August 12, 2025

Portugal: perseguir o mérito e promover a mediocridade.




A extinção “velada” da carreira académica no SNS: carta aberta à ministra da Saúde

Manuel Pestana

Chegou-se a um ponto em que a prossecução de uma carreira académica não só deixou de ser valorizada como uma mais-valia na carreira médica, como passou a ser discriminada de forma negativa.

As instituições de saúde universitárias que desenvolvem uma missão tripla e integrada de assistência médica, ensino e investigação são mais-valias indiscutíveis para os sistemas de saúde dos países em que se inserem, em todo o mundo desenvolvido.

Em Portugal, os hospitais universitários e, mais recentemente, as Unidades Locais de Saúde (ULS) de “cariz” universitário surgiram com a atribuição dessas designações a infraestruturas do Serviço Nacional de Saúde (hospitais EPE e centros de saúde), pretendendo-se que, por essa via, passariam a estar habilitadas, por decreto, a concretizar com eficácia uma missão tripla, para a qual não foram objetivamente criadas, umas, e da qual se foram progressivamente afastando com o tempo, outras, em consequência da evolução dissociada a que se assistiu entre as instituições de saúde e as do ensino superior em Portugal, ao longo das últimas décadas.

Testemunha paradigmática dessa dissociação é a legislação portuguesa que regulamenta a articulação entre as instituições de ensino superior com as instituições hospitalares ou outras dependentes do Ministério da Saúde, a qual nunca foi atualizada desde que foi publicada, há mais de 40 anos, apesar da profusão de alterações que se têm verificado, ao longo das últimas quatro décadas, na legislação que regulamenta quer as carreiras médicas, quer o funcionamento das instituições de saúde.

As consequências desta dissociação são sobretudo sentidas nos hospitais e ULS de “cariz” universitário, que não estão minimamente articulados com as faculdades de Medicina clássicas (de Lisboa, Coimbra e Porto), ao nível da governação de topo. Paralelamente, todas as prerrogativas contidas na legislação da saúde que valorizavam a carreira académica dos médicos responsáveis pela desejada missão tripla inerente aos hospitais e ULS de “cariz” universitário foram sendo progressivamente eliminadas ao longo dos últimos 40 anos. Assim, chegou-se a um ponto em que a prossecução de uma carreira académica por concurso público não só deixou de ser valorizada como uma mais-valia na carreira médica, como passou a ser paulatinamente discriminada de forma negativa, como se de uma perversão indesejável se tratasse.

Expoente dessa discriminação negativa é hoje testemunhado por orientações emanadas da tutela da Saúde, quando instruem as direções dos recursos humanos dos referidos hospitais (e ULS) de “cariz” universitário, no sentido de pressionarem os médicos com carreira académica a abdicar da carreira docente, descartando-a pura e simplesmente. Espantosamente, estas instruções não têm autor conhecido, nem constam do texto de nenhuma orientação escrita, o que não deixa de ser ao mesmo tempo revelador da situação a que se chegou, em que por manifesto desconhecimento da realidade se persegue o mérito e promove a mediocridade.

Porque acredito nas boas intenções do Governo, valeria a pena começar por assumir que essa conciliação nunca poderá ser atingida pressionando os profissionais com vertentes clínicas e académicas a cessar qualquer uma das duas carreiras

Por reconhecer a existência de “consequências comprometedoras para o Serviço Nacional de Saúde, para o ensino médico e para a investigação e inovação clínica em Portugal”, decorrentes da “ausência de um enquadramento jurídico específico das ULS de cariz universitário”, o Governo anterior nomeou uma Comissão Técnica Independente para as ULS Universitárias, cujo relatório final, aprovado por unanimidade, advoga a sua “transformação em Centros Clínicos Universitários”, objetivo este que consta do programa do atual Governo, como projeto de “Inovação na Saúde”.

Porque acredito nas boas intenções do Governo, quando manifesta o desejo de promover uma convergência estratégica entre a assistência clínica, a formação académica, a investigação científica e a inovação nos hospitais de cariz universitário, através de uma “articulação mais adequada e eficaz das funções e carreiras de profissionais com vertentes clínicas e académicas”, valeria a pena começar por assumir que essa articulação e conciliação nunca poderão ser atingidas pressionando os profissionais com vertentes clínicas e académicas a cessar qualquer uma das duas carreiras.

No comments:

Post a Comment