August 21, 2025

Livros - Uma entrevista muito interessante com Pedro Paixão

 


Lembro-me de Pedro Paixão como professor de Filosofia. Dava uma cadeira de Filosofia Contemporânea e foi ele que me pôs interessada em Marx e Hegel, por exemplo e foi com ele que aprendi a gostar de Wittgenstein. Pelos vistos, agora interessa-se mais por teologia que por Filosofia. Quando publicou o primeiro livro fui comprar, esperando encontrar o professor de Filosofia, mas o livro era outra coisa muito diferente e perdi o interesse. Agora esta entrevista sobre o seu novo livro, Desvio da Memória - Anotações sobre a Destruição dos Judeus Europeus, despertou-me novamente o interesse.

Pedro Paixão: “O judaísmo não é propriamente uma religião, é uma forma de vida

O escritor fez uma longa viagem a Auschwitz, cumprindo um percurso histórico e cultural com imensas estações. O resultado: Desvio da Memória, difícil de classificar quanto ao género.

António Guerreiro (entrevista)

Pedro Paixão é um escritor que teve um imenso sucesso nos anos de 1990, quando se estreou com o romance A Noiva Judia. Uma categoria narrativa que, sobretudo em França, tem conhecido nos últimos anos um considerável sucesso, a chamada autoficção, serve parcialmente para classificar a produção romanesca de Pedro Paixão que obteve na época uma larga difusão. Era então colocada, de maneira quase unânime, numa categoria a que se dava o nome, hoje obsoleto, de “literatura light”. O que, de resto, não coincidia bem com a cultura sofisticada do seu autor e as suas confessadas preferências literárias.

Lendo hoje com atenção, talvez essa produção seja menos light do que parecia e seja dotada de uma autoconsciência literária que a resgata dessa suposta leveza. Há quem recorde Pedro Paixão como professor de Filosofia na Universidade Católica e depois na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; outros, recordam-no certamente como um dos fundadores do jornal O Independente, ao lado de Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, muito embora se tenha desvinculado muito cedo dessa publicação e do seu círculo; outros ainda, recordá-lo-ão como fotógrafo, cuja obra foi mostrada em exposições e livros; poucos, porém, terão dado pela sua produção vasta, em vários géneros, que nunca foi interrompida, mas seguiu caminhos muito mais discretos do que aqueles que marcam o início da sua carreira literária.

Com Desvio da Memória, um imenso volume de cerca de 800 páginas que tem como subtítulo Anotações sobre a Destruição dos Judeus Europeus, o escritor apresenta-se sob a roupagem de um historiador, de um investigador de factos, lugares, figuras e episódios históricos que fazem parte de uma constelação que tem no seu centro a Catástrofe (assim, com letra maiúscula, como surge no livro) que o nome de Auschwitz evoca.

Desvio de Memória é um conjunto enorme de textos que são como uma viagem histórica e, muitas vezes, um exercício de elaboração interpretativa. Fornece-nos um manancial de informação, muitas vezes em registo narrativo ou até romanesco, que tem tanto de historiográfico como de memória. Este livro penetra fundo nos territórios sombrios da história europeia do século XX e contribui com um conceito, o de “desvio da memória”, para aquele campo de estudos que, na língua inglesa, se chama memory studies. O judaísmo, a história e a geografia da cultura judaica, assim como a exegese de alguns episódios do Antigo Testamento, são uma matéria fundamental deste livro que combina erudição e investigação com narrativas daquilo a que se pode chamar viagem crítica e sentimental pelos “tempos sombrios” e seus prolongamentos da história europeia do século XX.

Comecemos exactamente pela primeira frase do seu livro: “Em Agosto de 2010, decidi ir a Auschwitz.” Esta frase leva-nos a pensar que o livro é a narrativa de uma viagem a um lugar muito especial. Mas afinal a dimensão narrativa está quase ausente.
É antes uma viagem no tempo, uma viagem histórica.

No fundo, é uma viagem por uma constelação de lugares de memória que tem Auschwitz no centro. O que motivou a decisão de lá ir?
Não sei responder. Foi uma coisa repentina. Tinha acabado de fazer uma exposição de fotografia que correu muito mal. Desde os meus 18 anos que me interesso pelo acontecimento do qual Auschwitz é o nome. Mas nunca me tinha passado pela cabeça lá ir, nem sabia bem localizá-lo geograficamente.

