"Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim como um frio no corpo, ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver.
Todos os outros cadáveres podem ser ilusão.
Todos os mortos podem ser vivos noutra parte.
E todos os meus momentos passados podem existir algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
[...] Se em certa altura
[...] Se em certa altura
Tivesse voltado à esquerda em vez de à direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não — ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro...
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje — e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Nem pensei em virar — e só agora o percebo.
Mas não disse não, ou não disse sim — e só agora vejo o que não disse.
As frases que faltaram nesse momento surgem-me agora,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?”
(Vila dos Poetas · Áudio original)
De tudo o que fiz - e muito podia ser outra coisa - só duas realidades permanecem. Perfeitas na sua imutabilidade: os filhos e a profissão. E, curiosamente, parecem-me tanto!
ReplyDeleteEm nada fui especial; não me destaquei em qualquer sector; mais de metade da vida gastei-a em tarefas menores e a elas me dediquei como se maiores; amei quem me rodeava como pude, imperfeitamente; o meu coração é decerto o ponto fraco de todos os elos: engana-se, ama quando não deve, provoca-me, causa danos talvez irreparáveis e nunca desejados. Mas é com ele que amo família e amigos, com ele os sinto e sei quando sou demais e me retiro em silêncio, deixo espaço para outra gente, outras amizades, outros amores. É uma luta constante contra certo poder absorvente e primordial que o habita. Assim se gasta a vida.
Gostei do poema de Álvaro de Campos. E do vídeo.
Bom dia, Beatriz
Não vejo nada "perfeito na sua imutabilidade", nem o quereria. Isso significaria que tinha ficado presa dogmaticamente a um momento, na ilusão da sua perfeição e não ter sido capaz de amar a sua realidade.
DeleteO amor aos filhos é como o amor à vida, é constante e não desaparece, mas não é perfeito nem imutável. É vital. Passa por momentos de euforia, desgosto, estagnação, etc.
Não percebo o conceito de 'amei quem não devia' como se o amor fosse uma carta de deveres e haveres e tenha ficado desiludida por não ter havido retorno em lucros. Se calhar não houve investimento do tal coração que idealiza o imutável, não como vida mas como petrificação.
Seja como for, a minha interpretação deste poema vai mais no sentido da angústia de Wittgenstein de não conseguir conceber alguém (ele próprio) totalmente em paz com as suas próprias falhas - não com as dos outros.
Bom dia :)
DeleteNão entendeu nada do que eu queria dizer. Mas tá bem. Foi imperfeita expressão, a minha.
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