos - pensava certamente que sim. A parte intelectual da alma, escreveu ele na sua Ética a Nicómaco, esforça-se por alcançar a verdade; consequentemente, pensava ele, as virtudes intelectuais são apenas as disposições que a qualificam para desempenhar esta função. 

Enquanto o eticista das virtudes nos pede para sermos generosos e pacientes, temperantes e corajosos, o epistemólogo das virtudes pede-nos para sermos ponderados e justos, diligentes e de mente aberta. Na sua forma mais ambiciosa, o epistemólogo da virtude argumenta, não só que essas caraterísticas são valiosas por si mesmas ou que o exercício dessas virtudes irá (tender a) produzir conhecimento, mas também que a nossa compreensão do que é o conhecimento é, em primeiro lugar, parasitária da nossa compreensão dessas virtudes. Se eu sei que - digamos - o ADN tem uma forma de dupla hélice, isso deve-se ao facto de eu acreditar no que um agente intelectualmente virtuoso acreditaria sobre o ADN, em circunstâncias semelhantes às minhas.

Como tudo na vida, as virtudes entram e saem de moda. Uma suposta virtude intelectual, em particular, tornou-se recentemente muito em voga. Filósofos, psicólogos e jornalistas exortam-nos todos a sermos mais humildes do ponto de vista intelectual. 

Os diferentes pensadores caracterizam a humildade intelectual de forma diferente, mas há alguns temas recorrentes. Os intelectualmente humildes têm um sentido apurado da sua própria falibilidade (“Já me enganei no passado”). Toleram a incerteza (“Talvez nunca saibamos toda a verdade sobre o que aconteceu”). Reconhecem a parcialidade e a ambiguidade das suas provas, bem como os limites da sua capacidade de as avaliar (“Podem surgir novas informações”; ou “Posso estar a interpretar mal estes dados”).

A humildade intelectual foi raramente discutida entre 1800 e o início dos anos 2000, mas no início dos anos 2010, o número de menções a esta caraterística começou a crescer exponencialmente. 

O entusiasmo pela humildade intelectual parece, pois, estar ligado a um conjunto específico de ansiedades epistemológicas relacionadas com a gestão da informação na era da Internet e das redes sociais. (O Facebook foi fundado em 2004.) De facto, diz-se frequentemente que a humildade intelectual protege precisamente contra as patologias que os media sociais podem incubar. 

Quando os cidadãos são intelectualmente humildes”, escrevem Michael Hannon e Ian James Kidd, ‘são menos polarizados, mais tolerantes e respeitadores dos outros e demonstram maior empatia pelos adversários políticos’. Os intelectualmente humildes, escreve Mark Leary, “reflectem mais profundamente sobre a informação que contradiz os seus pontos de vista” e “examinam a validade da informação que encontram”.

Mas o trabalho empírico que sustenta estas avaliações brilhantes é muitas vezes questionável. 

Muitos estudos avaliam a humildade intelectual dos participantes nas suas experiências através de auto-relatórios. Pede-se aos sujeitos que classifiquem o seu nível de concordância com afirmações como “se não souber alguma coisa, estou disposto a admiti-lo”; aqueles que classificam níveis elevados de concordância são considerados como tendo um elevado nível de humildade intelectual. 

A preocupação não reside apenas no facto de sermos muitas vezes maus juízes das nossas próprias forças e fraquezas, mas também, mais especificamente, no facto de serem precisamente as pessoas com falta de humildade que provavelmente se atribuem pontuações elevadas na humildade. Afinal, as pessoas humildes não andam por aí a dizer que são humildes. Dizer “sou muito humilde” é uma afirmação cómica e auto-sabotadora.

Mesmo assim, poder-se-ia pensar que a humildade intelectual tem certamente um papel importante a desempenhar. A humildade intelectual pode moderar alguns dos nossos piores instintos. Muitas vezes, as pessoas subestimam o quão difícil pode ser descobrir a verdade. As provas equívocas e obscuras são apagadas em favor de uma narrativa bem organizada e familiar. Os conhecimentos especializados num domínio são ilicitamente projectados noutros. Os fracassos passados - inferências falaciosas ou falhas de raciocínio espacial - são encobertos. Aqueles que valorizam a humildade intelectual, para seu crédito, pedem-nos para estarmos atentos a estas tendências demasiado humanas.

Este modelo da psique humana realça a nossa precipitação e arrogância. Mas também estamos sujeitos a outros defeitos - à cobardia e ao auto-engano. E, no que respeita a estes outros defeitos, a humildade intelectual tende a funcionar como um álibi. 

A obra-prima de Simone de Beauvoir, de meados do século passado, Os Mandarins (1954), dramatiza esta dinâmica. O romance começa quando a Segunda Guerra Mundial está a chegar ao fim. (“As ruas voltariam a cheirar a petróleo e a flores de laranjeira... e ele beberia café a sério ao som de guitarras”). O livro acompanha um grupo de intelectuais de esquerda que tentam compreender o legado da guerra e a forma como podem integrar os seus compromissos políticos nos seus projectos pessoais.

Mais ou menos a meio do livro, chega um misterioso desconhecido da Rússia. É apresentado como um alto funcionário soviético - “George” - que desertou recentemente para o Ocidente; diz-se que contrabandeou consigo “informações sensacionais” que serão “devastadoras” para o regime soviético - um regime em que muitas das personagens do romance estão profundamente empenhadas. (“A única hipótese de ver a humanidade libertada da miséria, da escravatura e da estupidez”, pensa uma personagem, Henri, “é a União Soviética. Por isso, não nos devemos poupar a esforços para a ajudar"). George apresenta a Henri e ao seu amigo Robert documentos que mostram que o “socialismo russo” - o pilar das suas esperanças políticas - assenta num sistema brutal de campos de trabalho forçado.

Henri e Robert reagem de forma bastante diferente às provas. Após alguma resistência inicial - “George era suspeito, a Rússia estava tão longe e ouvem-se tantas coisas” - Henri acaba por acreditar que os campos de trabalho forçado são reais. Apercebe-se de que as provas provêm de demasiadas fontes diferentes - documentos oficiais, testemunhos de observadores americanos e de deportados - para que possa duvidar delas de forma credível. Henri apercebe-se, dolorosamente, que já não pode depositar as suas esperanças no socialismo russo. “Na Rússia, também”, pensa ele, ‘os homens estavam a forçar outros homens a trabalhar até à morte’.

Robert responde com mais timidez. Escolhe, “duvidar” das informações. Insiste que seria irresponsável julgar apenas com a informação de que dispõe, e que nada foi “verdadeiramente estabelecido”. 

Reflectindo sobre o comportamento do seu amigo, Henri pensa para si próprio que Robert se “refugiou no cepticismo”. 

Mais tarde, quando Robert fala sobre a situação com a sua mulher, Anne, esta começa por discordar do marido, achando que as provas de que dispõem são decisivas, que mais investigações serão inúteis e que Robert deve ajudar a divulgar as revelações sobre os campos de concentração. Mas Robert insiste em que não pode avançar enquanto não souber mais. Ana fica em silêncio. Eu não insisti”, diz ela. Afinal de contas, que direito tinha eu de protestar? Sou demasiado incompetente”.

Do trio de personagens de Beauvoir, Henri é claramente o mais admirável. Este facto exerce pressão sobre aqueles que consideram a humildade intelectual uma virtude. Robert tem em conta a possibilidade de erro e a dificuldade de julgar provas complexas. Henri, pelo contrário, é quase impetuoso. Anne leva a sério a discordância do seu colega e está intensamente consciente dos limites da sua experiência política, enquanto Henri não se importa que o seu velho amigo Robert tenha chegado a uma conclusão diferente. Robert e Anne estão mais próximos do que Henri dos ditames da humildade intelectual. E, no entanto, Henri merece mais apreço do que qualquer um deles.

Poder-se-ia argumentar que nem Robert nem Anne são verdadeiramente humildes do ponto de vista intelectual. Pelo contrário, apenas fingem ser humildes. Estes casos mostram que a virtude da humildade intelectual deve ser conjugada com a da coragem intelectual.

No entanto, não é assim tão claro que possamos estabelecer uma distinção de princípio entre humildade intelectual e cobardia intelectual (ou, inversamente, entre arrogância intelectual e coragem intelectual). 

Estamos inclinados a pensar em Henri como intelectualmente corajoso - em vez de arrogante e precipitado - porque acertou nas coisas, e a pensar em Robert como cobarde porque errou. Imagine-se uma versão de The Mandarins - e, de facto, uma versão da história - em que os documentos de George eram todos falsos: parte de uma elaborada conspiração da CIA para desacreditar a União Soviética. Perante este cenário, o que antes considerávamos cobardia de Robert parece mais uma humildade genuína. O que antes parecia, da parte de Henri, clarividência e coragem, começa a parecer mais uma imprudência. A lição é que é difícil isolar os nossos juízos sobre o carácter intelectual dos resultados do exercício desse carácter num determinado contexto. Para julgar se estava a ser humilde (bom) ou tímido (mau), muitas vezes preciso primeiro de saber se acabou por adquirir conhecimentos.

Temos, portanto, razões para ser cépticos em relação à afirmação do epistemólogo da virtude ambicioso de que compreendemos o que é o conhecimento através da nossa compreensão das virtudes intelectuais. Ainda assim, isso é compatível com a ideia de que a humildade intelectual é uma virtude genuína e, como tal, que devemos aspirar a cultivá-la.