Todos os textos que integram o livro foram escritos depois da viagem?

Todos. Fui-os escrevendo ao longo de 12 anos. Tive de ler e estudar muito, estudar muito. Não sou historiador, nem este é um livro de História, mas os factos que descrevo são confirmados por fontes que considerei seguras, confiáveis.

A tão problemática e consagrada dicotomia história/memória e a vaga memorial que lhe corresponde entram aqui em força...
Muito especialmente através daquilo a que chamo “desvio da memória”, que é uma maneira de enganar, de deturpar, muito embora utilizando factos verdadeiros.

Trata-se de construções fraudulentas da memória e da história?
Sim. No caso de Auschwitz, a Igreja Católica, ao tentar cristianizar o Holocausto, ao tentar colocar-se do lado das vítimas, procura negar a responsabilidade inegável que teve no anti-semitismo europeu e esconder o apoio que os seus mais altos dignitários tiveram na subida ao poder de Hitler e na consolidação do regime, sobretudo através da Concordata, que foi assinada entre o Vaticano e o Estado alemão seis meses depois da subida ao poder de Hitler, em Julho de 1933. As homilias, tanto de João Paulo II como de Bento XVI em Auschwitz, são nitidamente desvios da memória que me chocaram.

Em nenhum momento a Igreja Católica Romana reconheceu a sua responsabilidade?
Nunca. Tenta sempre pôr-se do lado das vítimas. Veja-se como explora dois casos de que falo no meu livro: o do padre Maximiliano Kolbe e o de Edith Stein, uma judia convertida ao cristianismo. Ela foi morta em Auschwitz, tal como a sua irmã Rosa, não por ser uma freira católica, mas por ser judia. A classificação como judeu não dependia da religião que se tinha, dependia do sangue que corria nas veias. Quanto ao padre Maximiliano Kolbe, ele foi de facto assassinado em Auschwitz quando Auschwitz era ainda só um campo para prisioneiros polacos e soviéticos. Não havia judeus sequer. Só alguns meses mais tarde é que é inaugurado o campo de morte de Auschwitz-Birkenau. A canonização do padre Maximiliano como santo e mártir, por supostamente se ter oferecido para substituir um prisioneiro (mas a versão da Igreja é enganosa, e perceber isso chocou-me), não é senão um acto para tentar cristianizar o Holocausto.

Como descreve a sua experiência de visitar o campo de Auschwitz transformado num memorial?
Não senti quase nada. Fiquei um pouco chocado ao ver que o campo estava transformado num sítio turístico. As pessoas que lá vão não fazem a mínima ideia do que estão a ver.

Mas esse quase-conceito de desvio da memória pode ter utilizações mais banais, em contextos diferentes?
É algo que eu próprio faço, às vezes. Por exemplo, quando digo que a minha mãe é americana. É um facto que a minha mãe tinha a naturalidade americana por ter nascido nos Estados Unidos. Mas de facto não era americana, era filha de emigrantes portugueses e voltou para Portugal aos 11 anos. Não gostava de falar inglês, preferia o francês, e não falava dos Estados Unidos. Quando eu digo a alguém que a minha mãe é americana, estou a dizer uma verdade, mas estou a enganar porque levo o meu interlocutor a ter uma série de expectativas quanto à minha mãe americana que não correspondem à realidade.

A memória é enganadora. Por isso é que a historiografia sempre teve uma suspeita em relação a ela...
A memória é parcial, tendenciosa, e até muitas vezes falaciosa. E muda com o tempo. Mas o desvio da memória é diferente, há uma intencionalidade de enganar.

É disso de que acusa fortemente, em muitos dos textos deste livro, a Igreja Católica. E o protestantismo?
Os protestantes não se portaram melhor do que os católicos, mas, como os protestantes estão divididos em várias denominações, não há aquela unidade da herança católica. Lutero julgou que, com a sua reforma, os judeus pudessem converter-se ao cristianismo, mas quando viu que isso não aconteceu tornou-se violentamente anti-semita e escreveu um dos textos anti-semitas mais violentos que alguma vez foram escritos, sobre “a mentira dos judeus”.

