(continuação daqui: um-conto)
Kafka
Investigações de um cão
tradução de uma tradução de Willa e Edwin Muir
Não, seja qual for a objecção que eu possa ter em relação à minha idade, as gerações anteriores não eram melhores, na verdade, num certo sentido, eram muito piores, muito mais fracas. Mesmo naquele tempo, os prodígios não andavam abertamente pelas ruas para serem apanhados; mas, mesmo assim, os cães - não posso dizer de outra forma - ainda não se tinham tornado tão caninos como hoje, o edifício da caninidade ainda estava frouxamente montado, a verdadeira Palavra ainda podia ter intervindo, planeando ou replanejando a estrutura, mudando-a à vontade, transformando-a no seu oposto; e a Palavra estava lá, estava muito perto, pelo menos, na ponta da língua de toda a gente, qualquer um podia ter chegado a ela. E o que é que acontece hoje? Hoje podemos arrancar o nosso próprio coração e não o encontrar. A nossa geração está perdida, é certo, mas é mais irrepreensível do que as anteriores. Compreendo a hesitação da minha geração, de facto, já não é uma simples hesitação; é o milésimo esquecimento de um sonho mil vezes sonhado e mil vezes esquecido; e quem nos pode condenar apenas por nos esquecermos pela milésima vez?
Mas penso que também compreendo a hesitação dos nossos antepassados, provavelmente teríamos agido como eles; de facto, quase poderia dizer: ainda bem para nós que não fomos nós que tivemos de assumir a culpa, que em vez disso podemos apressar-nos em silêncio quase sem culpa para a morte num mundo escurecido por outros. Quando os nossos primeiros pais se extraviaram, não tinham, sem dúvida, qualquer noção de que a sua aberração seria interminável, ainda podiam ver literalmente a encruzilhada, parecia fácil voltar para trás quando quisessem, e se hesitavam em voltar para trás era apenas porque queriam gozar a vida de cão por mais algum tempo; ainda não era uma verdadeira vida de cão, e já lhes parecia inebriantemente bela, então o que se tornaria dentro de pouco tempo, muito pouco tempo, e assim se extraviaram mais.
Eles não sabiam o que agora podemos adivinhar, contemplando o curso da história: que a mudança começa na alma antes de aparecer na existência comum, e que, quando começaram a desfrutar de uma vida de cão, já deviam possuir verdadeiras almas de cães velhos, e não estavam de modo algum tão perto do seu ponto de partida como pensavam, ou como os seus olhos, banqueteando-se com todas as alegrias caninas, tentavam persuadi-los. Mas quem é que ainda hoje pode falar de juventude?
Estes eram os cães realmente jovens, mas a sua única ambição era, infelizmente, tornarem-se cães velhos, coisa que não podiam deixar de conseguir, como demonstram todas as gerações seguintes, e a nossa, a última, mais claramente do que todas.
Naturalmente que não falo destas coisas ao meu vizinho, mas muitas vezes não posso deixar de pensar nelas quando estou sentado à sua frente - esse típico cão velho - ou enterro o nariz no seu pelo, que já cheira a peles velhas. Falar com ele, ou mesmo com qualquer um dos outros, sobre estas coisas seria inútil. Eu sei o rumo que a conversa tomaria. Ele faria uma ligeira objecção de vez em quando, mas acabaria por concordar - o acordo é a melhor arma de defesa - e o assunto seria enterrado: para quê dar-se ao trabalho de o exumar? E, apesar disso, há um entendimento profundo entre mim e o meu vizinho, mais profundo do que as palavras. Nunca deixarei de o afirmar, embora não tenha provas disso e talvez esteja apenas a sofrer de uma ilusão vulgar, causada pelo facto de, durante muito tempo, este cão ter sido o único com quem mantive qualquer comunicação e, por isso, sou obrigado a agarrar-me a ele. “Afinal, és meu colega à tua maneira? E envergonhado por tudo ter corrido mal contigo? Olha, o meu destino foi o mesmo.
Quando estou só, choro por isso; vem, é mais doce chorar em companhia”. Muitas vezes tenho pensamentos como estes e depois olho-o demoradamente. Ele não baixa o olhar, mas também não se pode ler nada nele; olha-me fixamente, perguntando-se porque estou em silêncio e porque interrompi a conversa. Mas talvez esse mesmo olhar seja a sua forma de me interrogar, e eu desiludo-o tal como ele me desilude.
Na minha juventude, se outros problemas não fossem mais importantes para mim, e se eu não estivesse perfeitamente satisfeito com a minha própria companhia, provavelmente ter-lhe-ia perguntado directamente e recebido uma resposta que concordasse comigo, e isso teria sido ainda pior do que o silêncio de hoje. Mas não se calam todos exatamente da mesma maneira? O que é que me impede de acreditar que todos são meus colegas, em vez de pensar que tenho apenas um ou dois companheiros de investigação - perdidos e esquecidos juntamente com as suas realizações mesquinhas, de modo que nunca poderei alcançá-los por qualquer caminho através da escuridão das eras ou da multidão confusa do presente: por que não acreditar que todos os cães desde o início dos tempos têm sido meus colegas, todos diligentes à sua maneira, todos mal sucedidos à sua maneira, todos silenciosos ou falsamente tagarelas à sua maneira, como a investigação sem esperança é capaz de fazer?
Mas, nesse caso, eu não precisava de me separar dos meus companheiros, podia ter ficado tranquilamente entre os outros, não tinha necessidade de lutar para sair como uma criança teimosa através das fileiras fechadas dos adultos, que, de facto, queriam tanto como eu encontrar uma saída, e que me pareciam incompreensíveis simplesmente por causa dos seus conhecimentos, que lhes diziam que ninguém podia escapar e que era estúpido usar a força.
Mas, nesse caso, eu não precisava de me separar dos meus companheiros, podia ter ficado tranquilamente entre os outros, não tinha necessidade de lutar para sair como uma criança teimosa através das fileiras fechadas dos adultos, que, de facto, queriam tanto como eu encontrar uma saída, e que me pareciam incompreensíveis simplesmente por causa dos seus conhecimentos, que lhes diziam que ninguém podia escapar e que era estúpido usar a força.
No entanto, estas ideias devem-se definitivamente à influência do meu vizinho; ele confunde-me, enche-me de desânimo; e no entanto, em si mesmo, é bastante feliz, pelo menos quando está nos seus aposentos, ouço-o muitas vezes a gritar e a cantar; é realmente insuportável. Seria bom renunciar também a este último laço, deixar de ceder aos sonhos vagos que todo o contacto com cães provoca inevitavelmente, por mais endurecido que nos consideremos, e empregar o pouco tempo que ainda me resta exclusivamente na prossecução das minhas pesquisas. Da próxima vez que ele vier, escapulir-me-ei, ou fingirei que estou a dormir, e continuarei a fingir até ele deixar de me visitar.
(continua)
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