Mas e se se verificar que os nossos ícones intelectuais - os nossos exemplares da boa vida intelectual - tendem a não ser humildes? E se se verificar que o crescimento do conhecimento não se processa através da humildade, mas antes através de uma teimosia obstinada? Estas questões não são hipotéticas. Um olhar sobre a história da ciência sugere que a humildade intelectual, longe de ser um ingrediente crucial para o florescimento intelectual, pode servir para o corroer.

Pensemos na geneticista Barbara McClintock. Ela ficou fascinada pela genética quando ainda era estudante na Universidade de Cornell, em Nova Iorque, na década de 1920, e continuou a estudar a estrutura cromossómica do milho durante décadas. Depois de lutar para encontrar uma posição segura no corpo docente de uma universidade, McClintock passou grande parte de sua carreira no Cold Spring Harbor Laboratory, em Long Island, onde desenvolveu uma abordagem altamente idiossincrática para o estudo da genética. Numa altura em que muitos geneticistas estudavam a mosca da fruta Drosophila - e, mais tarde, as bactérias - devido aos seus rápidos ciclos reprodutivos (a Drosophila produz uma nova geração de 10 em 10 dias), McClintock manteve-se fiel ao milho mais tradicional, dedicando o seu tempo a conhecer realmente cada novo lote de plantas.

Conheço todas as plantas do campo. Conheço-as intimamente”, disse McClintock à sua biógrafa, Evelyn Fox Keller. A atenção profunda e afectuosa aos seus objectos de estudo era uma caraterística do método de McClintock. Os colegas de McClintock ficavam espantados com a sua acuidade perceptiva. Conseguia olhar para as células de milho ao microscópio e ver pormenores da sua estrutura cromossómica que seriam invisíveis para outras pessoas. Explicou: “[Passo] atentamente por cada parte, devagar mas com grande intensidade”. Sentiu-se a fundir-se com os cromossomas que examinava. Quando olhamos para estas coisas”, reflectiu, ”elas tornam-se parte de nós. E esquecemo-nos de nós próprios”.

No início dos anos 50, McClintock começou a apresentar resultados que perturbavam os seus colegas. Naquela época, os geneticistas tendiam a operar com duas premissas padrão cruciais. A primeira era que a posição de um gene no cromossoma era fixa. A segunda era que os genes eram modulares: que um determinado pedaço de informação genética continha um conjunto rígido de instruções que o organismo só podia implementar de uma forma. 

McClintock apercebeu-se de que ambos os pressupostos eram falsos. Apercebeu-se de que os genes podiam ser “ligados” ou “desligados”. A forma como um organismo expressará um determinado gene não é rigidamente determinada por esse gene por si só, mas pela forma como esse gene interage com outras unidades genéticas: os “elementos de controlo” que activam ou desactivam as instruções do gene. Além disso, estes elementos de controlo não têm uma posição fixa no cromossoma. Pelo contrário, são capazes de “saltar” entre diferentes pontos da cadeia cromossómica. 

A historiadora da ciência Sharon Bertsch McGrayne explica claramente as consequências. Suponhamos que um elemento de controlo salta para junto de um gene de pigmento e o desliga muito cedo no desenvolvimento. A planta acabará por ficar com folhas incolores. Em contrapartida, se o gene do pigmento for desativado a meio do desenvolvimento da planta, esta ficará com folhas estriadas ou manchadas. Assim, duas plantas podem começar exatamente com os mesmos cromossomas, mas ter folhas com um aspeto muito diferente: uma monocromática, a outra manchada.

Os colegas de McClintock ficaram perplexos com o seu trabalho. Quando apresentou as suas ideias pela primeira vez, McClintock falou durante uma hora em Cold Harbour. Segundo McGrayne, foi recebida com um “silêncio mortal”. (Harriet Creighton, uma importante colaboradora de McClintock, recordou que a palestra “caiu como uma bola de chumbo”. Em 1953, McClintock publicou as suas ideias, mas o artigo recebeu pouca atenção. Os colegas cientistas brincavam dizendo que o seu projeto era “louco” ou chamavam-lhe “uma velha”.

A maioria das pessoas, confrontada com uma tal mistura de hostilidade e incompreensão, pararia para reconsiderar os seus pontos de vista. Preocupar-se-iam com o facto de que, se os seus pares estão tão perplexos com as suas afirmações, então talvez as suas afirmações sejam realmente bizarras e infundadas. Certamente, a humildade intelectual teria exigido que McClintock levasse a sério as preocupações dos seus pares. No entanto, McClintock ignorou os seus detractores. Decidiu que publicar era uma perda de tempo e deixou de apresentar o seu trabalho em Cold Harbour.

Mas ela não desistiu do seu projeto. Pelo contrário, continuou a perseguir as suas ideias com uma concentração implacável, inserindo as suas plantas de milho numa estrutura de significado cada vez mais rica e altamente visual. 

Em muitos aspectos, portanto, o comportamento de McClintock era o de uma maníaca. “Eu sabia que tinha razão”, insistiu mais tarde. Mas a obstinação excêntrica de McClintock deu frutos. Mais de 30 anos após a sua apresentação em Cold Harbour, ganhou um Prémio Nobel pelo seu trabalho sobre elementos genéticos móveis. Estávamos em 1983 e ela foi a primeira mulher a ganhar o prémio de fisiologia e medicina não partilhado.

Por qualquer critério plausível, McClintock viveu uma vida intelectualmente florescente. Mas não era intelectualmente humilde. Para além de não se perturbar com a incompreensão dos seus pares, McClintock estava profundamente investida no seu próprio brilhantismo. Orgulhava-se da sua compreensão intuitiva das suas plantas. 

Fox Keller conta que McClintock era capaz de prever o que veria no núcleo de uma planta, ao microscópio, simplesmente inspeccionando a planta no campo. Antes de examinar os cromossomas”, conta McClintock, ‘percorri o campo e adivinhei, para cada planta, o que [iria ver]... E nunca me enganei, excepto uma vez’. Quando, olhando através do seu microscópio, McClintock pensou que tinha feito uma previsão errada, ficou, diz ela, “em agonia”. Correu para o terreno”. Para seu grande alívio, descobriu que tinha cometido um erro de registo: em vez de registar o número da planta que tinha cortado e examinado ao microscópio, tinha anotado o número da planta adjacente. E depois”, disse ela a Fox Keller, ‘ficou tudo bem’.

É claro que se pode pensar que, embora McClintock tenha tido uma vida próspera, teria sido uma vida melhor se ela tivesse sido mais intelectualmente humilde. Mas isso não é especialmente plausível. Se McClintock tivesse estado mais atenta às suas potenciais limitações intelectuais, não é claro que pudesse ter desenvolvido uma forma de fazer e pensar a genética que fosse tão inteiramente sua e que sustentasse a sua capacidade de ver para além dos dogmas que cegavam os seus contemporâneos. 

A própria McClintock insistia em que o seu trabalho exigia uma espécie de certeza tranquila - que os juízos que fazia exigiam “total confiança”. McClintock serve, portanto, para ilustrar uma máxima fundamental da psicologia de Friedrich Nietzsche. Em Para Além do Bem e do Mal (1886), Nietzsche argumentou que mesmo os nossos impulsos mais nobres estão completamente misturados com os nossos impulsos mais obscuros e perversos. O amor de McClintock pelas suas plantas de milho e o seu egoísmo, a sua criatividade e a sua obstinação cáustica - tudo isto forma um todo coeso. Há algo de fácil na tentativa de os separar uns dos outros, de hipostasiar os aspectos bons do seu carácter como separados dos maus.

Quais são as opções para aqueles que querem resgatar a ideia de que a humildade intelectual é uma virtude? Uma opção seria instituir um sistema de dois níveis. McClintock, poder-se-ia dizer, era um génio. E os génios conseguem safar-se de coisas que o resto de nós não consegue. Os traços que sustentam o florescimento intelectual dos génios não sustentam o florescimento intelectual das massas, porque o tipo de florescimento de “alto nível” disponível para McClintock simplesmente não está disponível para o resto de nós. Ela floresceu, sim, mas não pode servir como um modelo significativo para seres “comuns” como nós.

É profundamente desinteressante, no entanto, dividir os seres humanos em tipos “superiores” e “inferiores”. Mas mesmo que conseguíssemos aceitar a divisão inegalitária (e eu não conseguiria), a sugestão é incorrecta. Todos nós conhecemos idiotas que pensam que são génios - idiotas que, se tivessem meia oportunidade, se identificariam como pertencendo ao “tipo superior”. Em geral, são precisamente aqueles que mais beneficiariam de uma dose de humildade intelectual que se classificariam como estando fora das suas exigências.


Ainda assim, há algo de correto na ideia de que não devemos começar a imitar os traços particulares de McClintock. Devemos admirar McClintock porque ela foi capaz de pegar num conjunto altamente idiossincrático de talentos e defeitos e transformá-lo numa personalidade intelectual favorável ao conhecimento. Essa é uma tarefa que cada um de nós enfrenta. Mas, fundamentalmente, os nossos talentos, defeitos e ambientes são muito diferentes uns dos outros. À luz dessa diversidade, delinear as virtudes intelectuais - traços de carácter estáveis capazes de sustentar genericamente uma vida de florescimento intelectual - começa a parecer como prescrever as cores que um artista deve usar se quiser pintar bem. 

Qualquer cor de tinta pode, nas mãos certas, ser usada para criar uma bela pintura. Do mesmo modo, quase todos os traços de carácter podem, em circunstâncias suficientemente favoráveis, servir de auxiliares do conhecimento.