Curiosamente, numa página do seu livro refere-se ao filósofo austríaco Otto Weininger, um judeu que é um exemplo extremo de jüdische Selbsthass, do ódio do judeu por si próprio, por ser judeu.
Weininger, que escreveu Sexo e Carácter, um livro furiosamente anti-semita e misógino, mas que é ao mesmo tempo genial e terrível, suicidou-se aos 23 anos, em Viena, na casa onde Beethoven tinha morrido. Esse livro, publicado em 1903, teve uma enorme influência, na sua época.

A sua recepção atravessou fronteiras. Em Itália teve um enorme sucesso. Mas regressemos à sua “ida” a Auschwitz. Que preparação prévia a determinou? Tudo começa certamente numa relação com o judaísmo...
Sem dúvida, desde muito novo. Em todos os meus livros de ficção, há sempre alguma história que tem que ver com o judaísmo. Depois do 25 de Abril pertenci a um partido que era o MES [Movimento de Esquerda Socialista]. Quando saí do MES, uma das minhas ideias era ir para Israel e inscrever-me nas IDF, as Forças de Defesa Israelitas.

Mas esse interesse pelo judaísmo é de ordem intelectual e cultural. Não se trata de uma profissão de fé religiosa...
Sim, é isso. Entre os meus autores preferidos estão o Proust e o Kafka, que são judeus. E também Isaac Bashevis Singer, que foi Prémio Nobel. Ele passou por Lisboa quando emigrou da Polónia para os Estados Unidos e conta uma conversa que teve com um taxista lisboeta. A presença dos judeus na cultura europeia é de uma enorme proporção. Freud era judeu, mas era anti-semita, de certa maneira. O seu último livro, Moisés e a Religião Monoteísta, é um livro terrível para os judeus, sobretudo na altura em que é publicado, em 1939.

Entrou no judaísmo por mediação cultural e literária, independentemente do sionismo?
Até ter começado a ler e a estudar mais profundamente os textos de Theodor Herzl, o fundador do sionismo político moderno, nem tinha bem consciência do que era o sionismo. Herzl era um homem perturbado e muito inculto, totalmente assimilado. Teve uma vida trágica, um casamento muito infeliz, os seus dois filhos, que nem eram circuncidados, suicidaram-se. Ser judeu não é ser sionista. Tenho vários amigos em Israel que não são sionistas. Há jornais em Israel que não são sionistas, por exemplo o Haaretz. Na semana passada, esse jornal publicou um artigo que dizia que a fome em Gaza é da responsabilidade do exército israelita. Tem a coragem, e a capacidade, de expor a verdade. Mas não simplifiquemos nem generalizemos quando dizemos que a culpa é de Israel. Israel é o quê? É o Estado de Israel? É o Governo actual de Israel? São os israelitas? Os israelitas têm opiniões muito diversas. Há aquele dito muito conhecido segundo o qual se há sete judeus, há sete opiniões.

Tendo ido muitas vezes a Jerusalém e também a outras cidades israelitas, com que ideia é que ficou?
Percebi que havia muita segregação e muito desconhecimento entre os israelitas judeus e os israelitas árabes, que são quase um milhão. Eu tinha amigos judeus, mas também tinha amigos árabes. E eles não sabiam coisas mínimas uns sobre os outros. E mesmo entre os judeus há uma grande rivalidade, e até um desacordo entre os sefarditas e os asquenazes. Porque, ao longo da história, transformaram-se e tornaram-se muito diferentes. E o Estado de Israel, por ser judaico, não pode, a meu ver, ser um verdadeiro Estado de direito, como um Estado islâmico não o pode ser.

Ainda quanto ao sionismo: progressivamente foi-se dando um desvio em relação àquilo que foi quase o projecto utópico de criação de um Estado voltado para a paz, que preconizava uma sociedade que tinha aspectos de utopia...
Israel não tem uma Constituição porque não consegue escrever sequer o preâmbulo. Para justificar a sua presença, a sua criação, tenho de evocar factos, tenho de fazer também um desvio da memória. De facto, só houve um Estado judaico no tempo de David. Só houve três reis de Israel: Saul, David e Salomão. Israel significa aquele que luta contra Deus. O fio condutor da Bíblia hebraica, o Tanakh, é um conflito entre o divino e o humano, entre Deus e as suas criaturas, que estão sempre a desobedecer-Lhe.

