March 05, 2025

Um texto escrito de um ponto de vista elitista e solipsista

 


Uma pessoa adulta, educada academicamente e que domina a língua pode introduzir termos estrangeiros, dobrar regras, brincar com a gramática, com a fonética, etc. Agora crianças e adolescentes que estão a entrar na língua, a construir a sua arquitectura linguística têm que ser ensinados segundo as regras, sob o risco de desenvolverem um pensamento incapaz de estrutura lógica. Sim, a linguagem reflecte uma construção conceptual e lógica - fazem-se pensamentos e raciocina-se com palavras, com conceitos. Se não sabemos usar as palavras ou se simplificámos excessivamente a língua tiramos-lhes a capacidade de lidar com problemas complexos e de pensar com rigor. 

O rigor não cai do céu como a chuva, é desenvolvido através do trabalho e, desde logo, do trabalho sobre a linguagem. Dizer que as pessoas são sempre atraídas pelo simples é uma frase infundada. Quando só damos às pessoas coisas simples elas depois não sabem sequer compreender o complexo, mesmo quando o querem muito. Nós professores todos os dias vemos isso nas aulas com este ensino que há anos advoga que tudo que é sério é enfadonho e que o ensino deve reduzir-se ao simples, ao giro e ao divertido. 

E o que é isso de a realidade ser a matéria-prima da língua? Que realidade? A sua realidade subjectiva? É que há muitas realidades. Uma delas é a realidade da Língua. 

E desde quando só a língua falada é que interessa? É bom educarmos os miúdos para ficarem todos presos à subjetividade e incoerência da língua falada? Se calhar nós professores devíamos falar assim nas aulas para ser tudo mais giro e menos enfadonho? 

Porque, então, escreve artigos? Porque não faz podcasts e aproveita para falar assim dessa maneira anglófila?

Para quebrar regras é preciso primeiro saber usá-las. Não por acaso a Rússia, de cada vez que invade um país, ou proíbe o uso da língua local ou russifica-a, coloniza-a, de maneira que as crianças aprendam, não a sua identidade como povo, mas a deles.


Língua portuguesa de mãos dadas com outras línguas


Afinal já todos adotámos os verbos “googlar”, “tuitar”, “postar” ou “instagramar”. A língua inglesa tem essa piada de ser simples sem ser simplória. Fazemos bem em surripiá-la. Tem mais lógica e é mais prático dizer “googlar” que “pesquisar no google” ou, pior, “vou pesquisar num motor de busca”. As versões “escrevi no Twitter” ou “publiquei no Facebook” ou “pus uma fotografia de tal e tal no Instagram” são enfadonhas e complicadas. E os seres humanos correm sempre atrás da simplicidade e repudiam o que complica desnecessariamente.

As realidades mudam, surgem novidades e a língua corre atrás. Pelo menos a falada – que é a que conta, porque é esse o meio de transporte onde viaja a comunicação mais direta e informal entre as pessoas. A língua falada é a mais dinâmica, a mais versátil, a que mais depressa incorpora as tendências e novidades. A língua escrita, mesmo quando faz por emular a leveza e originalidade coloquial, é mais conservadora. As gramáticas e os dicionários, então, contêm as regras, os dogmas linguísticos, são meramente um reconhecimento a posteriori das mudanças introduzidas (e impostas) pela oralidade.

Confesso que não sou purista com a língua portuguesa. Nem tenho paciência para os puristas. Por um lado, sendo eu anglófila, lendo mais em inglês do que em português e sendo fã dos bons autores britânicos, que conseguem tornar bonitas e originais (e espirituosas) as versões mais correntes da língua, termino usando muitas das minhas expressões inglesas preferidas. Se não aqui, nas redes sociais ou (mais importante) nas minhas conversas.

Por outro lado, gosto de traduzir ou cooptar expressões de outras línguas. Por exemplo, entre tonteira ou “tonteria” (que é espanhol), uso sempre tonteria. Gosto mais.

Como disse, não tenho paciência para os puristas. Nunca tenho – não é só para os assuntos da língua – paciência para pessoas enfadonhas e cinzentas que não sabem sair dos espartilhos, não testam as regras, não veem a criatividade e a inovação (e a brincadeira) como mais aliciantes que os cânones.

No meio de tantas escapadelas aos cânones – e porque é impossível fugir completamente da realidade que, no fundo, é a matéria-prima da língua...

Maria João Marques in Público



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