A humildade intelectual não é, portanto, uma virtude, porque não existem virtudes intelectuais. Há traços que por vezes são conducentes ao conhecimento e traços que por vezes não o são. Mas não existem regras gerais sobre que caraterísticas são quais e, por isso, não há forma de classificar, para todos os tempos e temperamentos, as nossas caraterísticas intelectuais como “boas” ou “más”. 

A procura de virtudes intelectuais é a procura de um livro de regras ou de uma receita: uma forma de garantir que nos encontraremos do lado certo da verdade. Mas quando se trata da boa vida intelectual, não existem tais livros de regras ou receitas; não existe um método que nos garanta contra as notícias falsas ou a falsa confiança. A ansiedade epistemológica é tão antiga como a própria filosofia. Merece uma resposta melhor do que a injunção moralista para sermos humildes.

September 29, 2024

Pequenas leituras de fim-de-semana - “A ecologia está a afastar-se da utopia e a aproximar-se da lógica do poder”

 


“A ecologia está a afastar-se da utopia e a aproximar-se da lógica do poder”

Pierre Charbonnier, entrevista por Martin Legros

Numa altura em que a China e os Estados Unidos se esforçam por descarbonizar as suas economias, a Europa utiliza a sua política energética como arma de guerra para contrariar o ataque da Rússia à Ucrânia. 

Para Pierre Charbonnier, autor de Vers une écologie de guerre (La Découverte, 2024), estes são os sinais de uma nova era geopolítica, em que a ecologia desempenhará um papel na definição da segurança colectiva entre as nações.

Na sua opinião, a década de 2020 marcou um ponto de viragem na nossa relação com a ecologia. O que é que isso significa?
Pierre Charbonnier: É de facto uma viragem histórica importante. Um grande número de organismos nacionais e internacionais começou a encarar os riscos climáticos não só como uma preocupação ética e humanitária para o futuro e o bem-estar da humanidade, mas também como uma questão de segurança e de prosperidade colectiva. A descarbonização dos sistemas energéticos abre uma concorrência entre países para tirar o máximo partido dos novos sectores industriais que estão a surgir, nomeadamente no domínio das energias renováveis. Está a surgir um novo realismo climático e ecológico.

Como quando XI Jinping anunciou, a 20 de setembro de 2020, que a China seria descarbonizada até 2050...
Sim, e trata-se de uma jogada geopolítica. Ele disse que queria fazer da China o líder da descarbonização e está a transformar este desafio numa questão de hegemonia. O Presidente dos EUA, Joe Biden, eleito no mesmo ano para suceder a Trump, alinhou com a posição chinesa assim que assumiu o cargo. O seu Secretário de Estado, Anthony Blinken, declarou que as políticas climáticas eram uma situação vantajosa para todos: incentivar novas indústrias de baixo carbono era bom para o emprego e para a classe média, enquanto Trump tinha tentado proteger o seu modo de vida alimentado por combustíveis fósseis... 

A Europa segue o exemplo, com a directiva europeia sobre a transição, o Pacto Verde. Isto não significa que a transição esteja a acontecer: ainda estamos no domínio do performativo. A China continua a ser o maior consumidor de combustíveis fósseis, enquanto os Estados Unidos são o maior produtor. Mas a mudança nos argumentos leva-me a crer que entrámos numa nova era da ecologia. Os empregos e a formação do futuro serão moldados por esta questão e, a ideia que temos de poder, tanto político como económico, inclui a ecologia. Ao longo do século XX, a procura crescente de combustíveis fósseis foi o principal factor de poder.

A dissociação que está a ocorrer entre o poder e o carbono sugere que estamos em vias de sair da armadilha que nos foi legada pela história, uma armadilha que associava segurança, poder, energia e destruição do planeta. É uma oportunidade para os ecologistas abandonarem o utopismo em que se aprisionaram e que os levou a acreditar que a ecologia é antitética à lógica do poder. Esta viragem está a remodelar todo o quadro conceptual até agora utilizado para definir a política climática.

A guerra na Ucrânia é o segundo grande acontecimento que, na sua opinião, testemunha este ponto de viragem. Marca o início da era da ecologia da guerra. Em que sentido?
A guerra na Ucrânia não tem qualquer motivo ecológico. Não é uma guerra pelo gás ou pelo petróleo, como no Iraque. Mas a reacção que provocou na Europa é aquilo a que chamo a ecologia da guerra. Mais de 40% do gás consumido na Europa vem da Rússia. A guerra desencadeia uma política de restrição das importações de combustíveis fósseis e uma política de sobriedade, não em nome da moralidade, mas em nome da segurança geopolítica da Europa. 

A invasão da Ucrânia pela Rússia dá à Europa a oportunidade de pôr fim à sua dependência energética, ao mesmo tempo que a encoraja a intensificar os seus esforços para combater as alterações climáticas. Como se a questão climática tivesse servido de intermediário para pensar num conflito com a Rússia. Para a Alemanha, isto representa uma reviravolta estratégica fundamental. Até agora, a sua estratégia consistia em utilizar a compra de gás russo como alavanca para estabilizar as relações com este poderoso vizinho: ao tornarmo-nos interdependentes, pensávamos estar a neutralizar os riscos de conflito. 

Na teoria clássica das relações internacionais, o interesse mútuo do comércio é suposto atenuar os conflitos. A entrada da Rússia na guerra marcou o fracasso desta estratégia geopolítica. Daí a mudança de doutrina, aquilo a que os alemães chamam Zeitenwende, a “mudança de época”. Na prática, porém, continuamos a comprar gás russo. Até gastamos mais na compra de gás russo do que no fornecimento de armas à Ucrânia. O que sugere que o nosso apoio à Ucrânia é muito relativo: podemos estar a impedi-los de perder, mas não estamos a permitir que ganhem. É por isso que esta situação pode prolongar-se por muito tempo. Mas, em todo o caso, nas nossas mentes, a estratégia mudou. O objetivo é limitar o poder russo através de uma nova política energética. A ecologia está a tornar-se uma alavanca estratégica - é isso que é novo!

Em Abundância e Liberdade, mostrou as ligações entre a emancipação colectiva e a exploração dos recursos naturais. O contrato social moderno promete abundância e liberdade igual para todos, com base em ganhos de produtividade obtidos contra a natureza. Desta vez, explora a ligação entre a segurança internacional e as questões energéticas...
Desde 1945, as artes da paz têm-se baseado na apropriação dos recursos energéticos. É a chamada “paz fóssil”: promete-se às nações prosperidade e estabilidade internacional através da exploração dos recursos. A população recebe segurança económica, estratégica e militar através do aumento da pressão sobre os recursos. Tem funcionado. O petróleo e o carvão foram as melhores alavancas para eliminar o totalitarismo. 

O Plano Marshall foi, antes de mais, um plano de construção de infra-estruturas de combustíveis fósseis na Europa por parte dos Estados Unidos, que tinham petróleo para nos vender. E não é por acaso que o primeiro projecto europeu foi construído em torno do carvão e do aço. Como Robert Schumann está sempre a dizer, a maneira mais simples de impedir que a França e a Alemanha entrem em guerra é torná-las interdependentes através do carvão e do aço. Acrescentaria que o petróleo tem uma especificidade: os pontos de produção (Golfo Pérsico, Rússia, América Latina) não são exatamente os mesmos à escala mundial que os pontos de consumo (Europa, Estados Unidos, ontem; China, hoje). Por conseguinte, estas energias têm de circular através das fronteiras, em redes que criam interdependências económicas e materiais. Actualmente, estamos habituados a ver a Europa em paz. Mas a principal razão para esta paz são as infra-estruturas energéticas. Se olharmos para o ponto de partida da grande aceleração económica mundial, não foi na época da revolução industrial do século XIX, mas sim entre 1945 e 1950, no momento exacto em que a exuberância energética permitiu aliviar as tensões militares.

Desde 1945, as artes da paz têm-se baseado na apropriação dos recursos energéticos. É a chamada “paz fóssil”: promete-se às nações prosperidade e estabilidade internacional através da exploração dos recursos. A população recebe segurança económica, estratégica e militar através do aumento da pressão sobre os recursos. Tem funcionado. O petróleo e o carvão foram as melhores alavancas para eliminar o totalitarismo. O Plano Marshall foi, antes de mais, um plano de construção de infra-estruturas de combustíveis fósseis na Europa por parte dos Estados Unidos, que tinham petróleo para nos vender. E não é por acaso que o primeiro projeto europeu foi construído em torno do carvão e do aço. Como Robert Schumann está sempre a dizer, a maneira mais simples de impedir que a França e a Alemanha entrem em guerra é torná-las interdependentes através do carvão e do aço. Acrescentaria que o petróleo tem uma especificidade: os pontos de produção (Golfo Pérsico, Rússia, América Latina) não são exatamente os mesmos à escala mundial que os pontos de consumo (Europa, Estados Unidos, ontem; China, hoje). Por conseguinte, estas energias têm de circular através das fronteiras, em redes que criam interdependências económicas e materiais. Atualmente, estamos habituados a ver a Europa em paz. Mas a principal razão para esta paz são as infra-estruturas energéticas. Se olharmos para o ponto de partida da grande aceleração económica mundial, não foi na época da revolução industrial do século XIX, mas sim entre 1945 e 1950, no momento exato em que a exuberância energética permitiu aliviar as tensões militares.