Por isso é que Deus é um tirano. Para disciplinar as suas criaturas tem de as castigar.
Deus é extremamente violento. É o Senhor dos exércitos, também. No Novo Testamento, o conflito é muito diferente, é entre Jesus e os judeus. Jesus, no sentido estrito, não é judeu. Era muito diferente ser judeu da Judeia ou ser judeu da Galileia. Muito diferente. Até o dialecto aramaico que falavam era diferente. E todos os apóstolos de Jesus eram galileus menos um, Judas, o traidor, que era judeu. É uma coisa que se repete constantemente, este conflito entre o judeu e o grupo que o segue, armado. São Paulo, em Jerusalém, receando ser julgado e condenado à morte pelos judeus, diz que é romano, filho de pais romanos, para não ser crucificado... Há várias tradições, mas, na segunda tradição, ele é morto, mas não crucificado, é decapitado por ser romano.

Há alguns textos do seu livro que são exercícios de exegese bíblica.
É verdade. Aí arrisco-me a cometer erros. Para mim, parece-me óbvio, pela leitura dos Evangelhos, que Jesus não só tem desprezo, mas quase odeia relações familiares. Em nenhum caso ele chama mãe a Maria, ou pelo nome, nunca. Trata-a pelo nome ou por mulher, o que é uma forma rude de tratar a mãe. E quando um discípulo lhe pede para ir enterrar o pai, ele diz-lhe para deixar os mortos, para voltar costas ao pai e à mãe e para o seguir. É terrível, Jesus desprezava os laços familiares. Nenhum dos seus discípulos era seu familiar. O que os unia era uma ligação ideológica, muito mais forte que uma ligação familiar.

Voltemos à questão da memória, para referir o conceito de “lugares de memória”, do historiador francês Pierre Nora. Parece-me pertinente evocar este conceito para dizer que o seu livro é um périplo historiográfico por diversos lugares de memória, no centro dos quais está Auschwitz.
Auschwitz é mais do que um lugar, é o nome do acontecimento a que chamo Catástrofe, para evitar nomeá-lo como holocausto, que é um sacrifício de um animal pelo fogo. Não é correcto dizer que o extermínio dos judeus europeus foi um holocausto, um sacrifício dedicado a Deus. Por outro lado, a palavra Holocausto refere-se só aos que foram mortos. É preciso ter em conta que as vítimas do que aconteceu não foram apenas os que morreram, foram também muitos que sobreviveram. Mas é difícil arranjar um nome para o que aconteceu. Os motivos são muito mais mitológicos e teológicos do que simplesmente políticos. Esta é a minha ideia de fundo. Não é um conflito social ou político, na cabeça de Hitler tratava-se de um conflito teológico, mais do que de racismo. O racismo é diferente, não pretende a destruição do escravo. O racista precisa do escravo para se continuar a sentir superior ao outro. Eu não posso ter ódio por um simples instrumento ao meu serviço. Hitler vê no judeu um poder descomunal...

E, portanto, um perigo. Mas o racismo não é isso? Não consiste em ver naquele que é diferente um perigo, uma ameaça? Vejamos, por exemplo, o documentário dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, da autoria de Leni Riefenstahl. O seu olhar muito estetizado sobre os corpos apolíneos dos atletas alemães não é racista?
É verdade que há aí uma exaltação da “raça germânica”. E “raça”, como sabemos, é hoje considerado, tanto nos estudos antropológicos como sociológicos, um conceito não científico e não pertinente. Mas Leni Riefenstahl, muitos anos depois, em 1973, também fotografou os negros de uma tribo do Sul do Sudão, os Nuba.

Sobre essas fotografias escreveu Susan Sontag um célebre texto onde defendia, com fortes argumentos, que Leni Riefenstahl não se tinha arrependido de ser racista e tinha encontrado em África uma raça superior de negros.
Ela apreciava mesmo a beleza daqueles negros. Hitler também considerou os japoneses como arianos honorários.

E não reside o racismo de Riefenstahl precisamente nessa estetização? Mas voltemos à matéria do seu livro. Foi durante anos professor no departamento de Filosofia, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Transferiu-se com armas e bagagens da filosofia para a teologia?
É verdade. Interesso-me agora mais por teologia do que por filosofia.