Diria mesmo que, de um ponto de vista ecológico, o longo período de paz que existiu na segunda metade do século XX foi pior do que a guerra? Porque contribuiu mais para a destruição do planeta...
Sim, é preciso estar em paz para percorrer grandes distâncias de carro para trabalhar, para viajar ou para consumir. A paz destrói o planeta, porque a paz é necessária para o pleno desenvolvimento da sociedade de consumo. É o paradigma da estabilidade geopolítica que se estabeleceu depois de 1945 que conduziu ao Antropoceno e à crise climática. 

Aquilo a que o especialista em relações internacionais Thomas Oatley chama “A Paz de Carbono”. Isto não significa, obviamente, que a paz seja menos virtuosa do que a guerra, mas que há um custo ecológico para a paz tal como foi implementada em meados do século XX. Daí o grande desafio atual: como fazer a paz sem destruir o planeta? Para já, não sabemos como. A principal razão pela qual as políticas climáticas não avançam é o facto de continuarem a ser maioritariamente vistas pelos actores envolvidos como um risco, e não como uma condição, para a segurança nacional, apesar de, como dissemos anteriormente, ter havido alguma mudança.

A geopolítica do clima não coloca uma questão diferente para os países do Sul?

Para eles, como para nós, a aspiração à independência política exige a autonomia dos recursos. Mas estes países estão mais expostos aos riscos climáticos e são muito menos responsáveis pelas alterações climáticas do que nós. Por isso, é essencial que se envolvam na transição, apoiando o custo financeiro e tecnológico que esta representa para eles. 

Tomemos como exemplo um país como a Nigéria. Trata-se de um país produtor de petróleo, cuja economia depende inteiramente das suas exportações. Como os seus custos de produção de petróleo são elevados, à medida que avançamos para a descarbonização, perderá muito rapidamente quota de mercado - a sua principal fonte económica. Por isso, é necessário apoiá-los, caso contrário, o país afundar-se-á ainda mais na pobreza. É a mesma coisa com a Índia e o carvão. A economia indiana tem estado totalmente dependente do carvão desde a década de 1970. Não se pode pedir-lhes que o abandonem, porque todos os Estados soberanos defendem o seu modelo económico até terem um melhor à mão. É como pedir a uma família modesta que, no final do mês, não vá ao Lidl fazer as suas compras, mas sim a uma loja de produtos biológicos... É insustentável!

O senhor dedica algumas páginas muito interessantes à dissuasão nuclear. A energia nuclear é uma forma de energia muito perigosa do ponto de vista ecológico, mas tem sido objeto de cálculos estratégicos. Mas diz-nos que Thomas Schelling, o estratega que desenvolveu a equação da dissuasão nuclear, a transpôs para o clima...
Thomas Schelling não é muito conhecido do grande público. “Prémio Nobel da Economia” [ou Prémio do Banco da Suécia para as Ciências Económicas, em memória de Alfred Nobel], com ligações estreitas aos círculos governamentais americanos do pós-guerra, desenvolveu, nos anos 50, uma parte da doutrina americana de dissuasão nuclear. 

As armas atómicas”, explicou, ”transformam uma ameaça numa promessa. Embora nunca devam ser activadas, porque destruiriam o mundo, podem ser utilizadas como instrumento de negociação contra um rival estratégico, neste caso a URSS. Esta equação assume a seguinte forma: se não construirmos bombas suficientes, o rival pode ganhar vantagem; se construirmos demasiadas, corremos o risco de lhe parecer uma ameaça suscetível de desencadear um ataque defensivo.

Na Teoria de Jogos, o “ponto de Schelling” designa, portanto, o ponto de equilíbrio da ameaça que permitiu que a dissuasão funcionasse e garantisse a segurança das grandes potências na segunda metade do século XX. 

Schelling transpôs a sua equação para a economia climática. O seu raciocínio é: se não emitirmos carbono suficiente, estagnamos, não há empregos e não podemos fazer face às ameaças; mas se emitirmos demasiado, destruímos tudo. Portanto, também aqui, acredita, existe um ponto de equilíbrio que determina o custo óptimo do carbono. Isto é uma forma de dizer que existe racionalidade na gestão das ameaças. 

A visão algo negligente de Schelling sobre o risco climático colocou o seu ponto de equilíbrio demasiado alto. O seu aluno, William Nordhaus, especialista em economia climática e Prémio Nobel da Economia pela definição do custo do carbono, fixou este ponto de equilíbrio em 4°C. Atualmente, sabemos que este valor continua a ser demasiado elevado. Mas tiveram o mérito de formalizar a ameaça. E revelaram a continuidade epistemológica e política entre a construção da racionalidade atómica e a construção da racionalidade climática. Foram cálculos como estes que colocaram a questão climática na agenda global, e são estas formalizações que tiveram, e continuam a ter, o ouvido dos líderes políticos.

Na época da Covid, Bruno Latour via o confinamento globalizado como uma “boa notícia” para a ecologia, porque antecipava o tipo de decisão - descendente e colectiva - que teria de ser tomada para evitar a catástrofe ecológica. Não haverá um cinismo semelhante em regozijar-se com o facto de a ecologia ter entrado no jogo da rivalidade entre as potências e de o risco de catástrofe ter sido modelado?
Defendo um realismo assertivo e estou convencido de que, longe de ser uma porta de entrada para o cinismo, o realismo é, pelo contrário, o melhor antídoto para o cinismo. Em primeiro lugar, as lógicas do poder existem, estruturam a política, tal como a violência e o conflito e não vale a pena negá-las. É muito mais valioso compreender a lógica destas artes negras da política para as podermos explorar em nosso proveito. 

O que temos de evitar é que elas se degenerem e expludam. Para isso, temos de aprender a utilizá-las como base material para a mudança. Temos de jogar com as cartas que a história nos dá. A posição cínica consiste em defender o seu poder independentemente dos fins. É a posição da Rússia ou da Arábia Saudita, que venderão petróleo e gás até à última gota. A posição realista consiste em utilizar o poder para garantir a segurança colectiva. . A “paz fóssil” do pós-guerra combinava uma visão idealista e pacifista das relações internacionais, herdada de Rousseau e Kant, com a exploração maciça de combustíveis fósseis que forneciam o “combustível” para essa paz.

Com este modelo agora falido, propõe um regresso a uma visão realista...
O problema fundamental das relações internacionais sempre foi o de saber como as nações podem viver juntas numa Terra limitada. Este é o problema filosófico de base. Foram propostas duas grandes respostas. 

A primeira, que deu forma à ordem internacional liberal, sustenta que a coexistência pacífica é possível porque nos tornaremos interdependentes e adoptaremos regras e obrigações mútuas de direito internacional. É a paz através do comércio e do direito, através da indústria e da tecnologia. Este ideal modernizador foi inventado no século XVIII e defendido pelos britânicos e depois pelos americanos. Hoje em dia, está a ser bloqueado pela crise climática. Há uma segunda resposta. Foi formulada por Carl Schmitt, que defende que não só os conflitos nunca se estabilizam, como o ideal da paz e do comércio mundial é impossível, porque a escassez de terras nunca poderá ser ultrapassada, e que este ideal apenas alimenta a hegemonia de uma superpotência que se apresenta como árbitro das relações mundiais.

Está mais inclinado para Schmitt do que para Kant?
De maneira nenhuma! Carl Schmitt estava indignado com o facto de os Estados Unidos terem livre acesso às riquezas de um enorme bloco geoecológico (o continente americano), segundo a Doutrina Monroe, enquanto a Alemanha estava presa no centro da Europa. A única forma de se libertar era, portanto, a conquista a Leste, da qual Schmitt era apóstolo. Hitler estava fascinado pelo modelo americano; queria ser os Estados Unidos da Europa e subjugar o continente europeu. Para Schmitt, tudo dependia do problema fundamental da disponibilidade de terras, e a única saída era a guerra. A solução que pensávamos ter encontrado depois da guerra, com a paz do carbono, era pressionar os recursos - o que significava que não tínhamos de conquistar novos territórios. Arranhamos o solo. Os hectares fantasma de combustíveis fósseis permitem manter tudo unido, e a paz civil é conseguida à custa do planeta. Com o mesmo território, podemos tornar-nos mais poderosos e mais ricos, graças à energia e à tecnologia. Mas hoje estamos no fim desta história e um regresso a Schmitt não nos vai obviamente ajudar: Schmitt não tem o monopólio do realismo político.

Será que precisamos de um novo “Nomos da Terra”, no sentido de Schmitt?
Não sou schmittiano e Schmitt não me fascina. Mas ele tem razão em alertar-nos para o facto de não haver política sem geopolítica. Hans Morgenthau, o grande teórico das relações internacionais que teve de fugir da Alemanha nazi, é um modelo. Aceitou a premissa de Schmitt sobre o carácter trágico da política humana, que se desenrola sempre no horizonte da guerra e do poder, mas para ele era a igualdade de desenvolvimento entre as regiões do mundo que assegurava a estabilidade. Em 1945, avisou-nos de que a tecnologia, por si só, não nos poderia salvar da tragédia geopolítica.

Na sua opinião, como se articulam as questões ecológicas no seio das sociedades e entre as nações?
Em Abundância e Liberdade, tentei mostrar que a nossa ideia de liberdade e de paz civil se baseava na procura da abundância através da exploração de recursos. No meu último livro, tento mostrar que a nossa ideia de segurança também tem uma base energética. Esta é a mensagem central que tento transmitir: não podemos continuar a pensar em termos de paz civil e de paz entre as nações como se os constrangimentos energéticos não fossem um factor. Não podemos continuar a construí-los na inocência dos constrangimentos ecológicos globais. Temos de conceber um novo pacto social e geopolítico pós-combustível fóssil.

O novo pacto social e internacional que prevê passa pelo crescimento, como no passado? Ou através do decrescimento?
Talvez o surpreenda, mas penso que precisamos de um último grande boom de crescimento, combinando constrangimentos ecológicos, constrangimentos sociais e constrangimentos de poder. Uma última revolução tecno-industrial que envolva a electrificação geral, a modernidade ecológica e uma dose de sobriedade. Se as políticas climáticas forem consideradas apenas sob o ângulo da retirada, do decrescimento, nunca receberão o assentimento dos actores do poder nem das populações. 
Congratulo-me, por exemplo, por ver que os engenheiros das baterias eléctricas nos dizem que os automóveis do futuro poderão percorrer 2 000 quilómetros. Na minha opinião, isto é tão importante para a história como o facto de, em 1947 ou 1948, ter existido um terminal petrolífero no Havre e em Fos-sur-Mer. 

Numa altura em que os extremos estão a crescer em toda a Europa, em que apostam no ressentimento gerado por uma ecologia concebida como uma forma de fazer as pessoas sentirem-se culpadas, penso que isto é essencial. 

A arma antifascista mais eficaz do mundo é o autocarro elétrico, o comboio e as infra-estruturas urbanas de qualidade. Se colocarmos o maior número possível de pessoas num sistema de transportes económico e com baixo teor de carbono, criamos um enorme incentivo para acabar com a nossa dependência dos combustíveis fósseis.

philomag.com/pierre-charbonnier

September 07, 2024

Leituras de fim-de-semana - Doom scrolling

 

(não sei como traduzir esta expressão que é um trocadilho da expressão em língua inglesa do hábito negativo de deslizar continuamente o ecrã -scrolling- a ler notícias de desgraças e a referência aos pergaminhos antigos -scrolls- perdidos nos labirintos da História - é sobre este últimos que fala este ensaio)


Doom scrolling

por Justin Germain

Podemos estar perto de redescobrir milhares de textos que se perderam durante milénios. O seu conteúdo pode alterar a forma como compreendemos o Mundo Antigo.

Costumávamos jogar este jogo na pós-graduação: 'encontrar um, perder um'. 'Encontrar um' referia-se a encontrar um texto antigo perdido, algo que sabemos que existiu numa determinada altura porque outras fontes antigas falam dele, mas que se perdeu nos tempos. E se alguém estivesse a escavar algures no Egipto e encontrasse uma antiga lixeira greco-romana com uma cópia completa de um texto precioso - qual deles desejaríamos que sobrevivesse? 'Perder um' referia-se a termos um texto antigo e trocá-lo, num qualquer negócio faustiano para ressuscitar o tal texto antigo. 

É claro que há um pouco de efeito borboleta; foi isso que tornou tudo divertido. Como classicistas em início de carreira, crescemos num mundo académico onde não tínhamos A, mas tínhamos B. Quão diferente seria a erudição clássica se isso mudasse? Se tivéssemos tido sempre A, mas nunca B? Para mim, o texto que sempre escolhi encontrar foi um panfleto pouco conhecido que circulou no final do século IV por um rei espartano deposto chamado Pausânias. É um dos poucos textos sobre Esparta escritos por um espartano quando Esparta ainda era hegemónica. Perdi sempre o Evangelho de Mateus. É basicamente uma cópia de Marcos, até na gramática e na sintaxe. Precisamos mesmo de dois?

O que é que você escolheria? Imagine que a Ilíada e a Odisseia de Homero são apenas dois dos poemas que compõem o ciclo épico de oito partes; ou que Aristóteles escreveu um tratado perdido sobre a comédia, para não falar dos seus próprios diálogos socráticos, que Cícero descreveu como um “rio de ouro”; ou que apenas oito das cerca de 70 peças de Ésquilo sobreviveram. Até o Antigo Testamento hebraico faz referência a 20 textos antigos que já não existem. Há textos literalmente perdidos que, se os tivéssemos, teriam muito provavelmente entrado no cânone bíblico.
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Pode encontrar uma lista de textos que sabemos terem sido perdidos na página da Wikipédia, "Lost_literary_work"
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O problema é mais complexo do que o facto de muitos textos se terem perdido nos anais da história. A maioria das pessoas vê a tradução mais recente da Ilíada ou as obras de Cícero na prateleira de uma livraria e assume que estes textos foram transmitidos de uma forma bastante previsível, geração após geração: os escribas fizeram cópias, fielmente, desde a Grécia antiga até à Idade Média e, finalmente, com o advento da imprensa, foram disponibilizadas versões fiáveis destes textos no vernáculo da época e do lugar a todos os que os quisessem. O arco intelectual da história avança e sobe! Era o que eu também pensava.

Porém, o facto é que muitas das obras da Antiguidade, mesmo as mais famosas, têm uma história longa e complicada. Quase nenhum texto é descodificado facilmente; o processo de trazer traduções legíveis de textos antigos para as mãos dos leitores modernos requer a cooperação de académicos de várias disciplinas. Isto significa horas de trabalho árduo por parte daqueles que encontram os textos, daqueles que os preservam e daqueles que os traduzem, para mencionar apenas alguns. Mesmo com este empenho, muitos textos perderam-se - a estimativa habitual é de 99% - pelo que não temos cópias da maior parte das obras da Antiguidade. 

Apesar desta estatística preocupante, de vez em quando, descobre-se algo de novo. Essa promessa, de que algum texto proeminente do mundo antigo pode estar mesmo debaixo da próxima duna de areia, é o que tem preservado a paixão dos académicos em continuar a procurar na esperança de encontrar novas fontes que resolvam mistérios do passado.

O sofrimento dos estudiosos vtem alido a pena! Consideremos a Villa dos Papiros, onde no século XVIII foram descobertos centenas, se não milhares, de pergaminhos carbonizados nos destroços da erupção do Monte Vesúvio (79 d.C.), numa cidade chamada Herculano, perto de Pompeia. 

Durante mais de um século, os académicos esperaram que a ciência futura os ajudasse a ler estes pergaminhos. Só nos últimos meses - através de avanços na imagem computorizada e na revelação digital - conseguimos ler as primeiras linhas. Isto deveu-se, em grande parte, ao trabalho árduo do Dr. Brent Seales, ao apoio do Vesuvius Challenge e aos académicos que responderam ao apelo. Estamos agora preparados para ler milhares de novos textos antigos nos próximos anos.

Primeiro, um pouco de informação sobre a proveniência dos textos antigos. Não temos cópias originais de nada, nem da Ilíada, nem da Eneida, nem de Heródoto, nem da Bíblia. Em vez de originais, estamos a lidar com cópias. Estas foram escritas primeiro em rolos de pergaminho, mas depois em livros - os romanos chamavam aos livros códices - a partir do século I d.C.

Eu disse cópias? Na verdade, isso também não é correto. Não temos primeiras cópias de nada. O que temos são cópias de cópias, a maior parte das quais datam de centenas de anos depois de o original ter sido escrito. Mesmo muitas das nossas cópias não são cópias completas. 

Tomemos, por exemplo, a mais antiga peça sobrevivente do Novo Testamento: um fragmento do Evangelho de João conhecido como P52. Longe de ser uma cópia completa do livro, este fragmento tem aproximadamente o tamanho de um cartão de crédito e, data de 125 d.C., segundo as primeiras estimativas. Isto é, mais de 100 anos depois de Cristo ter sido crucificado. O fragmento é, sem dúvida, pelo menos uma cópia de uma cópia, porque a sua datação é demasiado tardia para ser um original ou uma primeira cópia. Além disso, foi encontrado no Egito, longe tanto da Judeia como da Síria, de onde se pensa que João é originário. Encontrar uma cópia completa de um texto - quanto mais de uma Bíblia cristã primitiva - é um feito inédito. Só encontrámos duas Bíblias deste tipo, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, ambos datados de meados do século IV.

Mais frequentemente do que encontrar essas cópias completas, os académicos compilam os vários fragmentos de cópias e tentam reconstruir a obra original. Quando chegam a acordo sobre o texto original - e, nalguns casos, nunca chegam a acordo -, o texto está pronto para ser publicado na língua original. 

Quando ainda existem variantes no texto, os académicos incluem um apparatus criticus, citando o manuscrito a partir do qual o texto é publicado e listando os manuscritos com leituras variantes. O último passo é acrescentar uma tradução em vernáculo, e há edições bilingues e até poliglotas. Estas podem ir desde a Bíblia Poliglota Complutense, uma magnífica obra de seis volumes impressa em Madrid em 1519, que apresenta o texto das escrituras em nada menos do que quatro línguas - grego, hebraico, latim e aramaico - até às populares edições Loeb, impressas com o texto antigo e uma tradução inglesa, para quem tem um conhecimento limitado das línguas antigas.

Para que o leitor se familiarize da melhor forma com o carácter ténue deste processo, este ensaio centrar-se-á em três textos diferentes. O primeiro será uma obra muito conhecida que nunca se perdeu. No entanto, quase ninguém a leu a sério até ao século XIX. Em seguida, abordarei um texto que se perdeu na história, mas que conseguimos recuperar dos anais do tempo. Estes exemplos são fortuitos. O nosso terceiro exemplo será um texto que sabemos ter existido, mas do qual não dispomos de cópias, e analisaremos as importantes ramificações que a sua descoberta poderá ter. Finalmente, voltaremos a nossa atenção para a Vila dos Papiros e para a mina de ouro de textos aí descobertos que as novas tecnologias estão actualmente a pôr à disposição dos classicistas. Ao examinar a história dos três primeiros textos, espero esboçar uma imagem de como as novas descobertas da villa poderão mudar a nossa compreensão do mundo antigo.