Como é que se deu essa deslocação?
Foi fundamental ler o Tanakh, a Bíblia Hebraica. Aquilo que nós conhecemos como Antigo Testamento é uma tradução de uma tradução. Primeiro, há a tradução, no século III a.C., para grego. E depois há a tradução para o latim, que é a vulgata de São Jerónimo, a versão canónica. Só no século XIX é que a Igreja permitiu a sua tradução para as línguas vernaculares. Quando há uma tradução, há uma alteração do ambiente. Para mim foi indispensável a leitura do Tanakh, que literariamente é, de facto, uma obra incomparável, absolutamente extraordinária. É, ao mesmo tempo, sublime e terrível. E isso é nítido no original hebraico, que não aparece nas traduções para o grego e depois para o latim. Os grandes heróis da Bíblia Hebraica cometem faltas gravíssimas, pecam gravemente contra Deus. Enquanto no Novo Testamento as personagens principais são todas imaculadas, sem qualquer mancha de pecado. Jesus é totalmente humano, salvo no pecado. Mas o que é um humano sem pecado? O pecado tem sempre que ver com o sexo. O sexo. Há ali um tabu muito forte...

E não existe esse tabu no Antigo Testamento?
Não, o sexo tem de ser controlado, tem regras, sobretudo por causa da menstruação da mulher. Mas não é pecado, de modo algum. Temos um texto erótico, lindíssimo, que é a canção de Salomão, o Cântico dos Cânticos, um texto belíssimo sobre amor físico. No Novo Testamento só há algumas pequenas passagens em que há qualquer coisa de erótico, mas são coisas mínimas. Para o cristianismo, este mundo não vale nada, a nossa vida só tem valor como preâmbulo para a vida eterna. Isso não acontece no judaísmo bíblico, que não tem o Paraíso e o Inferno. O judaísmo não é propriamente uma religião, é uma forma de vida. Está muito mais perto do islão. Enquanto no cristianismo a base é teologia, no judaísmo, a teologia é interdita, não se pode tentar compreender ou racionalizar Deus. Essa é a razão pela qual Espinosa, filho de judeus portugueses expulsos de Portugal e refugiados em Amesterdão, foi alvo da mais alta punição, o chérem, a excomunhão hebraica, que é muito mais forte do que a excomunhão católica. Significa ser expulso da comunidade. E Uriel da Costa, judeu sefardita que nasceu no Porto, suicidou-se em Amesterdão depois de também ter sido excomungado.

Uriel da Costa, apesar de português, não é por cá muito recordado. A excepção é o livro de Agustina Bessa-Luís Um Bicho da Terra. É mais fácil encontrá-lo referido na Alemanha e no Norte da Europa.
É a grande diferença entre o Sul da Europa, católico, e o Norte, protestante. A reforma, de facto, mudou completamente a sociedade. Começou com Lutero.

Mas até num país católico, do Sul da Europa, como a Itália, encontramos bem fornecidas secções de teologia e de judaísmo, nas livrarias.
Os italianos não eram anti-semitas. Em Itália, deu-se a assimilação dos judeus.

Isso explica que Primo Levi, em Se isto é um Homem, tenha escrito que foi em Auschwitz que se tornou judeu.
O Primo Levi é um homem e escritor extraordinário. A capa do meu livro reproduz uma fotografia da escada do prédio onde viveu, em Turim, tirada pelo meu amigo Luís Quintais, em cujo vão Levi se precipitou, pensa-se que voluntariamente. Tudo aponta para a tese do suicídio.

Como é que vê os ataques das forças armadas de Israel a Gaza, a retaliação na sequência do 7 de Outubro?
É terrível, horrível. A morte de qualquer criança é uma coisa horrível. Mas é difícil ter uma opinião muito clara e nítida que nos tranquiliza a consciência sem cair na simplificação e na generalização. É bom porque nos tranquiliza a consciência. Com o seu conceito de “zona cinzenta”, Primo Levi ensinou-nos que há uma zona muito larga entre o moral e a imoral, entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal. E se quisermos encontrar os primeiros culpados do que está a acontecer, temos de culpar a França e a Inglaterra. Yitzhak Rabin, que foi assassinado em 1995, tinha ideias muito diferentes das que orientam o Governo de Benjamin Netanyahu, um homem corrupto que está a utilizar uma guerra para se manter no poder.

Público

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