O primeiro texto que vamos analisar é a Política de Aristóteles. A Política é o tratado de Aristóteles sobre as várias estruturas de governo da Grécia dos séculos V e IV a.C. Na obra, Aristóteles analisa não só as constituições actuais, mas também as hipotéticas, como o Estado ideal de Platão, descrito na República (de que não era fã). A Política é um texto famoso e célebre, não só entre os classicistas, mas também entre o público culto. É onde se originam frases famosas como “O homem é por natureza um animal político”. É um texto cuja história é mais ou menos completa, contendo muito poucos buracos. Poder-se-ia pensar que um texto antigo tão famoso actualmente teria sido ainda mais famoso no passado. Mas a Política de Aristóteles é um contraponto clássico a essa suposição. Embora não seja exacto dizer que a Política, sendo uma das obras inéditas de Aristóteles, se perdeu, foi certamente redescoberta.

Em primeiro lugar, os escritos de Aristóteles dividem-se em dois grupos: obras publicadas e obras não publicadas. As primeiras são obras que Aristóteles escreveu para o público grego em geral e que foram distribuídas por esse público. As segundas são obras que foram escritas e restritas aos estudantes do Liceu, sede da escola peripatética que Aristóteles fundou em Atenas no final do século IV a.C.2 

Os escritos de Aristóteles eram limitados apenas pelos seus interesses e ele interessava-se por tudo: ciência, matemática, metafísica, biologia, política, lógica, música e astronomia. A Política foi uma das obras inéditas de Aristóteles. Plutarco e Estrabão testemunham que as obras inéditas de Aristóteles foram passando de director em director do Liceu até chegarem às mãos de um colecionador privado, Neleu de Scepsis. Foi aí que a biblioteca inédita de Aristóteles permaneceu, fechada numa cave, até que Apelicon de Teos descobriu os textos e os trouxe de volta a Atenas, onde Andrónico de Rodes os publicou em meados do século I a.C.3

No caso da Política, o conteúdo vinha das notas que os alunos tiravam nas aula de Aristóteles, ou das notas de um único aluno brilhante ou talvez de um livro de textos que Aristóteles escreveu sobre a disciplina e que se encontrava na biblioteca do Liceu. A obra só foi disponibilizada ao grande público grego com a publicação de Andrónico, por volta de 60-50 a.C.. 

Foi durante o chamado período helenístico, depois de o mundo se ter tornado pequeno na sequência das conquistas de Alexandre, o Grande. O grego era a língua franca de grande parte do mundo, o que significa que textos gregos como os de Aristóteles podiam ser apreciados por um vasto público. Foi também o início da era da ocupação romana da Grécia e da maior parte do Norte do Mediterrâneo. Os romanos da classe alta estavam desesperados por se familiarizarem com tudo o que era grego. A maioria dos patrícios falava e sabia ler grego e latim.

De um modo geral, o mundo grego e romano antigo eram platonistas e não aristotélicos. Isso significa que a teoria das formas de Platão, bem como a sua ênfase geral no metafísico e no eterno, tinha muito mais valor social e cultural, por oposição à filosofia muito fundamentada de Aristóteles, que lidava com o mecânico, mesmo quando abordava o metafísico. 

Por outras palavras, a cabeça de Platão estava sempre nas nuvens. Questões como “O que é o amor?”, “Existe vida após a morte?” e “O que é a vida boa?” dominavam a filosofia de Platão. Aristóteles preocupava-se mais com a forma como se escreve uma boa tragédia ou como as lulas se reproduzem. Essa é a grande diferença entre os dois filósofos. Platão preocupava-se sobretudo com o porquê, Aristóteles com o como. 

É sempre possível saber qual é qual quando se olha para a famosa Escola de Atenas de Rafael no Museu do Vaticano. Os dois filósofos estão lado a lado: Platão aponta para cima, para onde pensa que a humanidade deve concentrar a sua atenção, Aristóteles aponta para baixo, para a Terra. 

O domínio intelectual de Platão manteve-se durante a Idade Média. Aristóteles foi praticamente esquecido no Ocidente após o colapso do Império Romano. No entanto, o filósofo muçulmano Averroes (Ibn Rushd), que viveu na atual Córdoba, em Espanha, escreveu um extenso comentário aos escritos aristotélicos. Estes comentários acabaram por chegar a São Tomás de Aquino (1225-1274), a quem Aristóteles muito influenciou. Finalmente, cerca de 1500 anos após a sua redacção, a Política começou a ser amplamente lida e considerada como uma alternativa viável à República de Platão.

Tudo o que Aquino aprovava era tido em grande consideração pela Igreja Católica. A Igreja continuou a copiar e a preservar as obras de Aristóteles, incluindo a Política, até ao aparecimento da Imprensa Aldina em Veneza. 

Aldus Manutius, fundador da imprensa, publicou a Política em 1498. Mesmo depois dessa data, outros autores antigos, como Platão e Cícero, continuaram a ser preferidos a Aristóteles, mas nessa altura os filósofos políticos de elite da época já conheciam a Política. Só em 1832, com a publicação pela Academia Prussiana do corpus aristotélico de Berlim, é que a Política e Aristóteles em geral, ganharam notoriedade junto de uma faixa muito mais alargada do público culto. 

A história da Política tem muitas voltas e reviravoltas, mas é completa. Por outras palavras, podemos traçar uma linha recta desde a sua redacção original até às cópias, traduzidas para o vernáculo, na prateleira da livraria local. Além disso, a fama de Aristóteles hoje em dia é um testemunho da influência do homem e dos seus escritos. Não é preciso ser um estudioso dos clássicos, nem sequer ter um diploma universitário, para reconhecer a perspicácia intelectual que o nome Aristóteles evoca. 

No entanto, a história da Política é um exemplo claro e óbvio de como, mesmo quando tudo corre bem - o texto nunca desapareceu durante 500 anos e temos cópias completas em vez de fragmentos -, os textos podem entrar e sair de moda, pelo que o seu ressurgimento pode levar a várias redescobertas mais pequenas, como as críticas de Aristóteles ao Estado espartano, que eram amplamente desconhecidas antes da publicação prussiana (falaremos mais sobre isso mais tarde). 

Mesmo que a população culta saiba que uma determinada obra existe, se não for suficientemente procurada para exigir traduções, ou se essas traduções não estiverem prontamente disponíveis, está efectivamente perdida. A Política, foi “redescoberta” quando foi publicada pela primeira vez no mundo antigo, no século I a.C., e depois novamente por Tomás de Aquino, no século XIII. Foi reavivada com a publicação de Aldus Manutius. Mas só nos últimos duzentos anos, com a sua publicação pela Academia Prussiana, conheceu o auge do seu alcance e popularidade. Actualmente, é possível encontrar edições populares em quase todas as livrarias, geralmente traduzidas a partir do texto publicado pela Academia Prussiana.

Vejamos agora um texto com uma história muito diferente, a Hellenica Oxyrhynchia. A Hellenica Oxyrhynchia é o nome dado a um grupo de fragmentos de papiro encontrados em 1906 na antiga cidade de Oxyrhynchus, a moderna Al-Bahnasa, no Egito (cerca de um terço do caminho que desce o Nilo desde o Cairo até à barragem de Assuão). 

Estes fragmentos foram encontrados num antigo monte de lixo. Abrangem a história política e militar grega desde os últimos anos da Guerra do Peloponeso até meados do século IV a.C. Na sua obra Helénica, Xenofonte cobre exatamentce o mesmo período de tempo e muitos dos mesmos acontecimentos. Ambas as narrativas retomam o ponto de partida de Tucídides, o principal historiador da Guerra do Peloponeso (travada entre Atenas e Esparta no século V a.C.).

Embora não tenha sido identificado nenhum autor para a Hellenica Oxyrhynchia, a gramática e o estilo datam o texto da época dos acontecimentos que descreve. Trata-se de um texto recuperado, o que significa que estava completamente perdido na história e só foi descoberto no início do século XX. 

Aqui, a palavra descoberto é usada apropriadamente, uma vez que este não era um texto famoso nos tempos antigos. Nenhum historiador antigo lhe faz referência e não parece ter tido um impacto duradouro na sua época. O que é desdenhável no passado é esquecido no presente. 

O texto está escrito em grego ático. Isto implica que quem escreveu a Hellenica Oxyrhynchia deve ter sido uma elite suficientemente familiarizada com o popular estilo ático para o reproduzir, e provavelmente pretendia que a história fosse igual às de Tucídides e Xenofonte. Havia outros estilos disponíveis na altura, mas o grego ático era o estilo dos historiadores acima mencionados, bem como o estilo de escrita da elite originária de Atenas. Qualquer história que não fosse escrita em ático seria considerada inferior. Dado que a Hellenica Oxyrhynchia se perdeu durante milhares de anos, parece que o nosso autor falhou na sua tentativa de espelhar os grandes historiadores da Grécia clássica.

A Hellenica Oxyrhynchia serve para recordar que a descoberta moderna de textos antigos continua. Muitas vezes, trata-se de cópias adicionais de textos que já possuímos. Isto não quer dizer que essas cópias não sejam importantes. Foi o caso do já referido Codex Siniaticus, descoberto pelo biblista Konstantin von Tischendorf num cesto do lixo, à espera de ser queimado, num mosteiro perto do Monte Sinai, no Egipto, em 1844. Após uma análise mais aprofundada, Tischendorf descobriu que este “lixo” era, de facto, uma cópia quase completa da Bíblia cristã, contendo o mais antigo Novo Testamento completo de que dispomos. Uma grande discrepância é o facto de a famosa história de Jesus e da mulher apanhada em adultério - de onde provém a passagem frequentemente citada “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” - não se encontrar no Codex Sinaiticus.

No entanto, por vezes, é descoberto algo verdadeiramente novo para nós, que ninguém viu durante milhares de anos. No caso da Hellenica Oxyrhynchia, parece que ninguém olhava para este texto há pelo menos 1500 anos, talvez até mais. Este facto demonstra que existe sempre a possibilidade de, enterrado num qualquer monte de sucata antigo no deserto, estar um texto completamente novo que, uma vez publicado, aumenta consideravelmente o nosso conhecimento dos antigos.

Como é que este texto específico aumenta o nosso conhecimento? Não esqueçamos que, antes deste período da história grega, temos apenas um historiador por época. Heródoto é a única fonte de que dispomos para as Guerras Greco-Persas (480-479), e o já referido Tucídides retoma a partir daí e cobre rapidamente o clima político antes de iniciar a sua história propriamente dita com o advento da Guerra do Peloponeso em 431 a.C. 

Mas a história de Tucídides está inacabada - uma biografia antiga afirma que ele foi assassinado quando regressava a Atenas, por volta de 404 a.C. Muitos duvidam deste facto, citando provas de que viveu até ao início do século IV a.C. Seja como for, a sua narrativa termina abruptamente. Xenofonte retoma a história a partir daí e, mais tarde, Diodoro, que escreveu muito mais tarde, entre 60 e 30 a.C., apresenta-nos uma história mais breve deste período. Embora descrevam o mesmo período de tempo e muitos dos mesmos acontecimentos, estas duas fontes variam muito nas suas descrições de certos acontecimentos. Nalguns casos, fazem afirmações que se excluem mutuamente. Um dos historiadores deve ter-se enganado.

Durante séculos, o relato de Xenofonte foi o texto preferido. Isto não quer dizer que a história de Diodoro tenha sido descartada, mas quando as duas narrativas entravam em conflito, o testemunho de Xenofonte era o preferido. Isto deveu-se, em parte, ao facto de Xenofonte ter vivido durante os tempos sobre os quais escreveu, enquanto Diodoro viveu 200 anos depois destes acontecimentos da história grega. 

Imaginemos que existem dois relatos contraditórios da Batalha de Gettysburg de dois historiadores diferentes: um viveu e participou na guerra, enquanto o outro é um académico do século XXI que vive 150 anos depois dos acontecimentos que descreve. Discordam sobre elementos-chave da batalha. Em quem acreditar? Foi precisamente este o caso de Xenofonte e Diodoro. No entanto, assim que a Hellenica Oxyrhynchia foi publicada, corroborou a história de Diodoro muito mais do que a de Xenofonte, forçando os historiadores a reconsiderar a sua tendência para o mais antigo dos dois relatos.

Como estou sempre a dizer aos meus alunos, só porque um livro antigo diz que algo aconteceu, não significa que tenha acontecido. Nem significa que tenha acontecido da forma descrita no texto. Muitas vezes, deparamo-nos com narrativas concorrentes de textos antigos e, tal como alguém que analisa o ciclo de notícias nos tempos modernos, tendo em conta os preconceitos e as limitações de quem relata e tentando descobrir qual é a verdade, também os classicistas têm de comparar fontes e decidir quais são mais fiáveis do que outras. Não é mágico, nem é simples. Mas podemos construir uma narrativa mais completa e exacta do passado estudando diligentemente os textos que temos, procurando incansavelmente os textos que não temos e aplicando-nos impiedosamente ao princípio da procura da verdade nas nossas fontes antigas. As provas de corroboração fornecidas quando um novo texto é descoberto são um elemento fundamental desse processo. E isto para não falar dos textos que nos contam uma história completamente nova da Antiguidade, uma história para a qual não existem contemporâneos, como a Epopeia de Gilgamesh.

A Epopeia de Gilgamesh conta a história de Gilgamesh, o rei de Uruk - o Iraque moderno - e a sua busca pela imortalidade, ou, como ele diz, para escrever o seu “nome nos tijolos”. Pelo caminho, Gilgamesh conhece todo o tipo de pessoas estranhas, incluindo um homem selvagem chamado Enkidu, que só é finalmente domesticado depois de Gilgamesh contratar uma prostituta para dormir com ele, e o homem mais velho vivo, Utnapishtim, que sobreviveu a uma grande inundação que cobriu o mundo inteiro. 

A descoberta deste texto no século XIX - encontrado gravado em tábuas na antiga cidade de Nínive - causou uma grande controvérsia, uma vez que aqueles que procuravam desacreditar o relato bíblico da arca de Noé dispunham agora de um documento a partir do qual a história bíblica era, segundo eles, plagiada. Mas aqueles que procuravam simultaneamente validar o relato tinham agora uma fonte, muito mais antiga do que o texto do Génesis, que corroborava a saga de Noé.

Para os nossos textos finais, escolhi um que me é caro, regressando a um autor anterior: a Constituição dos Espartanos de Aristóteles. Trata-se de uma obra que foi atestada muitas vezes por autores antigos, pelo que sabemos que existiu, mas falta-nos um único fragmento dela. Esparta sempre foi um objeto de fascínio. Apesar da popularidade da antiga Esparta, sabemos muito pouco sobre a cidade-estado. Não temos textos escritos sobre Esparta por espartanos. Todos eles foram escritos por estrangeiros, na sua maioria atenienses, na sua maioria inimigos de Esparta. Heródoto, que conta a história dos 300, não era espartano. Nem Tucídides; pelo contrário, lutou contra eles na Segunda Guerra do Peloponeso.

Imaginemos um universo alternativo em que todas as fontes sobre a América foram escritas por soviéticos no auge da Guerra Fria. Os historiadores do futuro poderiam ter uma noção distorcida da realidade. É exatamente esse o caso da antiga Esparta. Além disso, como o tesouro dos espartanos era a sua cultura e não a sua arte ou edifícios, há muito pouco que a arqueologia nos possa dizer sobre a forma como os espartanos viviam. 

Tucídides explica melhor esta questão quando, no início da sua História da Guerra do Peloponeso, afirma que os historiadores do futuro terão dificuldade em acreditar que Atenas era vista como a mais desfavorecida e Esparta como a grande favorita, quando considerarem os grandes templos e ágoras de Atenas, em justaposição com as infra-estruturas pouco desenvolvidas de Esparta. Mas nem todas as infra-estruturas são físicas ou deixam vestígios materiais. A cidade de Esparta não possuía uma muralha defensiva na época clássica. No entanto, de acordo com os Ditos dos Espartanos, de Plutarco, os homens eram a sua muralha. Por isso, ao estudar Esparta, temos apenas o registo escrito para nos guiar.

Por último, os próprios espartanos tinham um incentivo para perpetuar histórias que apoiassem a sua reputação de guerreiros invencíveis. Se pensavam que podiam entrar em guerra com Atenas, e sabiam que os atenienses pensavam que estavam loucos, porquê despojá-los dessa crença? Isto é conhecido pelos historiadores como a «miragem espartana». A miragem era ainda mais proeminente nos tempos antigos porque muitos dos gregos e romanos posteriores eram laconifilistas, ou seja, amantes de Esparta. 

É isto que tornaria a Constituição de Aristóteles tão útil. Embora ainda fosse um forasteiro, Aristóteles escreveu sobre o Estado espartano na Política e não tinha boas coisas a dizer. É seguro assumir que, independentemente do que dizia a Constituição de Aristóteles, o seu testemunho não foi influenciado pela miragem espartana, dando-nos talvez uma imagem mais exacta da vida dentro da cidade-Estado.

Cerca de 500 anos após a Constituição dos Espartanos de Aristóteles, o antigo biógrafo Plutarco afirma ter visitado os arquivos de Esparta. Plutarco não era um historiador. Como biógrafo, o seu principal interesse era contar uma história convincente do seu objeto de estudo. Mas na ausência de uma etnografia dos espartanos, Plutarco preenche as lacunas. O historiador Richard Talbert considera que a Constituição de Aristóteles é a principal fonte de Plutarco, mais do que a obra homónima de Xenofonte, o mais antigo e mais completo tratado sobre o governo e a cultura espartanos, que sobreviveu até aos nossos dias.

Embora não seja um contemporâneo exacto dos tempos que descreve, Xenofonte viveu apenas uma geração depois e viu Esparta no auge da sua glória antes de começar a declinar. No seu relato, Xenofonte tenta explicar a um público grego mais vasto que tipos de hábitos e práticas culturais permitiram aos espartanos “dominar toda a Grécia, apesar de serem o mais pequeno dos Estados gregos”, tais como o sistema de educação pública, denominado agoge, a vida em comunidade e os casamentos não monogâmicos. 

Se Talbert estiver correto, isto significa que a obra perdida de Aristóteles foi a fonte primária para o que veio a ser uma das obras mais autorizadas sobre a antiga Esparta: a biografia de Plutarco do legislador espartano Licurgo. Esta biografia constitui grande parte do que sabemos sobre Esparta. Mas é um texto confuso, contradizendo-se em muitos pontos importantes. Além disso, é uma biografia, e não uma história ou um tratado político, e faz algumas afirmações ultrajantes que muitos académicos modernos consideram pouco convincentes.

Por exemplo, a herança de propriedades. Plutarco afirma que todos os espartanos homens recebiam do Estado uma parcela de terra para se sustentarem a si próprios e às suas famílias. Quando o homem morria, essa parcela regressava ao tesouro do Estado e era redistribuída. Mas Stephen Hodkinson considera que isto é um disparate, não só porque está drasticamente desfasado da época, mas também porque é contrariado por outras fontes antigas, entre as quais o próprio Aristóteles.

 Outro exemplo é o do agoge. Enquanto Plutarco pinta um quadro em que os pais abdicam completamente dos direitos individuais dos filhos para serem educados pelo Estado, Nigel Kennell cita numerosos diários de viagem que mostram que os filhos dos espartanos viajavam com os pais e passavam muito tempo com eles durante o ano. Dificilmente a educação rigorosa e de estilo militar que Plutarco sugere.

Muitas das afirmações mais radicais de Plutarco são rejeitadas por historiadores que acreditam que ele estava cego pela «miragem espartana». É também um facto que ele escreveu quase meio milénio depois da hegemonia de Esparta. Mas se a Constituição de Aristóteles fosse encontrada, e se corroborasse o relato de Plutarco sobre a vida espartana, poderia fazer por Plutarco o que a Hellenica Oxyrhynchia fez por Diodoro. Seria um divisor de águas nos estudos espartanos.

A Constituição dos Espartanos, de Aristóteles, não é o único texto deste género. Conhecemos dezenas de dramaturgos gregos famosos na Antiguidade, mas de cuja obra não dispomos de um único fragmento. E a história de Alexandre, o Grande, escrita por Ptolomeu? Sabemos que escreveu uma, porque Arriano, que escreveu a única história completa de Alexandre de que dispomos, afirma tê-la usado como fonte. O que dizer da grande cultura dos cartagineses, cuja poesia e filosofia, segundo nos dizem, estavam por todo o Mediterrâneo antes da destruição final da cidade por Roma e do apagamento da sua cultura em 146 a.C.? O que poderíamos aprender sobre as Guerras Púnicas se encontrássemos uma história cartaginesa do conflito? Que mais poderá estar à nossa espera e como poderá contribuir para a nossa perceção da história antiga?

Por muito que tenhamos discutido a nossa sorte em preservar e encontrar textos antigos, o facto de termos uma cópia física da obra é apenas metade da batalha. Ainda é preciso ler livros e pergaminhos que têm tendência a desfazer-se em pó mal são abertos. Para isso, recorremos ao tesouro de textos encontrado na Villa dos Papiros. 

Em 1750 d.C., um agricultor italiano saiu para cavar um poço. Descobriu um chão de mármore. Avisou as autoridades italianas e, em poucos dias, o campo em que estava a trabalhar estava repleto de académicos. O que o agricultor tinha descoberto, sem querer, eram os restos de uma elegante villa na antiga cidade romana de Herculano, uma das cidades soterradas por um dilúvio de cinzas quando o Vesúvio entrou em erupção em 79 d.C.

Embora a villa fosse uma cornucópia de arte e arquitetura romana antigas, o tesouro mais abundante encontrado enterrado no campo era uma biblioteca completa com mais de 1800 livros e pergaminhos. Daí o nome. 

Esta continua a ser a maior descoberta individual de escritos antigos até à data. Em particular, muitos dos textos foram identificados como sendo da autoria de Epicuro, um filósofo grego do final do século IV e início do século III. Os seus famosos tetrapharmakos, as quatro drogas, ou quatro diretrizes para viver uma vida feliz, foram aí descobertos. 

Muitos dos pergaminhos estavam danificados e há muitos mais que não foram decifrados. Mas esses pergaminhos e recursos provaram ser inestimáveis para a construção das porções maiores da obra de Epicuro que ainda restam. Antes desta descoberta, tudo o que tínhamos de Epicuro eram três resumos da sua obra através de Diógenes Laércio nas suas Vidas e Ditos de Filósofos Célebres. O nosso conhecimento de uma das maiores e mais vibrantes escolas de pensamento filosófico, tanto entre os gregos como entre os romanos, estaria muito comprometido se não fosse o nosso agricultor fortuito e a sua necessidade de um poço.

No entanto, muitos dos pergaminhos da Villa dos Papiros permanecem não só por ler, mas também por abrir. Isto deve-se ao facto de a erupção do Vesúvio ter deixado os pergaminhos carbonizados, tornando quase impossível abri-los. Apesar deste obstáculo, o Dr. Brent Seales foi pioneiro de uma nova tecnologia em 2015 que lhe permitiu, a ele e à sua equipa, ler um pergaminho sem o abrir. A técnica, que utiliza a tomografia de raios X e a visão por computador, é conhecida como desdobramento virtual e foi utilizada pela primeira vez num dos famosos Pergaminhos do Mar Morto, especificamente o Pergaminho En-Gedi, a mais antiga cópia conhecida do Livro do Levítico (provavelmente 210-390 d.C.). 

Os raios X permitem que os académicos criem uma cópia virtual do texto que pode ser lida como qualquer outro documento antigo por aqueles que possuem os conhecimentos linguísticos e paleográficos adequados. Utilizando a técnica do Dr. Seales, os académicos conseguiram carregar muitos dos textos online. Um grupo de doadores liderado por Nat Friedman e Daniel Gross ofereceu prémios em dinheiro a equipas de classicistas que conseguissem decifrar os escritos. A corrida para ler os pergaminhos virtualmente desembrulhados é conhecida como o «Desafio do Vesúvio».

Ao democratizar a tradução destes textos, o desenrolamento virtual criou uma espécie de Oeste Selvagem para os académicos, permitindo-lhes perseguir uma glória duradoura no terreno e uma não pequena quantia de dinheiro enquanto competem para traduzir os pergaminhos. O primeiro prémio em dinheiro foi reclamado no ano passado, e há muitos mais pergaminhos para traduzir e prémios para reclamar.

Há também que ter em conta o seguinte: a villa não está totalmente escavada. Isto significa que há grandes porções da villa que ainda não foram desenterradas e não sabemos o que mais poderá estar lá enterrado. Apesar de o local ter sido descoberto em 1700, as escavações encontraram novas secções da casa, primeiro na década de 1990 e depois novamente em 2007. 

Até à data, os arqueólogos estimam que ainda restam 2.800 metros quadrados por descobrir. Mesmo se considerarmos apenas o que já temos da biblioteca, há muitos pergaminhos ainda por desenrolar virtualmente e depois ler. Nos últimos dias após a redação deste artigo, foi anunciado que um dos pergaminhos revelava a localização do túmulo de Platão. Quem sabe o que mais poderá estar escondido entre os pergaminhos da Villa dos Papiros e, uma vez traduzido e anexado ao corpus mais vasto da literatura antiga, o que isso nos poderá ensinar sobre o mundo antigo. Uma cópia da Constituição dos Espartanos, de Aristóteles, pode até estar entre os pergaminhos, à espera de ser traduzida.

Ressuscitar os mortos é difícil; Jesus sabia-o. E a única razão pela qual sabemos que ele sabia disso é o facto de a Igreja considerar a preservação das Escrituras como um dever fundamental. Não há um único fragmento de texto do mundo antigo que tenha chegado até nós sem que um número incalculável de heróis tenha trabalhado silenciosamente para transmitir, de geração em geração, os textos que moldaram principalmente o mundo moderno. 

Estamos gratos por documentos como a Política, documentos cujo ciclo de vida podemos narrar desde a concepção até ao momento actual. Mesmo assim, esses textos podem entrar e sair de moda, e o seu conhecimento pode perder-se para gerações inteiras. Textos como a Oxyrhynchia Helénica são frutos da sorte, porque são completamente esquecidos no seu tempo, e depois perdidos uma segunda vez para a história, enterrados num qualquer monte de lixo egípcio antigo. Todo o trabalho necessário para tornar acessíveis textos como a Política tem de ser feito também para textos como a Oxyrhinchia Helénica.

Mas há ainda um outro passo monumental: os textos têm de ser descobertos. Em comparação com os dois primeiros grupos, há textos - como a Constituição dos Espartanos, de Aristóteles - que foram atestados por fontes antigas, mas que se perderam completamente nos anais do tempo, como a grande maioria dos textos gregos e latinos. 

Estas fontes, embora agora completamente indisponíveis para nós, podem ainda ser descobertas em qualquer altura, em qualquer cave. Num qualquer dia, a terra pode conceder a sua bênção, pondo a descoberto maravilhas do passado, como foi o caso de muitas das obras de Epicuro, que teriam caído nesta última categoria de obras perdidas, até descobrirmos a Villa dos Papiros. 

Mas mesmo uma descoberta tão fortuita não poderia ser aproveitada se não fossem desenvolvidas novas técnicas de leitura de pergaminhos cuja sobrevivência depende do facto de não serem abertos. Digo sempre aos meus alunos de grego e latim que há um ponto em que a ciência da tradução se torna pura arte. Da mesma forma, há um ponto em que a recuperação, a tradução, o restauro e, finalmente, o estudo de textos antigos se torna numa procura de tesouros. Nunca se sabe que tesouro pode estar escondido no próximo monte de lixo egípcio antigo.